O caos, o medo e o pânico: a legitimação do adoecimento em saúde mental pelo trabalho na Secretaria Municipal de Saúde de Foz do Iguaçu, Paraná

Enquanto trabalhador de saúde mental, relato de experiência de vida.

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1969

A entrada na trajetória da saúde coletiva que trilhei logo que iniciei minha vida profissional não sinalizou, estranhamente, que eu adoeceria pelo trabalho dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Se soubesse que o terror da existência iria me tocar, certamente buscaria romper com a linha que planejei percorrer pelos jardins da prática profissional Sanitarista.

Neste relato, busco trazer subsídios iniciais que conformam a ruptura que o adoecimento psíquico causou em meu projeto de felicidade e vida e, mesmo compreendendo que a experiência individual não é generalizável para as ciências da saúde mental, considero que o meu existir relata e denuncia a perversidade que o neoliberalismo provoca em nossas mãos, mentes e corações.

Compreendo que historicamente no Brasil, a práxis da gestão, política e planejamento na saúde pública possui uma característica que ronda a não humanidade, a racionalidade desordenada, o símbolo perturbador da eficiência e eficácia das decisões, a gestão por resultados, a gestão de competências e a gestão do outro antes da gestão de si. Foi neste cenário que iniciei como Sanitarista residente na Secretaria Municipal de Saúde (SMSA) de Foz do Iguaçu em 2016. Lembro-me bem que o sentimento de início era da retomada de uma terra arrasada pela corrupção generalizada, desvio de função das responsabilidades Estatais na saúde coletiva e o caos na organização interna de uma gestão em saúde que foi chacoalhada pela indecência e imoralidade de um fetiche de enriquecimento ilícito. Dos 15 vereadores da cidade, 12 haviam sido presos por corrupção. Nas práticas ilícitas estavam também secretários de saúde da cidade, que colocaram seus interesses próprios a frente dos interesses sociais na saúde coletiva.

Nossa luta contra a precarização das relações de trabalho na SMSA foi intensa. Foram muitos tensionamentos contra a privatização da gestão em saúde da cidade produzidas pelo Conselho Municipal de Saúde (COMUS) e pela classe trabalhadora do SUS. Surtiu efeito. Mas havia uma grande tarefa a ser cumprida para resgatar a ética na gestão em saúde da cidade.

Fiz minha residência, cumprindo com a mobilização popular na construção dos instrumentos de gestão e planejamento da SMSA. Ali, já sentia efeitos no meu corpo do assédio interno que ocorriam pelos corredores e salas, principalmente contra servidores críticos que questionavam as bases reacionárias e conservadoras das práticas normativas, da ausência ou mutilação da solidariedade e humanidade da gestão ou até mesmo do subfinanciamento da Atenção Primária em Saúde (APS) local.

Fonte: Arquivo Pessoal, mensagem direcionada aos servidores do prédio da SMSA de Foz do Iguaçu

Trabalhar em silêncio na gestão em Saúde pública não é um ordenamento razoável, ético e fraterno. Se não utilizarmos a nossa voz para escoar o pensamento, nossa inventividade e nossa criatividade acabam por reproduzir Ecos e legitimam os desmandos políticos institucionais que mais fragilizam a saúde coletiva, nossa dignidade, nossos projetos de cuidar de si e dos outros e o intento de amar o mundo.

Os sinais já eram claros e evidentes, conquanto, a mobilização do “Eu” na busca pela saúde coletiva e pela justiça no SUS me mobilizaram a prestar o concurso da SMSA ao fim da residência multiprofissional. O grande trauma viria em apenas três meses de trabalho como Sanitarista Júnior concursado da SMSA, em 2018.

Assumi o cargo e me direcionaram para o trabalho no Gabinete da Gestão da SMSA. Não tive tempo de compreender, a época, que minha identidade Sanitarista seria desmoronada pelo sofrimento psíquico causado pelo grande acumulo de funções e tarefas. Como existência que é movida por desafios, acreditei que conseguiria ministrar todas as responsabilidades, relações humanas e atividades. Mas eu estava sozinho no Gabinete, não havia uma equipe e eu me vi só e assustado com o aparecimento quase diário de pombas mortas no parapeito da janela da sala.

Fonte: Arquivo de Maísa Melara, prédio da SMSA de Foz do Iguaçu, 2018.

O medo, a solidão e a crise no ser-fazer Saúde Coletiva anunciavam o rumo: você irá surtar! “Comece a falar menos […] Cuidado aí”, disse várias vezes um colega de trabalho em tom ameaçador e intimidatório. Na produção intelectual “Psicoterapia do Oprimido – Ideologia e técnica da psiquiatria popular”, Moffatt (1984) sinaliza que “ […] A crise tem a ver com sentir-se invadido por uma vivência de paralização da continuidade do processo da vida” (MOFFATT, 1984, p.231). Nesse sentido, a paralisia estava mais direcionada a impotência da transformação da realidade do caos instalado na saúde local do que no meu corpo.

A invasão do pânico dentro do meu corpo ocorreu tanto pela pressão simbólica que este espaço de decisão promove na equação mente-existência quanto pela precariedade nas condições de trabalho. Não havia um ambiente salutar para o desenvolvimento do trabalho, tampouco relações afetivas, éticas e que produzissem felicidade.

O surto psicótico, denominado cientificamente pela psiquiatria e psicologia, chegou. Em 03 de dezembro de 2018, cheguei ao Gabinete choroso, confuso, no limite entre o real e o irreal. Comuniquei a chefia imediata, catei meus livros de legislação do SUS e fui em psicose intensa solicitar minha exoneração do cargo de Sanitarista Júnior da SMSA. Ironicamente, nem exame demissional foi realizado pela prefeitura. Em 15 minutos a ruptura estava assinada, carimbada e legitimada pelo Estado.

