Basaglia (2010) nomeou de instituições de violência os espaços de asilamento psiquiátrico, entre outros motivos, pela concretização daquilo que considerou a construção e oficialização de “reservas psiquiátricas” a partir da medicalização de pessoas que, consideradas loucas, atualizam as relações de opressão e exploração na sociedade capitalista. Os manicômios, como destacou o autor, são espaços eminentemente marcados pela presença de pessoas negras ou de minorias étnicas e mais pauperizadas que passaram a ser consideradas como improdutivas. A quem o Estado faltou em termos de politicas publicas e ações, rapidamente se apresentam os espaços de encarceramento prisional e psiquiátrico.
Ao lado de todas as problemáticas envolvidas no asilamento enquanto estratégia junto a pessoas em sofrimento psíquico ou com demandas decorrentes do uso de álcool e outras drogas somam-se, no momento atual, os riscos à contaminação por COVID-19. A partir da aproximação com a realidade de instituições psiquiátricas no Brasil e em países como China, Estados Unidos e Itália, o cenário parece ser de aprofundamento das manicomializações e de seu caráter segregador e medicalizante e que podem reforçar as relações de classe e raça na sociedade atual. Vejamos.
Antes mesmo da pandemia notificar casos no Brasil, em fevereiro deste ano, a Comissão Nacional de Saúde da China já notificava a contaminação de 323 pessoas com transtornos mentais por COVID-19. Segundo o estudo de Xiang et al (2020) o número considerado alarmante pelas autoridades e pesquisadores chineses se relacionaria com a insuficiente oferta de Equipamento de Proteção Individual (EPI’S) e a não atenção às especificidades dos cuidados relacionados às pessoas internadas em decorrência de sofrimentos psíquicos graves. Como pontuaram os autores, nestes espaços, as pessoas passam a estar mais expostas a possíveis surtos virais uma vez que compartilham espaços como banheiro, dormitórios e mesmo espaços de tratamento em momentos subjetivos e objetivos nos quais contam com menos recursos pessoais, sociais e comunitários de cuidado e prevenção.
Em artigo sobre a assistência psiquiátrica no contexto do COVID-19 nos Estados Unidos, Bojdani et al (2020) descreveram, nos contextos asilares, a construção de alternativas por meio de telefones ou video-chamadas, mas sublinharam a possibilidade de assistência presencial com uso de EPI’s. Os autores localizaram a realização de testes rápidos em pessoas antes de serem admitidas para internação, assim como descrito por Xiang et al (2020) na China, mesmo não sendo explicitado quais seriam as diretrizes e estratégias junto a pessoas já contaminadas e internadas nestes espaços. Ainda no país, fizeram-se presentes modificações na estrutura física e organização da instituição psiquiátrica, assim como suspensões de visitas e atividades em grupo e a inclusão de atendimentos remotos a pessoas internadas em hospitais psiquiátricos (BOJDANI, 2020; LI, 2020). Outras medidas se voltaram para a diminuição de contatos considerados não essenciais – incluindo estagiários e pesquisadores– a redistribuição e reorganização de tarefas entre médicos e outros profissionais, contando com a criação de pools de reserva, assim como a construção de critérios mais rígidos de internação psiquiátrica (LI, 2020).
Na Itália, as indicações do Ministério da Saúde acompanharam a dos países anteriores, envolvendo a utilização do mais alto nível possível de EPI’S e a substituição de visitas por telefonemas e videochamadas nos espaços de assistência de pernoite e acolhimento psiquiátricos, assim como enfermarias específicas para pessoas com COVID-19 e outras áreas de isolamento interno nestes estabelecimentos. Na cidade de Ligúria, houve a abertura de um espaço específico para pessoas com transtorno mental contagiadas pelo vírus: a Villa Danilo, com 18 leitos [1].
