Morreu hoje o meu torturador

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Morreu hoje o meu torturador*

Hoje, 2 de fevereiro de 2021, recebi a notícia que o Dr. Emílio Fleur Filho faleceu. A notícia chegou via mensagem de celular, no grupo da família. Alguns lamentaram sua partida, outros só manifestaram pêsames, mas eu…. Eu nem sei o que senti, apenas pensei “Morreu hoje o meu torturador!”.

Morreu hoje o homem que, olhando para os olhos dos meus pais desesperados, perdidos e sem chão diante da desgraça que se acometera em suas vidas, disse: “Disso eu entendo bem e como ela já tratei mais de cem!”. Lembro como se fosse hoje, o tom sério e formal em sua voz, nas frases que se seguiram a essa. Seu semblante de seriedade e atenção a cada palavras que meus pais diziam. Ele fez questionamentos sobre meu comportamento, as coisas que eu falava e escrevia, às vezes balançava a cabeça como quem reprova o comportamento, mas confirma sua hipótese. Em algum momento ele, em tom de sarcasmo e indignação, questiona (de forma retórica): “Como pode uma menina falar em corrupção no Brasil? O que vocês andam deixando ela assistir?”.

Pois é, como podia eu, uma meninA, falar de política e em corrupção no Brasil de 1992, sob o governo de Fernando Collor de Mello (mal sabíamos que meses depois de anões do orçamento e PC Farias, o presidente desceria a rampa do planalto). Fica aí a pergunta: “Como uma criança pôde perceber o que nem um adulto, um doutor, poderia notar?” Coisa de louco, né?

Esse foi nosso primeiro de muitos encontros, mas ainda nesse dia, depois de mais de meia dúzia de respostas atônitas dos meus pais, ele rabiscando no bloco de papel na sua mesa, carimba a papelada toda e, ao assinar, afirma: o que ela tem é esquizofrenia! Minha mãe, com todo conhecimento que tinha na época sobre esse negócio, pergunta: “Doutor, isso quer dizer que ela é doida?”. Ele riu e cordialmente disse que não se poderia mais falar assim, pois com o avançar da medicina esse nome tinha ficado no passado e que na “literatura” o certo era esquizofrenia.

Essa palavra ficou vibrando na minha cabeça, até hoje não sei se foi pelo zumbido da letra “z” ou se pelo estrondo da porta sendo aberta por homens vestidos de branco e me segurando para me dar uma injeção que eu nem tava me opondo a tomar.

Depois disso, só lembro do zumbido da letra “z” na minha cabeça, quando acordei não estava em casa, não era minha cama e o cheiro de urina ardia meu nariz, desejei parar de respirar naquele minuto. Quantas outras coisas eu teria evitado se tivesse levado a cabo esse meu desejo….

A volta pra casa foi estranha, eu não sabia o que sentir, aliás, nem sei se eu sentia alguma coisa, mas os olhos arregalados de minha mãe e os suspiros do meu pai enquanto ele passava as mãos nas costas dela, já era um prenúncio do que viria. Apesar dos olhares e do exagero nos cuidados e na forma de falar comigo, eu até achei bom! Eu me senti cuidada, parecia que naquele momento todo mundo, enfim, prestava atenção em mim.  Eu sorri.

Achei que esse era o momento certo e desandei a falar, contei tudo, absolutamente tu-do que aconteceu naqueles dias que fiquei naquele lugar (nem sei precisar quantos). Falei da urina na roupa, no chão e nos colchões; contei dos toques dos enfermeiros e médicos no meu corpo; falei da sensação de que o mundo girava e que as paredes pareciam moles quando eu me apoiava e disse, com toda a certeza do mundo, que eu devia estar com problemas de vista pois tudo, do nada, ficava turvo, escuro e eu não conseguia mais nem ler as letras na página de um livro. Justo eu, que sempre amei ler livros e lia os jornais porque minha avó dizia que eu deveria ser jornalista.

Eles ouviram tudo atentamente, em alguns momentos se entreolhavam, respiravam fundo, mas voltavam a me enxergar. No dia seguinte, estava eu sentada diante do Dr Emílio, ele explicava aos meus pais que uma jovem, com o corpo como o meu, não devia andar por aí com roupas que chamassem atenção, pois não se podia prever nem controlar o que poderia despertar nos homens. De resto, ele avaliava que eu continuava com delírio. Deslizei no “lírio” de suas palavras e não ouvi mais nada. Até hoje não posso com o cheiro dessa flor, eca! Minha mãe caiu em lágrimas!

Depois, quando passei a estudar sobre isso, quando descobri que era possível ser tratada sem ser presa, sem medicamentos e que eu seria capaz de estudar, quem sabe até ter uma profissão, ter filhas e tudo isso que todo mundo faz, sabe? Eu achei que tudo isso era possível sem continuar sendo tratada como “louca”. Mas, a gente percebe o peso da loucura quando até quem é próximo a você diz que o que você está dizendo não pode ser dito na academia ou que não serve prá ensinar gente que quer ser doutor.

Quando li a notícia da morte do meu torturador, lembrei daqueles olhos verdes claros com a parte branca mais vermelha que branca e daquele cheiro que parecia éter ou algum desses produtos químicos que médico usa. Ele me olhando fixamente, com as mãos na minha cabeça e dizendo “Fique calma! Podem ligar” e aquele zzzzzzzzzz

Acho que foi o zumbido que me amorteceu os sentimentos, sei lá, foram tantos comprimidos também. Só sei que, 26 anos depois, não senti nada quando li sobre sua morte. Eu achei que sentiria alívio ou satisfação. Mas, ele morreu em casa, dormiu e não acordou, estava meio gripado e, mesmo com a pandemia, achou que era só mais uma gripe.

Pensando bem, agora eu acho que senti foi inveja, afinal, ele nunca mais vai ter que lidar com todas aquelas memórias de sofrimento que ele causou (…) será que algum dia ele lidou? Sei não, acho que esse negócio de culpa cristã é só para gente mesmo, não serve para doutor. Se tem até gente da ciência que diz que o que ele fazia era correto! Tem pesquisa na universidade, tem livros, tem gente na internet e Ministro de Estado que dizem que o que ele fazia “era o que se tinha de mais avançado em medicina para tratar esses casos” e que essas práticas ainda são mais eficientes. Ou era isso ou a paciente ficava na mão de crendices, dessas que acham que isso podia ser espírito, igual esses que aparecem em novelas e filmes, sabe?

Até medalha, o tal do doutor, dia desses, ganhou! É …. acho que nem inveja eu posso sentir da morte dele, porque o que morreu mesmo foi o sujeito, o indivíduo que praticou todas essas torturas em nome de uma ética, respaldado por uma ciência e por toda uma lógica que ainda tá aí, bem presente em nosso dia-a-dia  O que morreu foi o indivíduo que praticava sua profissão de doutor com aquilo que “há de mais Moderno na sua área”, como ele bem aprendeu nos congressos que frequentou em hotéis de luxo e até fora do país.

Hoje morreu meu torturador, mas as marcas no meu corpo, as imagens na minha cabeça, os olhares de estranhamento e medo direcionados a mim, isso ele não levou pra sua cova! Toda a deslegitimação do meu falar e do meu fazer de mulher louca permanecem presentes nas minhas cicatrizes que sagram à dúvida sobre tudo aquilo que denuncio.

…..

*Essa crônica é uma obra de ficção, qualquer comparação com questões da realidade não é mera coincidência, pois o sofrimento psíquico permanece sendo tratado com o aprisionamento manicomial e medicalização. A tortura ainda vive. Os nomes usados também são fictícios.