COVID-19 e pessoas com deficiência psicossocial: uma declaração conjunta e algumas recomendações

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As seguintes organizações envolvidas elaboraram uma declaração coletiva sobre o risco aumentado que as pessoas que vivem com deficiências psicossociais enfrentam em meio a uma pandemia como a do COVID-19.

-Pan African Network of Persons with Psychosocial Disabilities
-Redesfera Latinoamericana de la Diversidad Psicosocial
-TCI Asia Pacific (Transforming Communities for Inclusion of persons with psychosocial disabilities, Asia Pacific)
-European Network of (Ex-) Users e
-Survivors of Psychiatry (ENUSP)
-Center for the Human Rights of Users and Survivors of Psychiatry (CHRUSP)
-World Network of Users and Survivors of Psychiatry (WNUSP)

Nós, pessoas com deficiência psicossocial integrantes de organizações regionais e internacionais em todo o mundo, estamos preocupados com a vulnerabilidade de pessoas com deficiência psicossocial à infecção e mortes por COVID-19. ‘Pessoas com deficiência psicossocial’ refere-se a um grupo historicamente discriminado e marginalizado que inclui usuários e ex-usuários da psiquiatria, vítimas-sobreviventes da violência psiquiátrica, pessoas loucas, ouvidores de vozes e pessoas com diversidade psicossocial.

Pessoas com deficiência psicossocial podem estar em maior risco de contrair coronavírus como resultado de:

  • estarem colocadas e / ou privadas de liberdade em unidades e instituições psiquiátricas, instituições de assistência social, casas de repouso, ‘abrigos’ não-regulamentados e informais, cadeias, prisões e casas correcionais, onde são incapazes de exercer o distanciamento social de acordo com seus vontade e preferências;
  • o risco inerente de infecção nesses ambientes, exacerbado pelo fato de estarem superlotados e insalubres e em locais onde os maus-tratos tendem a ocorrer;
  • barreiras no acesso à informação em saúde, incluindo falta de informação em linguagem simples e suporte à comunicação;
  • barreiras na implementação de medidas preventivas de higiene devido à pobreza, acesso desigual aos recursos dentro das famílias e à falta de moradia;
  • maus-tratos e abusos;
  • falta de redes de apoio social e de comunidades inclusivas; e
  • a discriminação sistêmica contra pessoas com deficiências psicossociais, especialmente mulheres, crianças, idosos, pessoas LGBTQIA +, indígenas, pessoas de diversas raças, cores, descendências, castas, nacional ou étnica, pessoas de diferentes afiliações religiosas, pessoas com outras deficiências e outros grupos que enfrentam discriminação múltipla e interseccional.

Pessoas com deficiência psicossocial também podem estar em risco aumentado de desenvolver sintomas mais graves e morrer devido a:

  • má nutrição, saúde e condições sanitárias em unidades e instituições psiquiátricas, instituições de assistência social, casas de repouso e prisões;
  • sistema imunológico enfraquecido devido à má nutrição, negligência, institucionalização e falta de moradia, inclusive em crianças e idosos com deficiências psicossociais;
  • consequências a longo prazo da violência e abuso físico, psicológico e sexual, particularmente contra mulheres com deficiências psicossociais;
  • relutância em acessar o sistema de saúde devido a experiências de discriminação, indiferença, negligência, violência e traumatização nesse sistema;
  • condições de saúde subjacentes, como diabetes e hipertensão, causadas ou exacerbadas por drogas psiquiátricas, frequentemente administradas contra a vontade das pessoas ou sob consentimento forçado; e
  • barreiras no acesso aos cuidados de saúde e falta de cobertura dos planos de saúde.

Os Estados têm a responsabilidade, sob o direito internacional, de respeitar e garantir os direitos humanos das pessoas com deficiência psicossocial em pé de igualdade com os demais. Essa responsabilidade é aumentada durante uma emergência nacional e global, como a pandemia do COVID-19. As vulnerabilidades destacadas durante a pandemia como resultado de discriminação estrutural, legislação discriminatória e práticas de exclusão e violência, tanto nas comunidades como nos ambientes de assistência médica e social, devem ser levadas em consideração e sanadas durante e após a emergência.