No Brasil, em abril, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão solicitou à a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recomendações e medidas específicas aos hospitais psiquiátricos, clínicas psiquiátricas e comunidades terapêuticas nacionais durante a pandemia de COVID-19. Foram incluídos nos estabelecimentos que deveriam receber atenção também os CAPS, Residências Terapêuticas e Unidades de Acolhimento (MINISTÉRIO PUBLICO, 2020). No Rio de Janeiro, a Secretaria de Saúde do Estado (SES) publicou, também nas primeiras semanas de isolamento social, a ‘Nota Técnica sobre cuidados para usuários de Saúde Mental internados em Hospital Psiquiátrico durante a pandemia de COVID-19’. O documento orientava a diminuição das visitas e organização de um cronograma para presença de amigos e familiares, além da proibição das mesmas realizadas por pessoas do grupo de risco [2]. Além disso, incentivava-se a construção de alternativas como telefonemas ou vídeo chamadas; a diminuição das internações e o aumento de altas assim como a aceleração de processos de desinstitucionalização; escalonamento de horários de refeição e suspensão de atividades coletivas em espaços fechados; adaptação e reorganização dos espaços e infra estrutura hospitalar, além da realização de práticas educativas com as pessoas internadas (Governo do Estado do Rio de Janeiro, 2020).
Hospitais psiquiátricos privados, como o Hospital Santa Mônica, localizado em Itapecerica da Serra, São Paulo, anunciaram a suspensão de licenças terapêuticas e visitas por prazo indeterminado e chamadas de vídeo e telefone apenas podendo se realizadas na companhia de psicólogos e enfermeiros em ‘viva voz’ e após recomendação do grupo terapêutico. Segundo site da instituição também seriam tomadas medidas mais rígidas e ficariam suspensos ‘atos de cordialidade como aperto de mãos e abraços’ entre pessoas internadas e ‘pacientes fumantes que tem o hábito de acender o cigarro no resíduo do cigarro do colega, devem abandonar essa prática’ [3].
No Brasil, algumas notícias de surto de COVID-19 em espaços asilares psiquiátricos ganharam os noticiários. Um deles foi o caso do Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto, em Fortaleza, no Ceará. Recebendo um número importante de casos de emergência psiquiátrica (a unidade relatou 4.383 casos apenas entre os meses de março a maio) e sendo a única referência pública do estado, o hospital notificou diversos casos de pacientes internados e que foram testados positivos para COVID-19. Segundo o diretor médico da unidade foram criadas duas alas específica considerando esta problemática, sendo uma para pacientes em investigação e outra para casos confirmados [4].
Um cenário que superou em muito o hospital cearense foi o do Hospital Psiquiátrico de Maringá, no Paraná, com grande cobertura pela mídia. Segundo a direção da instituição, a contaminação teria se iniciado a partir de uma paciente transferida de Cascavel. Os casos que, no início do mês de maio, contabilizavam 6 chegaram a 85 em poucas semanas do mesmo mês, entre pacientes e profissionais [5]. Entre as medidas publicizadas, estavam a reavaliação do plano de contingenciamento para a COVID-19, a contratação de uma médica infectologista, o treinamento para uso de Equipamentos de Proteção Individuais (EPIs) em vídeo, reestruturação das alas de isolamento e monitoramento de pacientes e funcionários. Não encontramos notícias sobre o controle do número de internações ou incentivo à alta[6]
Nesse contexto, talvez um dos espaços mais preocupantes sejam as Comunidades Terapêuticas, espaços que centram seu tratamento no asilamento de pessoas com demandas decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Apesar de reconhecidas pelas falhas de estrutura e já denunciadas por torturas e maus tratos por diversas entidades (CFP, 2011; CRPSP, 2015; IPEA, 2017) e pesquisas atuais (PACHECO e SCISLEKI , 2013; PEREIRA e PASSOS, 2017), a fiscalização das medidas de prevenção no momento do COVID-19 se dão simplesmente por auto declaração. Ou seja: pelo comunicado das próprias unidades, por meio do Sistema Eletrônico de Gestão das Comunidades Terapêuticas, através da Secretaria Nacional de Cuidados e de Prevenção às Drogas (SENAPRED), sem nenhuma visita ou acompanhamento do Ministério da Saúde ou de qualquer outro órgão [7].
