Fraude cognitiva e apagão ético na Pandemia do Covid-19

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Quem está chegando ao final de 21 sobreviveu ao biênio mais difícil da história recente; atravessou uma das piores pandemias e uma crise global de canalhice (incapacidade de transcender o próprio umbigo, segundo o professor Clóvis de Barros Filho). Vírus e baixa humanidade fizeram uma aliança e o resultado foram mais de cinco milhões de mortes, no negativo de uma tragédia: a crônica das mortes anunciadas, que não foram evitadas por causa do egoísmo e da indiferença. Negativo de tragédia, porque numa tragédia o desfecho é imponderável. Numa tragédia o destino se impõe apesar da ação humana, e não por causa dela. O vírus encontrou apoio no apagão ético. Vivemos a segunda Idade das Trevas, com o agravante doloso de conhecer de antemão as consequências desastrosas. O boicote às medidas sanitárias simples que teriam evitado 1 a cada 5 mortes (na avaliação do epidemiologista Pedro Hallal), no caso particular do Brasil, colocou o país na vanguarda do movimento canalha, sustentado pela base teórica do negacionismo.

Negar a ciência e a história não é novidade. Galileu e Giordano Bruno foram condenados à morte, porque suas descobertas científicas contrariavam interesses religiosos. O holocausto de judeus durante a Segunda Guerra tem sido negado, apesar das seis milhões de evidências. Magalhães deu uma volta de 360 ao redor do planeta, há meio milênio e, mesmo assim, ainda há quem afirme que a Terra é plana. Desde o século XVIII, vacinas têm salvado bilhões, não obstante, sempre houve os antivacina. Enquanto epidemiologistas alertam sobre o perigo de outras pandemias, discursos anticiência apoiam pandemias. Cientistas sociais precisam denunciar o perigo do apagão ético.

Diante da intensificação de campanhas de desinformação, estudos sobre agnotologia – um neologismo derivado do grego agnosis (ignorância) e logia (estudo) – têm crescido bastante. Trata-se de uma área da ciência que se dedica a estudar a produção cultural e política da ignorância. O conceito foi desenvolvido pelo historiador Robert Proctor, autor de Agnotologia: a construção e a desconstrução da ignorância, de 1995. Estudos encabeçados pelo Social Science Resource Council of New York, mencionados pelo pesquisador brasileiro Renan Leonel, em entrevista à Agência FAPESP, tem trabalhado com a hipótese de que, em países como Estados Unidos, Brasil e Reino Unido, campeões mundiais em casos de Covid-19, a não adesão da população às recomendações da Organização Mundial de Saúde pode ser explicada pela institucionalização do negacionismo que virou, nesses países, discurso oficial e política de Estado. A questão que se coloca aqui é a seguinte: assim como sobrou campanha de desinformação, também não faltou informação. Porque algumas pessoas embarcam na desinformação?

A atitude negacionista não exclui apenas a ciência, mas, também, uma das capacidades mais específicas do gênero humano, que é a empatia, uma vez que não considera os outros na tomada de perspectiva e de decisão. A condição é tão disfuncional que se poderia pensar em doença. Doença, no entanto, afasta a hipótese e a responsabilidade da escolha. Trata-se de uma escolha ou de uma condição? Algumas pessoas são de fato incapazes de reestruturar o pensamento a partir de evidências? Ou escolhem por conveniência no que acreditar, tirando proveito da base teórica deformada?

Distorção cognitiva acontece quando mal interpretamos informações, resultando em consequências negativas e sofrimento desnecessário.  São muitos os exemplos de distorção cognitiva comuns, hoje em dia, envolvendo, sobretudo, as ideias de opinião, liberdade de expressão e democracia.

