O livro Filosofia e Psicanálise: Psicopolítica e as Patologias Contemporâneas traz o capítulo A liquefação da psicopatologia psiquiátrica: uma estratégia
psicopolítica de estimulação ao consumo de psicofármacos” cujo autor é Artur Santos Cardoso.
O capítulo discute o crescente número de pessoas diagnosticadas com algum tipo de transtorno mental, apesar dos avanços da psicofarmacologia. Para dar início a discussão, o autor cita o livro Anatomia de uma Epidemia, de Robert Whitaker. Segundo investigações realizadas por Whitaker, o aumento estrondoso nas vendas de psicofármacos se dá pela associação da indústria farmacêutica com a psiquiatria, gerando lucros financeiros para ambas partes.
Mas não para por aí, o autor também chama nossa atenção para a enorme quantidade de diagnósticos reconhecidos pela psiquiatria. Na mais recente versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) encontram-se impressionantes 446 psicopatologias diferentes. O que pode estar influenciando os elevados números de prescrição de psicofármacos.
“Basicamente, com mais psicopatologias surgindo e com mais diagnósticos sendo dados, automaticamente se tem mais medicamentos psiquiátricos sendo vendidos, e por conseguinte, mais lucro sendo gerado.”
A partir disso, o autor defende que a lógica mercadológica da psicopatologia psiquiátrica encontra representação na ideia de psicopolítica do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han. A psicopolítica são técnicas de controle modernas, usadas pelo neoliberalismo para dominar a população. Como consequência as subjetividades são atravessadas por ideias capitalistas.
“Uma das artimanhas psicopolíticas para tal, envolve criar demandas sociais para a população, ao mesmo tempo em que se oferece produtos e mercadorias que prometem ir ao encontro dessas demandas.”
O mesmo acontece com a psicopatologia psiquiátrica. Quanto mais transtornos existam, mais pessoas são diagnosticadas, gerando a “necessidade” de usar psicofármacos. Isso é reafirmado por Z. Bauman, quando diz que a sociedade líquido-moderna, também é uma sociedade de consumo/consumidores. Na sociedade de consumidores tudo se converte em mercadoria.
O capítulo coloca como modelo de “psicopatologia líquida” a esquizofrenia. O motivo dessa escolha se deve em razão das mudanças pelas quais a categoria sofreu ao longo do tempo, tornando-se um bom exemplo para demonstrar a inconstância das categorias diagnósticas do DSM. Essas mudanças não poderiam ser considerados avanços científicos, simplesmente porque as exclusões e inclusões que ocorrem no DSM, assim como as alterações nas categorias, nomes de transtornos e até mesmo o planejamento de cada revisão, não ocorrem por motivos de pesquisas e estudos científicos.
“Isso fica óbvio quando olhamos, por exemplo, para a inserção do Transtorno de Estresse Pós-Traumático e para a exclusão do, eté então, homossexualismo, ambos no DSM-III. Tanto a inserção do primeiro, como a exclusão do segundo, ocorrem devido à lutas sociais e protestos na década de 1970, que exerceram influência direta sobre o momento de construção do DSM-III.”
O autor justifica que a fronteira entre o normal e o patológico foi destruída, e como consequência, as experiências humanas estão sendo cade vez mais patologizadas. Ao mesmo tempo, em uma sociedade individualista e consumista, a culpa pela doença é colocada no sujeito e no seu próprio corpo, desresponsabilizando qualquer contexto social. Logo, se o sofrimento do individuo é explicado por anomalias cerebrais, o uso de psicofármacos passa a fazer todo o sentido. Dessa forma, o paciente passa a ser também antes de mais nada um consumidor.
Com isso, o autor conclui que a sociedade contemporânea possui um novo modelo de gestão, a psicopolítica. Ao invés do controle do Estado, vivemos o controle do mercado. O objeto de intervenção, por sua vez, não é mais os corpos, mas as psiquês.
O neoliberalismo, por meio da psicopolítica, nos dá a falsa sensação de liberdade, criando necessidades que acreditamos ser nossas, e para saciar tais necessidades, é preciso consumir. Portanto, a experiência do sofrimento e da dor serve como um despertador social, lembrando que hora é de consumir.
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CARDOSO, A.S. A liquefação da psicopatologia psiquiátrica: uma estratégia
psicopolítica de estimulação ao consumo de psicofármacos. In: DE CASTRO, F.C.L.; DA ROSA, B.J.; MARQUES, C. (org.). Filosofia e Psicanálise: Psicopolíticas e Patologias Contemporâneas. Vol. 1. Porto Alegre: Fundação Fênix, 2020. p. 177-202.