Apesar de em março deste ano, durante as primeiras semanas de medidas de isolamento social, a própria Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (FEBRACT, 2020) ter pontuado a ‘indicação de não realizar mais acolhimentos’ (p.12), no mesmo mês, o Ministério da Cidadania considerou seus serviços enquanto essenciais, a partir da portaria 340 (BRASIL, 2020). A FEBRACT (2020) chegou a avaliar a possibilidade de disponibilização de quarto exclusivo para os ‘recém chegados’ por 15 dias e a identificação de casos suspeitos, a partir de perguntas sobre contato com pessoas contaminadas ou identificação de sintomas pela própria pessoa. Seguindo estas orientações, muitos estabelecimentos deste tipo não paralisaram seus serviços e não havendo recomendação de encerramento de recepção de novos pacientes, continuam de portas abertas para a entrada de novas pessoas e, inclusive, são orientadas a não realizarem altas neste período, como proposta do próprio Ministério. Apenas a Fazenda da Esperança, em São Paulo, revelou em maio ter recebido mais de 3 mil pessoas desde o início da pandemia [8].
Se é certa a dificuldade imposta em acompanharmos a real situação das pessoas internadas e dos profissionais desses espaços, a cidade de Jaci, em São Paulo, talvez revele algumas dimensões importantes. No município de apenas 7. 293 habitantes, metade das pessoas contaminadas no início de maio estavam internadas ou trabalhavam na Comunidade Terapêutica São Francisco de Assis. Entre todos os pacientes, menos da metade teve seus exames negativados para a COVID-19 [9].
De maneira nenhuma podemos deixar de salientar que, se em nosso país, quem mais morre de COVID-19 são os homens pobres e negros [10], não coincidentemente são estes os mesmos que são maioria nas instituições psiquiátricas como hospitais (BARROS et al, 2020) ou Comunidades Terapêuticas (IPEA, 2017), e que passam a estar mais expostos aos surtos virais e ao aprofundamento dos asilamentos e isolamentos de manicômios ainda mais duros e severos em tempos de pandemia. Corona vírus e medicalização acabam por formar uma, dentre tantas outras, duplas de sustentação de genocídio da população negra e mais pauperizada, devendo a saúde mental estar atenta para a rigorosidade das violências nos momentos atuais, fazendo-se urgente a adoção de medidas em atenção psicossocial fortes e adaptáveis e que se voltem para os territórios e suas realidades na evitação dos asilamentos psiquiátricos.
Referências Bibliográficas
BARROS, S; BATISTA, L. E.; DELLOIS, E.; ESCUDER, M. M. Censo psicossocial dos moradores em hospitais psiquiátricos do estado de São Paulo: um olhar sob a perspectiva racial. In: Saúde soc. 23 (4) Oct-Dec 2014.
BASAGLIA, F. As instituições de violência. In: BASAGLIA, F. Escritos Selecionados em Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica. AMARANTE, P. (org.), Rio de Janeiro: Garamond, 2010.
BOJDANI E, RAJAGOPLAN A, CHEN A, GEARIN A, OLCOTT W, SHANKAR V, CLOUTIER A, SOLOMON H, NAQVI NZ, FESTIN FE, TAHERA D, CHANG G, DELISI L. P . COVID-19 Pandemic: Impact on psychiatric care in the United States. Psychiatry Research 289 (2020) 113069. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0165178120312269. Acessado em 08 de julho de 2020.
CFP. Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas.Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2011.
CRP/SP. Dossiê: Relatório de Inspeção de Comunidades Terapêuticas e Clínicas para Usuárias(os) de Drogas no Estado de São Paulo – Mapeamento das Violações de Direitos Humanos. São Paulo: Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, 2016.
FEBRACT. Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas. Informações Gerais sobre o Coronavírus e Informações específicas para as Comunidades Terapêuticas. Março de 2020. Disponível em: https://febract.org.br/portal/wp-content/uploads/2020/04/MANUAL-FEBRACT-COVID-3.pdf. Acessado em 04 de julho de 2020.
GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Secretaria de Estado de Saúde Superintendência de Atenção Psicossocial e Populações em Situação de Vulnerabilidade. Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Nota Técnica sobre cuidados para usuários de Saúde Mental internados em Hospital Psiquiátrico durante pandemia de COVID-19 . Abril de 2020. Disponível em: https://coronavirus.rj.gov.br/wp-content/uploads/2020/04/NT-COVID-19-e-Hosp-Psiq_final.pdf. Acessado em 04 de julho de 2020.