Contra fatos não há argumentos. Exceto para o negacionista, que costuma ser dotado de uma incrível capacidade cognitiva para elaborar argumentação, que embora careça de lógica e evidência, esbanja convicção. Assim, tornam-se experts em distorcer os fatos até que eles caibam nas suas opiniões, reivindicando vigorosamente o direito de discordar da ciência. Nathalia Pasternak, em seu depoimento na CPI da Covid, desenhou: “ciência não é uma questão de opinião. Não é uma questão do que eu enxergo contra o que você enxerga. Não é uma visão do mundo …. Não é uma questão de desrespeitar a opinião alheia. É questão que a ciência funciona buscando os fatos”. Claro desse jeito, todo mundo entendeu, mas obviamente nem todo mundo concordou.

Liberdade de expressão, o sagrado direito constitucional de manifestar opinião, sem censura e sem opressão, vírgula. Por extenso, porque se trata de uma pausa essencial para garantir que todos tenham acesso igual a uma série de outros direitos, entre eles, o de existir. Liberdade de expressão, para ser de fato e justa, precisa ser pontuada expressamente pelo seu limite que, em civilização, é o limite de qualquer liberdade, as outras pessoas. Liberdade de expressão não inclui: direito de caluniar, difamar e discriminar, como na homofobia e no racismo, por exemplo. Esses não são direitos, inclusive são crimes. Todo mundo compreende? Certamente! Alguns apenas discordam e reivindicam indignadamente o direito de ofender.

Por fim, o coração dos direitos de opinião e expressão, democracia, o dispositivo político garantidor das liberdades, do respeito aos direitos inalienáveis do ser humano, fundamental para a paz e o respeito às diferenças. Democracia é o que assegura que o interesse coletivo prevalecerá sobre as vontades individuais. No entanto, é democracia que o negacionismo invoca para reivindicar a volta do AI-5, um dos 17 Atos Institucionais do regime militar, o mais duro eles, que fechou o Congresso Nacional, cassou mais de 170 mandatos legislativos e instituiu a censura da imprensa e das artes. Ou seja, valendo-se da democracia, a canalhice reivindica o fim da democracia. Invocando democracia  defende-se, também, o direito de não usar máscara, de não se vacinar e de aglomerar em franca pandemia. Nesse caso, particular, mais que distorção, é inversão cognitiva, já que claramente se confunde democracia, com o seu oposto, fazer valer a vontade mesmo quando prejudica a saúde coletiva.

Atitudes guiam o comportamento e são determinadas por componentes cognitivos afetivamente carregados. Em geral, são estáveis, mas a partir de evidências em contrário ou da falta de evidências, as pessoas costumam ser capazes de contestar pensamentos irracionais ou distorcidos e mudar de atitude. Pode ser que determinadas atitudes sejam tão emocionalmente ancoradas para algumas pessoas, que elas simplesmente não conseguem se mover cognitivamente, ainda que as evidências gritem. Nesse caso, a distorção não se corrige por causa de uma incapacidade cognitiva de reformular, é involuntária, portanto. Mas existe também a possibilidade de distorções cognitivas voluntárias e oportunas que acontecem para garantir vantagens pessoais, em detrimento do convívio social. Aí, então, não se trata de distorção, mas de fraude cognitiva. Haverá sempre um fraudador se aproveitando da vulnerabilidade cognitiva de alguém que falha em reestruturar.

No apagão ético, por falha ou fraude, a humanidade perde. Em vida, em planeta, e se perde. Empatia e racionalidade, as características mais distintivas do gênero humano, foram sendo borradas, no apagão ético do último biênio, quando a humanidade ficou mais de cinco milhões de vezes diminuída.

Nenhum homem é uma ilha, inteiramente isolado, todo homem é um pedaço de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai: Por quem os sinos dobram; eles dobram por vós” (John Donne)

Não restará continente humano fora da ética. O mundo da canalhice não se sustenta. A pandemia é viral  e a crise ética também é. Discurso oficial pega mais que catapora e o negacionismo institucionalizado mina os mecanismos de defesa. Apesar dos que insistem em obscurecer, seres humanos tem um incomparável talento para iluminar. Basta um fósforo. Cabe às humanidades riscar.