A área da psicopatologia é atravessada por diversas controvérsias no campo teórico, prático, ético e metodológico. O artigo de David Borges Florsheim, publicado na revista Psicologia em Estudo, aborda a existência de absolutismos nessa área do saber, tais como universalismo, objetivismo e funcionalismos, dificultando o diálogo entre os profissionais e prejudicando o cuidado da pessoa em sofrimento mental.
Na psicopatologia as informações sobre o sofrimento do indivíduo são obtidas pelo próprio relato verbal, da pessoa em sofrimento, da família ou por observação clínica. Com tantas teorias dentro da psicopatologia, há uma questão problemática: como ter garantias sobre a veracidade e a credibilidade científicas dos modelos utilizados? Primeiramente, o autor propõem entender o que se entende por objetividade.
“Dentre tantos problemas existentes neste cenário tão plural como é a psicopatologia, existe uma questão especialmente problemática, referente a como os profissionais dos diferentes modelos explicativos da doença mental lidam com a questão da objetividade do conhecimento.”
Objetividade é um termo bem complexo, Gaukroger (2012) define cinco sentidos diferentes para ele. O primeiro seria julgar objetivamente as coisas, como um ato livre de preconceitos e vieses. O segundo se refere a um julgamento livre de pressuposições e valores. O terceiro entendimento de objetividade se refere à relação com suas próprias concepções e teorias, se referindo a certos tipo de procedimento que deveriam ser seguidos para se obter a objetividade do conhecimento. O quarto fala sobre haver uma representação precisa da realidade, orientando como direcionar os julgamentos. Por fim, o quinto entendimento de objetividade afirma que para algo ser objetivo deve levar à conclusões aceitas universalmente.
No campo científico, a ideia de produzir um conhecimento neutro, livre de preconceitos, vieses, pressuposições e valores, continua hegemônico de uma forma geral. Na psicopatologia não é diferente. O universalismo, objetivismo e fundamentalismo, abordados pelo artigo, partem da visão dessa objetividade própria da visão científica tradicional (iluminista).
O universalismo se refere a aquilo que extrapola algo particular para um nível universal. Um conhecimento objetivo seria, portanto, um conhecimento universal. No pensamento científico o universalismo é uma constante, apesar de muitos autores considerarem que as diferenças culturais afetam o tratamento e os sintomas mentais, elas costumam ser abordadas de maneira superficial.
“A ideia aqui é a de, por exemplo, a esquizofrenia existir fundamentalmente da mesma forma em todas as partes do mundo. As diferenças encontradas na manifestação da doença, ou seja, as questões particulares/subjetivas de cada contexto social (tais como o conteúdo dos delírios e das alucinações) seriam pouco relevantes para o entendimento do transtorno mental.”
A ideia central para o autor é questionar, enquanto psicopatologistas, são capazes de apresentar uma observação neutra sobre uma suposta realidade objetiva. O autor então propõem refletir sobre o fundacionalismo cartesiano, o qual procura encontrar um alicerce ou um princípio último que sustente os demais. Sua característica fundamental é que crenças básicas não devem ser questionadas.
“O modelo de psicopatologia hegemônico atualmente, o modelo biológico ou neuropsiquiátrico, possui ao menos duas crenças fundacionais, como afirmam Berrios e Marková (2002). Para os defensores desse modelo, os transtornos mentais na verdade seriam transtornos cerebrais e, além disso, apenas esse modelo de psicopatologia possuiria o patrimônio da verdade científica. Segundo Berrios e Marková (2002), as crenças fundacionais não podem ser provadas, mas ainda assim raramente são confrontadas por aqueles que adotam o modelo biológico.”
O autor conclui que o objetivismo, fundacionalismo e universalismo podem ser considerados como absolutismos, pois propõem buscar estabelecer verdades definitivas em relação ao tempo e espaço. Com isso, a subjetividade, questões culturais, sociais e mesmo teóricas, são desprezadas em nome de uma suposta objetividade do conhecimento.
“O uso de concepções absolutistas para a defesa de um modelo explicativo pode impedir a valorização de proposições alternativas a respeito do sofrimento psíquico.”
As concepções defendidas por pesquisadores são sempre interpretações possíveis do mundo. O autor defende que é necessário ter uma visão pluralista, o que significa valorizar uma existência dialógica e democrática. Para ele, os psiquiatras não deveriam estar completamente comprometidos com um modelo específico, mas manter sempre uma visão crítica, pluralista e de diálogo, como forma mais útil e válida para o tratamento em saúde mental.
***
FLORSHEIM, David Borges. PSICOPATOLOGIA E ABSOLUTISMOS: UNIVERSALISMO, OBJETIVISMO E FUNDACIONALISMO NA SAÚDE MENTAL. Psicol. Estud., Maringá , v. 25, e45334, 2020 . (Link)