Ressentimismo: a política dos ressentidos e as patologias da democracia

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No cenário brasileiro atual, uma crise bombástica se configura, da qual somos de certa forma reincidentes. Deixamos um tempo em que existia a preocupação com a manutenção de valores democráticos e de justiça social para uma preocupação efetiva em não recairmos em regimes autoritários e militares cujos efeitos são sentidos até hoje. Ainda não conseguimos curar as cicatrizes dos tempos da ditadura e ainda corremos o risco de vida, uma vez que estamos nas mãos de políticos autoritários e despreparados. Mas, como chegamos tão fundo?

Ao mesmo tempo em que a educação foi sendo esvaziada enquanto mecanismo de transformação social, ela passou a ser abertamente encarada como um problema estritamente técnico do qual não caberia ao Estado se encarregar.  O debate em torno da educação foi esvaziado, abortado, bem como sua capacidade de promover pensamento crítico. Pensamento crítico? Justiça social? Coisa de esquerdista. Preocupação com a saúde pública? Coisa de esquerdista. Vacina? Necessidade de políticas públicas para a contenção da pandemia? Cuidado com a população? Distanciamento social? Contagem de infectados e mortes? Coisa de esquerdista. Para todos esses questionamentos e muitos outros as respostas são basicamente as mesmas, restritas à criação de falsos dilemas que impedem o prolongamento do debate.

A (des) articulação entre os aspectos políticos, sanitários, econômicos e sociais necessita ser repensadas para que novas estratégias de enfrentamento sejam possíveis. Contudo, é importante valorizar os dispositivos que ainda operam (a duras penas) de modo eficaz em nossa sociedade com vistas a promoção de saúde e redução da desigualdade. Esta crise sem precedente que afeta o Brasil exponencialmente é contemporânea ao momento delicado que o mundo atravessa com a ascensão das extremas direitas, a difusão de discursos segregatórios embebidos de ódio e ressentimento que visam extirpar a diferença.

A psicanalista francesa Cynthia Fleury se debruça sobre o que ela denomina como “ressentimismo” e “pulsão ressentimista” na tentativa de perfilar o cenário contemporâneo. Para a autora, a pulsão ressentimista é socialmente criada, ou seja, existem condições objetivas, coletivas e sociais de desigualdade, injustiças sociais, insegurança cultural e socioeconômica. O sentimento de instabilidade política produz a pulsão ressentimista. O ressentimento passa a se apresentar sob a forma de ruminação que constitui uma prisão cristalizante. A partir desta dinâmica, o sujeito projeta uma indiferença sobre o mundo e cria teorias conspiracionistas delirantes que se traduzem política e coletivamente na binarização: nós x eles.

Na paranoia conspiracionista há a recusa da complexidade e a morte do debate que são tão importantes para a democracia. Neste estado de desolação profunda, apenas o líder pode nos “salvar” do que está sendo disseminado. Contudo o líder potencializa, instrumentaliza e confirma a pulsão ressentimista.

O elo entre o ressentimento e o movimento conspiracionista se expande e configura a ponta de um iceberg cujo prolongamento abarca a desconfiança sobre a própria ciência e referenciais político-democráticos. O delírio de perseguição e a convicção delirante elimina o discernimento, a razão, a argumentação e a dialética.

A peste emocional que vivenciamos se utiliza de qualquer signo para a confirmação de teses conspiratórias (das mais variadas possíveis) que produzem o confinamento daquilo em que se crê. Nesse sentido, esses avatares genéricos que tendem ao fascismo servem-se da convicção. A certeza e o delírio andam juntos, lado a lado. Para sair deste estado é imprescindível sublimar a tentação ressentimista para que se possa (re) agir e responder politicamente.

Por isso, é importante nos determos tanto nas dimensões políticas do adoecimento como a participação do imaginário na produção de patologias sociais com dimensões políticas. É valido destacar que, conforme diz Safatle (2018), as patologias sociais nos dias atuais suscitam uma reflexão sobre as patologias enquanto categorias que descrevem modos de participação social, e não como uma mera reflexão sobre a sociedade enquanto organismo saudável ou doente.

Se cada época e cada cultura produz suas próprias patologias, cabe interrogarmos quais patologias estão sendo produzidas e estruturadas hoje em dia com significativas ameaças à democracia e aos ideais democráticos.

 Referências

Fleury, Cynthia. (2005). Les pathologies de la démocratie. Paris: Fayard.

Safatle, V. (2018). Em direção a um novo modelo de crítica: as possibilidades de recuperação contemporânea do conceito de patologia social. Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. 1ª ed. Ed. Autêntica, Belo Horizonte, MG.