Pesquisa Esclarece que Acesso ao Serviço de Saúde não Significa Acesso ao Cuidado

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A pesquisa “Relações de poder entre profissionais e usuários da Atenção Primária à Saúde: implicações para o cuidado em saúde mental” realizada no Ceará e publicada pela revista Saúde Debate, investigou a influência da herança autoritária brasileira na relação entre profissionais e usuários do sistema de saúde. Os autores chamam a atenção para a longa e cruel história escravagista do Brasil como uma experiência que permeou as relações sociais e nossa cultura, naturalizando práticas autoritárias e excludentes.

Com o surgimento do SUS e da reforma psiquiátrica, os princípios e diretrizes norteadoras do cuidado em saúde baseiam-se e asseguram o respeito aos direitos humanos. Nesse sentido, a pesquisa busca contribuir com a qualificação e aperfeiçoamento do trabalho realizado nas redes de saúde e garantir os direitos humanos dos usuários dos serviços, procurando entender como as relações de poder se manifestam no cenário da atenção básica.

Para tal, os pesquisadores resolveram realizar entrevistas semiestruturadas com uma amostra de dez pessoas de uma Unidade de Atenção Primária à Saúde (UAPS) presente em Fortaleza, capital do Ceará. Dos entrevistados cinco eram profissionais de saúde e as outras cinco eram usuários do serviço. O critério de escolha para os profissionais foi estar trabalhando no serviço há pelo menos um ano, e para os usuários o critério foi estar se tratando há pelo menos seis meses na unidade e em uso de psicofármacos.

A entrevista aos profissionais privilegiou os questionamentos acerca dos aspectos relacionados ao manejo clínico, atividades de saúde mental desenvolvidas pelos profissionais no serviço e quais os desafios para se ofertar cuidado em saúde mental. Aos usuários, perguntou-se sobre as ações de cuidado ofertadas, como se davam as relações junto aos profissionais e quais os desafios para se ofertar cuidado em saúde mental.

“Não tem jeito! Quem quer ser atendido tem que chegar cedo. O Doutor não espera por ninguém, a gente é que espera por ele. (U1). Se não conseguir ficha [para atendimento], o negócio fica pior. Porque fica dependendo da boa vontade dele [médico] querer atender. (U3)”

A pesquisa identificou três aspectos ligados ao poder exercido pelos profissionais de saúde na relação com os usuários dos serviços. O primeiro aspecto se refere a consideração do trabalho em saúde como um ato de benevolência e caridade: “A gente tenta, na medida do possível, ajudar, porque eles já são tão necessitados… que a gente se sente até mal” (E2). O segundo aspecto diz respeito à centralidade do cuidado do médico, em um contexto de supervalorização do uso de medicamentos: “Os pacientes de saúde mental, geralmente, são vistos pelo médico, porque eles querem renovar a receita, então acaba ficando a cargo deles [médicos]” . E, por fim, o terceiro aspecto se relaciona à desqualificação do sujeito enquanto portador de direitos, saberes e desejos, como consequência se observam diálogos unilaterais e incompreensíveis para o sujeito que procura cuidado.

Nas falas dos profissionais e dos usuários aparece a dominação dos profissionais através do poder de escolher quem merece ser atendido e a que horas.

“Tal fato fortalece um poder que se firma na noção de que o tempo do profissional tem mais valor que o tempo do usuário, assegurando e legitimando a premissa de que este deve esperar por aquele, embora o inverso não deva jamais ocorrer.”

Também foi possível observar com a pesquisa que as práticas norteadoras do cuidado estão centradas no processo de medicalização.

 “Eu tomo fluoxetina faz um ano. E de dois em dois meses venho no posto pra renovar [a receita]” (U2)

Dessa forma, o cuidado em saúde foca em um processo automatizado, em que a escuta do sujeito não é possível, indo em direção oposta ao atendimento integral proposto pelas diretrizes do sistema de saúde. Os autores destacam que quando o usuário só tem acesso à prescrição de psicofármacos, ele alcança o serviço de saúde, mas não necessariamente o cuidado.

“Observa-se que a hegemonia do poder biomédico e a cultura autoritária da sociedade brasileira, que tem a escravidão como uma marca negativa, trazem repercussões sobre as relações entre profissionais e usuários de modo que o lado mais fraco, no caso, os usuários, tende a se submeter a essa dinâmica de dominação como meio para acessar o serviço, contudo, não tem acesso ao cuidado.”

Como conclusão, os autores defendem que é necessário recuperar dispositivos de reflexão das equipes de saúde, como as reuniões de equipe, formação permanente e supervisão clínico-institucional para a conscientização e responsabilização da reprodução das relações de poder e seus efeitos negativos para a saúde dos usuários dos serviços.

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Caminha, Emília Cristina Carvalho Rocha et al. Relações de poder entre profissionais e usuários da Atenção Primária à Saúde: implicações para o cuidado em saúde mental. Saúde em Debate, v. 45, n. 128, 2021. (Link)