Lembramos aos Estados que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência exige que os Estados abolem internações e tratamentos involuntários em contextos de saúde mental e libertem os detidos e tratados contra sua vontade sob tais regimes. Essa obrigação não é suspendida durante a pandemia do COVID-19, pois a detenção discriminatória nunca é justificada, nem a administração de tratamentos que alteram a mente contra a vontade de uma pessoa.

Apelamos aos governos nacionais e locais para que implementem as seguintes medidas:

Contextos Institucionais

  • Reduzir drasticamente o número de pessoas em unidades psiquiátricas e instituições e instituir uma moratória sobre admissões involuntárias.

Ser assegurado de que ninguém seja obrigado a permanecer em tais ambientes contra sua vontade, onde eles correm maior risco de infecção, doenças mais graves e morte.

  • Implementar urgentemente medidas sanitárias e preventivas para evitar infecções em unidades e instituições psiquiátricas, instituições de assistência social e casas de repouso, incluindo limpeza e desinfecção ambiental, circulação de ar, higiene regular das mãos e acesso gratuito a suprimentos sanitários, como sabão, desinfetante para as mãos, papel higiênico e toalhas de papel. As pessoas não devem ter que ir a um local centralizado para obter suprimentos sanitários. A equipe deve ser obrigada a cumprir todas as medidas sanitárias e preventivas.
  • Que se interrompa o uso de reclusão, restrições, medicamentos não consensuais e qualquer restrição ao uso de lavatórios em unidades e instituições psiquiátricas. Além de contrárias à dignidade e integridade das pessoas, essas práticas inevitavelmente geram condições insalubres e causam estresse severo e deterioração física, resultando em uma imunidade enfraquecida.
  • Que se proporcione às pessoas em unidades psiquiátricas, instituições e casas de grupo acesso às informações mais recentes sobre o COVID-19 e que se permita que elas mantenham contato com seus amigos e familiares. As pessoas não devem ser proibidas de sair de seus quartos ou ter contato com o mundo exterior como forma de prevenir infecções. Embora sejam necessárias medidas preventivas para evitar infecções dos visitantes, as políticas gerais de restrição de visitantes não podem ser desproporcionais e expor as pessoas a mais abusos e negligências. Meios alternativos para manter contato, como telefone e Internet, devem ser permitidos sem restrições.
  • Reduzir drasticamente a população em cadeias, prisões e casas correcionais, inclusive libertando aqueles que estão em julgamento, presos por delitos não violentos ou programados para serem libertados em breve, incluindo pessoas com deficiências psicossociais sob bases equivalentes as das outras pessoas.
  • Garantir, em todos os casos, que as pessoas privadas de liberdade e as institucionalizadas sejam testadas em tempo hábil, dada a sua vulnerabilidade diferencial, e que todas essas instituições implementem medidas sanitárias e preventivas adequadas. Quando um surto ocorre em um ambiente institucional, as pessoas afetadas devem ser transferidas para unidades de saúde competentes e o restante deve ser removido do ambiente infeccioso. Qualquer esforço de quarentena não deve resultar em pessoas sendo colocadas em ambientes mais restritivos, como confinamento solitário.

Não-discriminação

  • Garantir que as pessoas com deficiência psicossocial tenham igual acesso a testes, cuidados de saúde e informações públicas relacionadas ao COVID-19. Cuidados de saúde de qualidade devem ser prestados às pessoas infectadas, sem discriminação de qualquer tipo e independentemente da cobertura do seguro de saúde. As pessoas com deficiência psicossocial não devem ser desviadas dos principais hospitais para as unidades e instituições psiquiátricas para tratamento, onde os cuidados com a saúde do COVID-19 costumam ser de padrão inferior.
  • As restrições públicas baseadas na saúde pública e as ações das equipes de aplicação da lei e segurança não devem discriminar de forma alguma as pessoas com deficiência psicossocial. As medidas coercitivas psiquiátricas não devem ser usadas como parte da resposta ao COVID-19. Os padrões e mecanismos de direitos humanos que oferecem proteção às pessoas privadas de liberdade e às pessoas em locais de institucionalização, incluindo as de unidades e instituições psiquiátricas, devem permanecer em vigor e não devem ser reduzidas como parte de medidas de emergência.
  • Ninguém deve ser obrigado a tomar medicamentos psiquiátricos ou outros tratamentos que causam sofrimento e comprometem sua saúde ou sistema imunológico. As ordens de tratamento compulsório devem ser levantadas e nenhuma nova introduzida, conforme exigido pelo direito internacional.
  • Garantir que as pessoas com deficiência psicossocial não sejam discriminadas ao acessar as medidas temporárias implementadas pelos governos para garantir a continuidade dos serviços durante o surto de COVID-19, incluindo programas de educação e proteção social.