Moffatt (1984) também sinaliza que “A expressão orgânica deste processo de desorganização é a angustia […] Todo corpo fica tenso, preparado para enfrentar o perigo. Podemos sintetizar tudo isso com a palavra desesperado (des-esperado), ou seja, aquele que já não espera nada, que tem o futuro vazio” (MOFFATT, 1984, p.231). A psicose permaneceu por um mês, com delírios e alucinações: “Eu hoje represento a cigarra / Que ainda vai cantar / Nesse formigueiro quem tem ouvidos / Vai poder escutar / Meu grito!”

Agradeço imensamente o encontro potente com as humanas e profissionais Soraya Sehli e Ercilia Monção. Aos amigos e amigas que estiveram ao meu lado caminhando na crise. Diagnosticado clinicamente, inicio meu processo de retomada do meu projeto de vida e felicidade.

O mais dolorido de todo este processo foi e é ainda perceber que a Saúde mental é negligenciada e mutilada pela administração pública local, ao menos, em meu caso. A responsabilização pelo sofrimento psíquico gerado pelo ambiente e relações de trabalho no SUS precisa ser vista com mais seriedade, sem culpabilizar quem sofre e com a costura de políticas públicas que minimizem as possibilidades de ocorrência, conquanto, enquanto não for feita uma fissura na lógica neoliberal de trabalho nestes espaços, não haverá saúde mental produzida por ali.

Fonte: Arquivo pessoal, sombras de uma caminhada em psicose, 2018.

Por sorte, pude redefinir o caminho e trilhar novos rumos. Atualmente estável busco sensibilizar e trazer ao campo da saúde mental a crítica como subsídio para compreender que não estamos sozinhos. “Nunca neste mundo se está sozinho”. Meu desejo é que as relações de amizade, fraternidade, solidariedade e amor cresçam nos espaços da gestão em saúde. Que se faça a gestão de si e que se rompa com a premissa da gestão do outro.

Desejar saúde mental não somente na gestão, mas também na assistência, na participação social, nas práticas, programas e políticas de saúde é o primeiro passo para que transformemos a realidade experenciada. Notificar o adoecimento em saúde mental pelo trabalho também é necessário, e já contamos com uma ficha para tal. A saída é coletiva e política.

Hoje, sem antipsicóticos ou estabilizadores de humor, permito a abertura para o existir. Caso precise e sinta a necessidade, um lítio sempre me cai bem. “Se eles têm três carros, eu posso voar / Se eles rezam muito, eu já estou no céu”

Referências

MOFFATT, Alfredo. Psicoterapia do oprimido: ideologia e técnica da psiquiatria popular. 4 ed., São Paulo: Cortez, 1984.

Luz del Fuego. MysticPieces. Rita Lee – Luz Del Fuego, Youtube. 23 de ago 2009. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3gyMTYEbCvs. Acesso em 20 jan 2022

Balada do Louco. Ney Matogrosso. Balada do Louco (ao vivo), Youtube. s/d. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yu90Ha1Woiw

Domingo 23. Ulysses Joven. Jorge Bem – Domingo 23 (1972), Youtube. 14 de dez 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q3rH_3poPMI

2 COMENTÁRIOS

  1. O neoliberalismo está presente até mesmo nos espaços que se propõe de interesses públicos. Quando só o mercado ganha, é o povo que perde! E quando profissionais éticos se posicionam contra a lucratividade à cima do bem comum, ele é assediado. A lógica é perversa. Perversidade que ganha dinheiro com o sofrimento. Sofrimento coletivo, mas que é vendido como sofrimento individual!
    Obrigada pelo seu relato corajoso meu amigo!

  2. Relações de trabalho precarizadas, o clima de concorrência na equipe, aliados à má formação acadêmica (ou falta de continuidade do estudo, principalmente em áreas de gestão) e formação social conservadora dentre os profissionais que compõem as equipes e coordenam programas são pressões a mais aplicadas a trabalhos que exigemmaos que formação técnica, habilidades sociais.
    Conhecer por dentro estabelecimentos de saúde me fez refletir muito. Meu sonho era atuar na atenção básica, experimentando um pouco dessa realidade e conhecendo profissionais atuantes, sentia que tudo que eu fazia era ainda muito pouco dentro do que a população adstrita necessitava. Numa fila de espera cheia de urgências, era difícil rotineiramente precisar estabelecer prioridades. Ao mmesmo tempo, percebia que os profissionais da ponta sentiam-se distantes da gestão. A visão que alguns tinham eram de serem sempre monitorados e nunca valorizados ou ouvidos…. Ao passar no concurso, passei a atuar na secretaria da educação. Agora estou do outro lado. Menos atendimento ao público, mais trabalho administrativo e silêncios, mesmo precisando conversar com alguém da mesa ao lado.

    Políticas públicas são elaboradas para melhorar a vida do maior número de pessoas, de maneira organizada e pensando etapas, se aliando em boas experiências. MUito já construímos, ainda falta muito pra alcançarmos o que o SUS ou o PNAE por exemplo traçam. É importante financiar, é importante ampliar e equipar equipes.
    Mas sem rever a cultura organizacional, sem modificar as relações, quanto maior a equipe, mais conflitos. Ok
    É um passo promover ações de bem-estar, decorar um lugar.. Mas cotidianamente as pessoas precisam se sentir respeitadas, o trabalho não é o que nos torna dignos. Todos merecemos ser tratados com dignidade.
    Doloroso ouvir seu relato, mas infelizmente, desde a residência, a contestação de tantos profissionais em relação à atuação acertadíssima da nossa colega psicóloga Marília indica esse caminho e despreparo.
    Tudo é aprendizado.
    Eles passarão….