O artigo Educação popular e saúde mental: aproximando saberes e ampliando o cuidado, de João Vinícius Dias e Paulo Amarante, busca diminuir a lacuna nas pesquisas e produções acadêmicas nas interlocuções entre educação popular e saúde mental. Os Centros de Atenção Psicossociais (Caps), assim como os Consultórios na Rua (CnaR) têm influencia da educação popular em suas ações e estratégias de cuidado, ainda que tal influência não seja reconhecida. Além disso, os dois campos se aproximam através de seu caráter contra hegemônico.
Paulo Freire, uma das principais referências no campo da educação popular, afirma que todo conhecimento é ideológico.
“O que diferencia os variados conhecimentos é a que tipo de ideologia eles estão vinculados: se a uma lógica de solidariedade ou a serviço de interesses privativos, se em defesa da emancipação ou da manutenção das opressões, se a favor da pluralidade das formas de ser ou do tolhimento das singularidades, em suma, se em defesa da ampliação de diferentes formas de viver e estar no mundo ou de seu cerceamento.“
Nesse sentido, os autores destacam que tanto a educação popular como a reforma psiquiátrica teve por objetivo dar voz à populações historicamente marginalizadas e viabilizar seu protagonismo e valorização destes sujeitos, fazendo um breve percorrido histórico pelos dois campos a fim de identificar os diálogos e as possíveis contribuições entre os campos.
Educação popular é um termo em disputa. Para os autores, é uma concepção prático/teórica e uma metodologia de educação que articula diferentes saberes e práticas que possuem compromisso com o diálogo e protagonismo das classes populares nas transformações sociais, bem como valoriza as dimensões da cultura e dos direitos humanos.
“No Brasil, podemos situar formalmente a educação popular, a partir do início do século XX, por meio de experiências educativas da classe trabalhadora da cidade e do campo, da organização de escola para a classe operária com a chegada de grupos imigrantes com ideologias anarquistas e com os movimentos pela democratização da educação, a partir da década de 1920.”
As experiências de educação popular se espalharam pelo país ao final da década de 1950, tornando-se a pedagogia de Paulo Freire a principal referência. Um tema central para o autor é a crítica à opressão. Mas em 1964, com o golpe militar, a multiplicação das primeiras experiências de educação popular para alfabetização foram suspensas. Só na década de 70, com a emergência de lutas populares pela redemocratização do país é que há uma reaproximação da educação popular através dos movimentos de saúde e das Comunidades Eclesiais de Base (CEB) da igreja católica.
Portanto, a educação popular esteve na base da reforma sanitária que daria origem ao Sistema Único de Saúde (SUS). Posteriormente, em 2013, foi aprovada a Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS), fortalecendo a relação entre educação popular e saúde.
Já no campo da saúde mental, os autores destacam que a reforma psiquiátrica colocou em destaque a questão da liberdade e da autonomia das pessoas em sofrimento psíquico, que também são a base de sustentação da proposta de Paulo Freire. Outro ponto de convergência entre os dois campos é a relação com o conhecimento, reconhecendo o mito da suposta neutralidade, distanciamento crítico e autonomia da ciência, a partir de uma atitude epistemológica crítica. Mas essas conquistas no campo da saúde mental têm sofrido diversos ataques e retrocessos por conta de políticas conservadoras, o que alguns autores vêm denominando de “contrarreforma psiquiátrica”.
“As realizações de assembleias, rodas de conversa, espaços coletivos com a participação de usuários, familiares e profissionais são práticas comumente encontradas nos Caps e demais serviços da rede de saúde mental na lógica da atenção psicossocial e se aproximam de modos de organização coletiva preconizados pela educação popular. Também as reuniões de equipe, recurso comumente encontrado nesses serviços, em que o processo de trabalho, a agenda de atividades, os casos clínicos são discutidos e definidos pelos trabalhadores e trabalhadoras, apontam para uma herança de participação e construção coletiva difundida por experiências com forte influência da educação popular.”
Os autores esperam que o artigo possa oferecer suporte crítico e reflexivo para as ações em saúde, valorizando as diferentes formas de ver o mundo, e dessa forma, seja possível criar relações de solidariedade com a diversidade e a diferença. Em última instância, esperam que a aproximação entre as duas áreas possa contribuir com aos atuais movimentos de resistência as cada vez maiores ameaças à democracia, à defesa da vida e aos direitos humanos, fortalecendo a construção de uma ciência comprometida com a liberdade e com o projeto de uma sociedade ais justa e igualitária.
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Dias, João Vinícius dos Santos e Amarante, Paulo Duarte de Carvalho. Educação popular e saúde mental: aproximando saberes e ampliando o cuidado. Saúde em Debate, v. 46, n. 132, pp. 188-199, 2022. (Link)