Publicado em El Blog de las Socias, o artigo La mercantilización del malestar, autoria do Dr. Manuel Desviat, psiquiatra espanhol, que dirigiu e assessorou processos da reforma psiquiátrica na Espanha e na América Latina e foi presidente da Asociación Española de Neuropsiquiatría ‒ profesionales de la salud mental (AEN). Desviat é bem conhecido por nós brasileiros, com a sua presença em eventos e em particular graças com as suas várias publicações, entre elas o livro publicado pela Editora FIOCRUZ, A Reforma Psiquiátrica.
“A patologização de pessoas, minorias ou populações nativas não é novidade para o capitalismo. Originalmente, era necessário a ciência médica para legitimar a patologização dos temas que se adequavam à exploração industrial e colonial, aos povos nativos e ao dejeto humano da industrialização. O que mudou é que, nos nossos dias, o capitalismo conseguiu a patologização de toda a sociedade. Patologização do corpo e da mente, que anda de mãos dadas com a medicalização do desconforto, transformando a saúde num meio de controle, normatividade e uma fonte de lucro (a indústria farmacêutica e de tecnologia sanitária constitui a terceira fonte de acumulação de capital). ”
“ […] houve um tempo em que sentimentos de mal-estar ou infelicidade, que hoje acabam por ser diagnosticados como ansiedade ou depressão, eram tomados como parte da ordem natural das coisas, mas hoje, o gigantesco poder da empresa farmacêutica está a tomar conta do discurso e dos tratamentos médicos. Desde as últimas décadas do século XX, uma época que coincide com o aparecimento de novos e muito mais caros medicamentos psicotrópicos, a indústria farmacêutica colonizou a psiquiatria, as suas publicações, protocolos, diretrizes, classificações (DSM; DCI), investigação, congressos, formação, associações profissionais penetrantes e as de membros da família e usuários. As associações psiquiátricas em todo o mundo mudam a sua orientação: a psiquiatria torna-se (farmaco)biológica, deslocando correntes psicodinâmicas e comunitárias. As associações psiquiátricas de crianças e adolescentes promovem a medicação infantil, sendo a perturbação do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) um bom exemplo das suas consequências: centenas de milhares de comprimidos de anfetaminas que tornam milhões de crianças inquietas, distraídas ou preguiçosas em todo o mundo viciadas para toda a vida. O conflito psíquico é rotulado como um fracasso biológico e a terapia é redirecionada para a farmacologia e para a adaptação do doente à sua condição de paciente, encobrindo a crise subjetiva e as suas razões, fugindo à responsabilidade individual e coletiva. ”
“[…] é necessário redefinir a comunidade e reescrever conceitos como autonomia, dependência, liberdade, empoderamento, consciência da doença, normalidade, habitabilidade, equidade, universalidade, recuperação, emancipação, cuidados, tratamento, diagnóstico. Sem dúvida que existem ocorrências pouco usuais com ou sem sofrimento psíquico, mas a esquizofrenia que tenta capturá-las é uma construção da psiquiatria. Isto não evita o conflito subjetivo, a ruptura subjetiva ou a loucura, que, como diz a Princesa Inca, poeta e ativista da saúde mental, é dolorosa (Princesa Inca, 2011), e é por isso que, seja pela ajuda mútua ou pelas profissões da saúde mental, é necessário atender à pessoa que sofre.
“ […] estes são tempos adversos, não muito propícios à ação coletiva, mas também e precisamente por isso, emergem núcleos não só de resistência, pontos focais que subvertem a vulnerabilidade numa força mobilizadora, numa arma política emancipatória, como Judith Butler (2018) assinala. Fazer da doença uma arma, proclamou o Coletivo Socialista de Doentes [mentais] (SPK) em 1970, em um motim numa clínica universitária em Heidelberg. Muito tem acontecido desde então. A indignação social e cívica explodiu por todo o lado em incêndios que, embora de curta duração, deixaram brasas que alimentam um novo discurso, novas formas de luta. Na saúde mental, as reformas e a psiquiatria comunitária encontraram o seu limite máximo e, portanto, a necessidade de novas formas de saúde mental para o comum, para a saúde mental coletiva. Pela primeira vez desde a moderna atenção à loucura e à consideração da diversidade, há uma construção dialógica no tratamento, pela primeira vez há um encontro entre profissionais e sujeitos afetados; um diálogo nem sempre fácil, e ainda tremendamente minoritário, mas essencial se quisermos resignificar e inovar nas formas e ferramentas conceituais que nos permitam uma nova clínica (tratamento), uma clínica e uma ação terapêutica participada, desde o subjetivo e o social, uma saúde mental coletiva.
Uma tarefa teórica e prática em que a ação terapêutica terá de procurar alianças em movimentos de resistência e emancipação.”
Leia na íntegra →