A patologização do sofrimento psíquico

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Os psicotrópicos modificaram a paisagem da loucura, esvaziaram os manicômios e substituíram a camisa-de-força e os tratamentos de choque pela redoma medicamentosa. Embora não curem as denominadas “doenças mentais”, eles revolucionaram as representações do psiquismo e fabricaram um novo sujeito, o sujeito contemporâneo. Receitado tanto por clínicos gerais quanto pelos especialistas em psicopatologia, os psicotrópicos têm como função normalizar comportamentos e eliminar os sintomas mais dolorosos do sofrimento psíquico sem lhes buscar significação. Assim, a clínica hoje, com os impasses que se delineiam em seu campo, se impõe como um problema em pauta. Tantas e tantas vezes as pessoas buscam ajuda com seu (auto) diagnóstico pronto. O que querem é a confirmação de algo que elas já sabem, que ouviram dizer ou que buscaram nas redes ou na internet.

Quanto mais surgem “novas” patologias, mais surgem identificações com a (s) nova (s) doença (s).

Joel Birman (2018) ressalta a articulação entre os discursos provenientes da psiquiatria biológica, do cognitivismo e da terapia comportamental que procurou desarticular o dispositivo da clínica do psíquico, na medida em que os registros do sujeito e da singularidade são colocados em questão no campo terapêutico. Patologizar, medicalizar, psicopatologizar esse é o tom do mercado, é a bola da vez. Num paradigma naturalista de cientificidade, fundado nos discursos teóricos da biologia e das neurociências, cada vez com mais descobertas que prometem explicar a condição humana, não há espaço para aquilo que não cabe entre as sinapses neuronais, para a política, a história, as relações, a cultura, o social, a dor de existir, as insatisfações humanas quando tudo deveria estar tão bem (por que não está?). Esses diferentes discursos, essas linhas de força que se conjugam, que pretendem explicar tudo, também lançam fórmulas e protocolos para que todos caibamos na mesma forma, com etapas bem definidas e métodos para reduzir (e por que não extirpar?) os sofrimentos existenciais.  Essas narrativas se articulam na série de reconfigurações produzidas do DSM (Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais) e CID, agora em sua nova roupagem, a 11а versão.

Em consonância ao pensamento de Joel Birman, Tenório (2016) ratifica que a intenção declarada das modificações em torno das classificações psiquiátricas foi estabelecer o maior consenso possível para qualquer que fosse a escola adotada pelo psiquiatra. Para tanto, o DSM e, posteriormente, a CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde) proclamaram-se “ateóricos”, excluindo as categorias que implicavam pressupostos psicodinâmicos e pretenderam basear a classificação exclusivamente em sintomas que pudessem ser empiricamente observados, descritos e quantificados. Contudo, nota-se como efeito dessas mudanças a supressão da referência às teorias psicodinâmicas. Ademais, o apoio exclusivo nos sintomas para a descrição de psicopatologias favoreceu a ênfase cada vez maior na ação farmacológica no tratamento do sofrimento psíquico. Assim, a primeira resposta para o cuidado com o sofrimento advém do medicamento e das terapias a ele relacionadas.

Uma série de mal-estares humanos vem sofrendo cada vez mais um deslocamento progressivo de sentido. A pluralidade de abordagens contempladas quando se tratava de explicar as vicissitudes individuais, foi capturada por concepções que tendem a reduzi-la a sua dimensão biológica.

Data de 1952 a primeira sintetização de um psicofármaco utilizado em tratamentos psiquiátricos. Desde então, a indústria farmacêutica investe massivamente, ano após ano, cada vez mais recursos no estabelecimento de pesquisas na área da psicofarmacologia e investe grande parcela de recursos no marketing de novas drogas. Há uma assustadora inversão na construção da lógica diagnóstica contemporânea, posto que o remédio participa da nomeação do próprio transtorno. Não há mais uma etiologia e uma historicidade a serem consideradas, pois a verdade do sintoma/transtorno está no funcionamento bioquímico, e os efeitos da medicação dão validade a um ou outro diagnóstico.

A partir de uma auto-nomeação designada pelo diagnóstico podemos pensar na produção de identidades patológicas (Silva Júnior, 2018). Estas são declarações em que o sujeito se nomeia como o objeto de um saber, especificamente de um saber médico sobre o sofrimento em geral. Tais formas de auto-nomeação são transnosográficas. Diversos tipos de sujeitos frequentemente evocam um diagnóstico sobre o qual não tem qualquer dúvida e ao qual se conformam como quem descreve a cor dos cabelos. No entanto, esta auto-nomeação a partir de um quadro psiquiátrico descreve uma disfunção.

Podemos fundamentar tal raciocínio desde as proposições freudianas. No texto “Mal-estar na civilização” (1930/2011,) Freud esclarece que a vida, tal como nos coube, é muito difícil, traz demasiadas dores, decepções e tarefas insolúveis, assim, para suportá-la não podemos dispensar o uso de paliativos. O uso de substâncias lícitas e ilícitas insurge com vistas a aplacar a angústia e com a promessa de felicidade. Neste texto, Freud fala que o sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que fadado ao declínio e à dissolução, não podendo sequer dispensar a dor e o medo como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis e destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos. O sofrimento que se origina desta última fonte é experimentado mais dolorosamente do que qualquer outro tipo de sofrimento.

O crescimento vertiginoso de categorias diagnósticas e a presença massiva de descrições de transtornos psiquiátricos fez com que Whitaker (2017) constatasse uma epidemia diagnóstica. Na psiquiatria mais restrita ao paradigma médico, o diagnóstico é um ato de observar corretamente um sinal e, a partir do saber médico, atribuir a este o seu verdadeiro significado disponível na nosografia. Nesse paradigma, o sintoma é como um significante a espera do seu “verdadeiro” significado. Um significado universal, fixo, não-particular daquele sujeito, uma vez que disponível no “tesouro semiológico” do médico. Nota-se o efeito de fechamento: diante de um sintoma/sinal, o médico “completa” o par com o verdadeiro significado. O desafio que se apresenta consiste em interrogar de modo a fazer do sintoma questão, manejando-o segundo um endereçamento. Não basta que o sujeito se queixe de um sintoma. É preciso que essa queixa se transforme numa demanda endereçada e que o sintoma passe do estatuto de resposta ao estatuto de questão para o sujeito, para que este seja instigado a decifrá-lo e criar (Tenório, 2000).

Retomemos a clínica do psíquico, a história, a geografia, a ecologia, as construções e representações sociais, o panorama político-econômico-social, a antropologia, a cultura, os dissensos e os consensos que potencializam e alicerçam as lógicas de mercado (incluindo a compreensão de como os sujeitos “devem” ser – devem?) antes de patologizar a existência humana.

Referências

Birman, J. (2018) Genealogia da clínica. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 21 (3), 442-464.

Tenório, F. (2000). Desmedicalizar e subjetivar: A especificidade da clínica da recepção. Cadernos IPUB, 6 (17), 79-91.

Whitaker, R. (2017). A anatomia de uma epidemia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

Silva Júnior, N. (2018). O mal estar no sofrimento e a necessidade de sua revisão pela psicanálise. In: SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson; DUNKER, Christian (Orgs.). Patologias do social. Belo Horizonte: Autêntica editora.

Freud, S. (2011). O mal-estar na civilização. V. XXI. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930).