IPEA. Nota Técnica nº21. Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras. Brasília: IPEA, 2017.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Ofício nº130/2020. Brasília, 14 de abril de 2020. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pfdc/manifestacoes-pfdc/oficios/oficio-130-2020-pfdc-mpf. Acessado em 04 de julho de 2020.
LI L. Challenges and priorities in responding to COVID-19 in inpatient psychiatry. Psychiatric Services 71:6, June 2020. Disponível em: https://ps.psychiatryonline.org/doi/pdf/10.1176/appi.ps.202000166. Acessado em 09 de julho de 2020.
PACHECO AL, SCISLEKI A. Vivências em uma comunidade terapêutica. Revista Psicologia e Saúde, v. 5, n. 2, jul. /dez. 2013, p. 165-173. Disponível em: https://www.pssa.ucdb.br/pssa/article/view/285/350. Acessado em 08 de julho de 2020.
PEREIRA MO, PASSOS RG. Desafios Contemporâneos na Luta Antimanicomial: comunidades terapêuticas, gênero e sexualidade In: PEREIRA MO, PASSOS RG. Luta Antimanicomial e Feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a Reforma Psiquiátrica Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Autografia, 2012.
XIANG YT, ZHAO YJ, LIU ZH, LI XH, ZHAO N, CHEUGN T, NG CH. The COVID-19 outbreak and psychiatric hospitals in China: managing challenges through mental health service reform. International Journal of Biological Sciences 2020; 16(10): 1741-1744. Disponível em: https://www.ijbs.com/v16p1741.pdf. Acessado em 04 de julho de 2020.
Notas:
[1]Informações em: https://www.repubblica.it/economia/rapporti/osserva-italia/cibamente/2020/04/10/news/covid_19_nasce_una_struttura_per_i_malati_psichiatrici-253629345/. Acessado em 08 de julho de 2020.
[2] A nota lista: pessoas maiores de 60 anos; menores de 60 anos com pneumopatia, diabetes, doença oncológica, doença cardiovascular, imunodeficiência, entre outras; crianças (0 a 12 anos)
[3] ‘Comunicado aos pacientes e familiares: medidas de contingência ao Coronavírus’. Informações disponíveis em: https://hospitalsantamonica.com.br/a-pandemia-covid-19-e-a-saude-mental-nos-estados-unidos/. Acessado em 04 de julho de 2020.
[4] Informações disponíveis em: https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2020/06/02/hospital-de-saude-mental-em-fortaleza-confirma-pacientes-psiquiatricos-internados-com-a-covid-19.ghtml. Acessado em 04 de julho de 2020.
[5] Informações disponíveis em: https://www.radioculturafoz.com.br/2020/05/29/hospital-psiquiatrico-de-maringa-confirma-novos-47-casos-da-covid-19/ e https://ricmais.com.br/videos/hospital-psiquiatrico-de-maringa-sobe-numero-de-casos-de-covid-19/. Acessado em 04 de julho de 2020.
[6] Boletim do Hospital Psiquiátrico de Maringá. Disponível em http://www.femipa.org.br/noticias/covid-19-atualizacao-boletim-hospital-psiquiatrico-de-maringa/. Acessado em 04 de julho de 2020.
[7] Informações disponíveis em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/covid-19-avanca-nas-comunidades-terapeuticas/. Acessado em 04 de julho de 2020.
[8] Informações disponíveis em: https://www.spdm.org.br/saude/coronavirus/item/3355-coronavirus-comunidades-terapeuticas-sao-consideradas-prestadoras-de-servicos-essenciais. Acessado em 04 de julho de 2020.
[9] Informações disponíveis em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/02/comunidade-terapeutica-coronavirus-jaci.htm. Acessado em 04 de julho de 2020.
[10] Informação disponível em: https://epoca.globo.com/sociedade/dados-do-sus-revelam-vitima-padrao-de-covid-19-no-brasil-homem-pobre-negro-24513414. Acessado em 08 de julho de 2020.
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Agradecimentos: Gostaria de agradecer imensamente a Ernesto Venturini pela leitura atenta e observações preciosas sobre os serviços de saúde mental italianos e a Fernando Freitas por possibilitar este diálogo.