Um artigo publicado na semana passada no New England Journal of Medicine (NEJM) usa um estudo de caso no contexto brasileiro para explorar por que tantos jovens se sentem culpados e estigmatizados pelos cuidados de saúde mental. Os autores do estudo, Dominique Béhague, Raphael Frankfurter, Helena Hansen e Cesar Victora, criticam uma abordagem puramente cognitivo-comportamental e consideram como os médicos podem abordar a opressão estrutural por meio da terapia. Com base nas ideias da reforma brasileira da assistência em saúde mental, os autores mostram como os terapeutas podem resolver esse problema usando princípios da “práxis dialógica”, uma teoria da aprendizagem e mudança social extraída dos trabalhos do filósofo e especialista pedagógico brasileiro Paulo Freire.
“A práxis dialógica”, explica Béhague em uma entrevista em podcast dada ao NEJM, “não é uma abordagem clínica nem um método pedagógico, mas um compromisso de aprender com a teoria social e trazer o domínio social de maneira bastante central para a clínica e iniciativas de saúde pública. ”
“Geralmente, quando o domínio social é considerado na medicina e na política de saúde, é um complemento, quando um modelo mais biológico e clínico não está funcionando. Mesmo assim, as forças sociais tendem a ser entendidas como fatores de risco para doenças mentais, como no caso de pobreza, desigualdade, discriminação e assim por diante. Isso é importante, mas o que Freire nos incentiva a fazer também é imaginar como o engajamento ativo e a recriação do campo social – como nos relacionamos, que tipo de sociedade e instituições-chave que queremos – podem ser terapêuticos por si só.”
Os autores definem a práxis dialógica como “um processo elaborado a partir da teoria educacional de Paulo Freire, na qual clínicos e pacientes se envolvem em análises e aprendizados críticos bidirecionais”. É um processo pelo qual uma aliança terapêutica é estabelecida com ênfase na colaboração. Através da comunicação bidirecional da experiência e do conhecimento, os clientes são incentivados a tomar medidas para alterar os sistemas que contribuem para suas experiências de angústia e opressão.
Comparado às abordagens de mudança de comportamento mais populares, potencialmente limitadas pela minimização de forças externas complexas que influenciam a experiência diária, Béhague e a equipe relatam que a práxis dialógica coloca mais importância no papel dos estressores externos, promovendo a agência do cliente e o empoderamento no processo de alteração desses estressores. Não é um pacote pronto e nem uma abordagem mecânica – é uma orientação.
“Na clínica, a práxis dialógica reformula a relação terapêutica enquanto uma experiência educacional bidirecional que se concentra em uma definição de “insight ”diferente da usada na psiquiatria convencional. Enquanto o insight geralmente se refere à conscientização dos pacientes sobre seus processos psicológicos internos, a práxis dialógica enfatiza o processo de aprendizado do clínico e […] incentiva os pacientes a se tornarem importantes fontes de conhecimento sobre as causas situacionais de sua angústia e formas de modificá-las.”
A noção de práxis dialógica tem suas raízes na teoria da aprendizagem e mudança social do educador e filósofo brasileiro Paulo Freire. Embora os termos e expressões específicos usados para descrever esse conceito variem, os apelos à reforma nos campos da psicologia, psiquiatria, medicina, educação e muito mais para integrar melhores determinantes sociais e estruturais da angústia individual não são novos. No entanto, uma apreciação maior por essa ideia que vem ocorrendo nos últimos anos aparece refletida na recente declaração do Relator Especial das Nações Unidas da necessidade urgente de iniciativas de saúde mental com foco em direitos humanos.
Modelos de treinamento foram projetados para preparar os profissionais a entenderem as maneiras diretas e diferenciadas pelas quais as forças externas influenciam a saúde individual. Algumas pesquisas indicaram que o “treinamento de competência estrutural”, para promover o entendimento das estruturas que contribuem para disparidades nas facetas da saúde, bem-estar e oportunidade, pode aumentar a empatia entre os residentes de psiquiatria.
