Gaslighting: devemos rotular as vítimas como psicóticas ou abusadas?

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Numa reunião social, uma mulher fica inexplicavelmente em pânico e histérica; seu marido suavemente a leva para longe do olhar do público. Para os espectadores desinteressados, ela parece ser um desastre emocional, ele um protetor nobre. Eles respeitam o seu cavalherismo, talvez tenham um pouco de pena dele. Em segurança, em casa, sua exasperação brota: “Se eu pudesse entrar naquele seu cérebro e entender o que faz você fazer essas coisas loucas e distorcidas!” No entanto, sabemos do que sua esposa nem suspeita: que ele próprio tem lentamente plantado as sementes de sua angústia e insegurança e está planejando tirá-la de si.

A cena vem do filme de 1944 de Ingrid Bergman, Gaslight, a segunda adaptação cinematográfica de uma peça teatral antiga. Nela, a personagem de Bergman, Paula, é pouco a pouco manipulada pelo marido para acreditar que está perdendo a cabeça. Ele move objetos pela casa para confundi-la, rouba seus pertences enquanto afirma que ela os perdeu, e seus misteriosos e secretos empreendimentos no sótão fazem as luzes piscarem e escurecerem, o que só Paula vê, fazendo com que ela duvide da sua própria sanidade mental. O título do filme, portanto, diz respeito a essa forma de abuso psicológico, ‘gaslighting’.

Essencialmente, gaslighting é um termo usado na psicologia para descrever o abuso psicológico que resulta quando uma pessoa tenta convencer a outra de que ela é louca. No filme, o espectador está plenamente ciente de que Paula não é louca e que seu marido não é uma boa pessoa. No entanto, isso não é aparente para as pessoas ao seu redor, incapazes de ver o que está acontecendo a portas fechadas em sua casa. Na verdade, quando ela está fora de casa e com o marido muitas vezes ele faz um truque ou dois, para que ele possa mostrar a sua confusão, estresse e histeria às testemunhas, como se tudo isso fizesse parte de uma trágica queda de Paula na loucura. A própria Paula confia em tudo isso e não consegue entender o que está acontecendo.

À medida que o filme avança e sua ‘condição’ imaginada se deteriora, seu marido informa que dois psiquiatras virão para examiná-la e assim poderem levá-la para receber a ‘ajuda’ de que precisa – ou seja, para leva-la a viver em um asilo psiquiátrico. Felizmente, sendo Hollywood e Ingrid Bergman uma detetive bonita e observadora, o personagem de Ingrid Bergman suspeita do que está acontecendo, chega em cima da hora antes que ela possa ser institucionalizada. A questão é, porém, o que teria acontecido se os médicos chegassem lá antes da detetive? Eles teriam diagnosticado Paula como louca, ou haveria uma chance de que eles percebessem que ela era vítima de uma campanha de abuso emocional e psicológico nas mãos do homem que ela achava que a amava?

Tendo conseguido escapar de um relacionamento psicologicamente abusivo, infelizmente apenas depois de anos de ‘tratamento’ dentro do sistema psiquiátrico, eu argumentaria fortemente que eles quase certamente não teriam reconhecido a manipulação. Os psiquiatras, com a importância que colocam nos rótulos dos diagnósticos, em vez de descobrir as causas principais do sofrimento, têm pouca chance de perceber quando o comportamento é resultado do abuso de outras pessoas. Meu parceiro também foi capaz de convencer a mim e àqueles que estavam ao meu redor que eu estava louca, que eu não tinha discernimento e que minhas preocupações (inclusive sobre ele) eram manifestações de meus ‘delírios paranoicos’.

Começou quando tentei deixá-lo pela primeira vez. Não tendo família a quem recorrer, eu não tinha para onde ir, e o estresse de tudo isso me levou a desmoronar. Meu parceiro me levou a um médico. Eu estava exausta principalmente depois de semanas bebendo muito e da falta de sono, mas o clínico geral me encaminhou a um psiquiatra. Vejo como isso pode acontecer: as orientações do NHS sobre o que observar como indicadores de psicose incluem: alucinações; delírios; pensamentos confusos e perturbados; e falta de discernimento e autoconsciência *. Como se vê, pode-se esperar que o mesmo resulte de uma combinação doentia de insônia, embriaguez e difamação constante. Curiosamente, essas são todas as características que um médico também teria visto em Paula.

O gaslighting que eu experimentei acelerou quando comecei o tratamento no sistema psiquiátrico. Meu parceiro se posicionava como meu cuidador e meus amigos costumavam me dizer que, considerando minha ‘condição’, eu deveria estar agradecida por ter alguém por perto tão dedicado ao meu bem-estar. Essa condição nunca foi questionada por ninguém. Meu parceiro me acompanhava a consultas psiquiátricas, onde os profissionais o ouviam com simpatia, valorizando sua perspectiva sã. Ele também me aconselhava dizendo que um grande problema que eu tinha era a falta de discernimento e que ele poderia me ajudar a ver as coisas corretamente. Tanto controle ele tinha sobre mim e sobre a minha chamada doença que ele até assumiu a responsabilidade de monitorar os medicamentos antipsicóticos que eu estava tomando. Ele se assegurava que eu nunca deixasse de toma-los, exceto nas noites em que ele queria que eu me juntasse a ele para beber; nessas ocasiões, ele generosamente me permitia uma noite de folga dos comprimidos. Quando o acusava de tentar ser meu médico, ele ficava bravo e eu deixava para lá – afinal, ninguém mais do que eu iria considerar que o problema pudesse ser algo fora da minha própria biologia. Se eu tentasse novamente deixá-lo, ele diria aos meus amigos que eu estava tendo uma recaída, e isso era aceito por todos, novamente me deixando sem a quem procurar por apoio.