Suporte da comunidade

  • Que se garanta o acesso contínuo ao suporte para pessoas em sofrimento psíquico ou estados incomuns de consciência durante o surto do COVID-19, inclusive por meio de atendimento psicossocial por telefone e on-line e suporte por pares, com base no respeito à vontade e às preferências individuais.
  • Que se intensifique os esforços para desenvolver uma ampla gama de serviços baseados na comunidade que atendam às necessidades das pessoas com deficiências psicossociais e respeitem a autonomia, as escolhas, a dignidade e a privacidade das pessoas, incluindo o apoio de colegas e outras alternativas aos serviços de saúde mental convencionais.
  • Que se garanta o acesso voluntário a medicamentos psiquiátricos durante o surto de COVID-19 para aqueles que os querem e oferecer apoio a quem quiser interromper a medicação ou estão em processo de redução da medicação psiquiátrica.
  • Que se prepare e incentive as comunidades a apoiarem-se de maneira inclusiva, incluindo as pessoas com deficiências psicossociais, durante o surto de COVID-19. Isso é especialmente importante, pois a quarentena obrigatória, o confinamento doméstico e a sobrecarga de informações podem resultar em estados de angústia elevados.
  • Que se forneça apoio prático, como apoio na obtenção de alimentos e suprimentos, para pessoas com deficiências psicossociais que talvez não possam sair de casa devido à quarentena ou que tenham dificuldade em sair de casa durante esse período de preocupações elevadas sobre contaminação.
  • Que se considere mecanismos flexíveis para autorizar as pessoas com deficiência psicossocial a deixarem suas casas durante quarentenas obrigatórias, por curtos períodos e de maneira segura, quando tiverem dificuldades específicas com o confinamento em casa.
  • Que se adote medidas financeiras adicionais para apoiar as pessoas com deficiências psicossociais que talvez precisem se auto-isolar durante o surto de COVID-19, particularmente aquelas que vivem na pobreza, ou estão desempregadas ou são autônomos.
  • Que se incentive a mídia a relatar de maneira responsável sobre o surto de COVID-19 e a população em geral a exercitar pensamento e julgamento críticos ao ler e compartilhar informações nas plataformas de mídia social.

Grupos vulneráveis

  • Fornecer acesso a informações de violência doméstica para apoiar as pessoas, incluindo crianças, sofrendo abuso e violência em casa. Pessoas com deficiências psicossociais, de qualquer idade, podem experimentar um risco aumentado de abuso e violência durante a quarentena ou isolamento doméstico.
  • Realizar atividades de sensibilização da comunidade para identificar e resgatar pessoas com deficiências psicossociais privadas de liberdade ou maltratadas em casa ou dentro das comunidades, inclusive por meio de algemas e cordas, e fornecer apoio adequado a elas de uma maneira que respeite seus direitos humanos.
  • Garantir o acesso de pessoas sem-teto, incluindo pessoas com deficiências psicossociais, a medidas preventivas contra a infecção por COVID-19, como acesso a instalações sanitárias limpas e bem supridas, além de testes e tratamento, sem discriminação, e de uma maneira que respeite seus direitos humanos. Os governos devem garantir que as pessoas com deficiência psicossocial desabrigadas durante o período de isolamento social não sejam maltratadas pelas autoridades e recebam água, comida e abrigo em igualdade de condições como as demais pessoas.
  • Garantir a prestação contínua de serviços de redução de danos, como programas de agulhas e seringas e terapia de substituição de opióides, para impedir a disseminação do COVID-19 entre os usuários de drogas.

Participação

  • Consulte e envolva ativamente pessoas com deficiências psicossociais e suas organizações representativas na resposta do Estado ao surto de COVID-19.
  • Envolva as pessoas com deficiência e suas organizações representativas no monitoramento independente dos ambientes institucionais.