Em outubro de 2019, os pesquisadores Rochelle Ann Burgess e seus colegas escreveram um comentário no Lancet Psychiatry, promovendo a mensagem de que [chegou] a hora do movimento global de saúde mental reconhecer a importância dos determinantes socioestruturais do sofrimento mental e trabalhar junto às comunidades e formuladores de políticas em seus esforços para enfrentá-los.”
No entanto, os detalhes de como a competência estrutural pode funcionar na prática ainda não foram totalmente explorados. Este artigo sugere que uma posição clínica essencial é que a relação terapêutica seja guiada pela humildade e pelo aprendizado fundamentado. No estudo de caso descrito por Béhague e colegas, um médico, o Dr. M estabelece um relacionamento terapêutico com um cliente de 16 anos, J, baseado no reconhecimento precoce de que o clínico não sabe como é ser J. Esta transparência acompanhada pela curiosidade em torno das percepções de J sobre as estruturas que impactam suas experiências cotidianas se presta à colaboração, permitindo que J influencie seu ambiente de forma construtiva.
No entanto, os detalhes de como a competência estrutural pode funcionar na prática ainda não foram totalmente explorados. Este artigo sugere que uma posição clínica essencial é que a relação terapêutica seja guiada pela humildade e pelo aprendizado fundamentado. No estudo de caso descrito por Béhague e colegas, um médico, o Dr. M estabelece um relacionamento terapêutico com um cliente de 16 anos, J, baseado no reconhecimento precoce de que o clínico não sabe como é ser J. Este a transparência emparelhada com a curiosidade em torno das percepções de J sobre as estruturas que impactam suas experiências cotidianas se presta à colaboração, permitindo que J influencie seu ambiente para o construtivo.
Os autores descrevem o histórico de ansiedade e comportamentos problemáticos de J na escola, levando à sua conexão com alguém de fora da escola que pudesse ajuda-lo. Antes de se conectar ao Dr. M, J se reuniu com a psicóloga de sua escola e ficou insatisfeito com as circunstâncias de seu encaminhamento para os serviços dela, bem como com as percepções dela sobre o caso. Sua interpretação era que ela se concentrava mais em seus déficits (ou seja, agressão e problemas de atenção), enfatizando as mudanças individuais que ele deveria fazer em vez das questões de maior escala que impediam seu progresso (por exemplo, seu status socioeconômico).
Tendo recusado os serviços continuados do psicólogo da escola, J concordou em procurar um suporte externo para expressar suas frustrações. Embora inicialmente hesitante em se envolver, J descobriu que a abordagem do Dr. M, integrando recursos da práxis dialógica, ressoava.
Com o tempo, os dois trabalharam para desvendar e explorar as fontes contextuais e sociais da angústia que J experimentara ao longo de sua vida. J aplicou essas novas ideias à militância política em sua escola, envolvendo-se no conselho estudantil da escola. Enquanto esteva no conselho estudantil, ele “advogou por melhores relações professor-aluno e trabalhou ao lado de funcionários da escola que executavam iniciativas para promover a participação dos alunos e práticas democráticas de ensino”.
Embora possa haver muitas características opressivas das circunstâncias sofridas por alguém e que estejam além do domínio de seu controle, Béhague e a equipe demonstram como um senso de propósito pode ser apoiado na terapia por meio de abertura, análise crítica e incentivo ao envolvimento no ativismo em nível comunitário.
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Mais informações sobre este artigo podem ser acessadas em uma entrevista em podcast com o primeiro autor e que está hospedado no New England Journal of Medicine.
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Béhague, D. P., Frankfurter, R. G., Hansen, H., & Victora, C. G. (2020). Dialogic Praxis — A 16-Year-Old Boy with Anxiety in Southern Brazil. New England Journal of Medicine, 382(3), 201–204. DOI: 10.1056/nejmp1909864 (Link)