Levei muito tempo para me dar conta de que estava sendo vítima do fenômeno chamado de ‘gaslighting’. De fato, eu não tinha palavras para descrever a experiência até anos depois de finalmente haver escapado dela, quando me deparei com o termo por acaso. O que é pior, sempre que falo agora com os meus atuais amigos sobre o meu relacionamento no passado, fico horrorizada ao descobrir como são comuns os relacionamentos manipulativos. Felizmente, a maioria dos que compartilharam suas experiências comigo têm famílias que os ajudaram a escapar. Eu não. As únicas pessoas a quem eu poderia pedir ajuda eram os psiquiatras, porque no Reino Unido o sistema médico é para onde você é enviado com ‘sintomas’ como os meus. Eu nunca posso voltar atrás e provar que estava sofrendo de ‘gaslighting’, desse tipo de manipulação psicológica, por isso estou ainda hoje presa a um diagnóstico psiquiátrico. Existe uma ideia risível de que as condições de saúde mental dependem da susceptibilidade de cada um, que sim, nossas experiências têm impacto sobre nossas mentes, mas nem todo mundo reage psicoticamente, por isso faz sentido rotular àqueles que assim reagem como eles tendo algum desequilíbrio químico subjacente. No entanto, quem poderia experimentar o nível de controle de um parceiro como eu sofri – ou o trauma que Paula sofre no filme – sem emergir traumatizado?

Então, o que pode ser feito com respeito a esse problema? O fenômeno do ‘gaslighting’ tornou-se muito mais conhecido recentemente, e isso é progresso. As vítimas precisam de uma palavra para descrever o que lhes está sendo feito, para saber que está errado e que podem escapar. Além disso, popularizar o termo significa que mais pessoas passem a enxergar o disfarce do agressor e passem a dar apoio à vítima. Isso irá exigir uma conscientização mais ampla sobre o fato de que os rótulos de diagnóstico não são validados cientificamente e são, na melhor das hipóteses, opiniões subjetivas de médicos que não veem o paciente na realidade do mundo ao seu redor. Enquanto isso, o sistema precisa mudar para evitar a recorrência do que aconteceu comigo. “Controlar ou agir de forma coercitiva em um relacionamento íntimo ou familiar” agora é um crime na Inglaterra e no País de Gales e que leva uma sentença de prisão. O sistema de saúde precisa recuperar o atraso; os psiquiatras devem parar de ficar cegos para qualquer coisa, exceto para os rótulos de diagnóstico, como os que ativamente vieram a favorecer ao meu parceiro em seu abuso, e perceber que consequências psicológicas graves e de longo prazo podem ser causadas por vários abusos traumáticos cometidos a portas fechadas, e não apenas os óbvios.

Esse problema não afeta exclusivamente às mulheres, mas os pesquisadores reconhecem um aspecto de gênero no fenômeno ‘gaslighting’, dada a frequência com que na sociedade as respostas de uma mulher a determinadas situações são consideradas como irracionais e super emocionais, enquanto se supõe que os homens tenham o monopólio da razão. Para uma mulher que nunca foi ouvida quando mais importava, agora é quase impossível imaginar contar com um psiquiatra acredite na minha história e corrija o erro de me haverem rotulado, uma etiqueta que vem causando tantos problemas em minha vida, mesmo depois de eu ter conseguido me livrar do meu relacionamento abusivo. Essencialmente, o que o campo psiquiátrico precisa fazer é ouvir, e não apenas isso, mas ouvir e realmente acreditar nas experiências das pessoas.

Ainda não tenho ideia se a manipulação do meu parceiro foi deliberada ou se ele realmente acreditava que eu estava doente. O marido assassino de Paula no Gaslight é claramente maligno, mas de qualquer forma o resultado é o mesmo: a manipulação causa intenso sofrimento e danos. O marido de Paula por fim recebeu a sua punição. Não existe um conto de fadas para muitas vítimas da vida real que têm que tentar provar sua sanidade em face de algo tão perniciosamente abusivo quanto o ‘gaslighting’.

* Nota do editor: no momento da redação deste blog, as orientações do NHS on-line identificavam quatro principais indicadores de psicose, incluindo “falta de percepção e autoconsciência”. Esta informação foi atualizada em dezembro de 2019 para limitar os principais sintomas a alucinações, delírios e pensamentos confusos ou perturbados.

[Originalmente publicado em Mad in the UK. Trad. Fernando Freitas]

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E.M. Carr E.M. Carr escreve sob um pseudônimo, mantendo sua identidade secreta até algum momento futuro, quando são os psiquiatras que se envergonham de seus tratamentos passados e não pessoas que sofreram bastante sofrimento ao lidar com aspectos desse mundo às vezes desagradável em que vivemos. Tendo deixado para trás sua vida de ser informada de que sempre usaria pílulas, ela obteve um mestrado em psicologia para desafiar a idéia de que nunca poderia ter uma ideia de sua 'condição'. Lendo artigos científicos, ficou horrorizada ao descobrir a falta de ciência real por trás diagnósticos psiquiátricos e ela usa esse conhecimento como escritora para trabalhar por um mundo melhor além do atual modelo médico desumano de sofrimento mental.