Sem Psicologia da Libertação, Terapia Reforça o Status Quo

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Enquanto abordagem radical da psicologia e da psicoterapia, a Psicologia da Libertação visa afastar o campo de métodos que simplesmente ajudam as pessoas a se adaptarem às injustiças atuais e, em vez disso, recusa a cumplicidade com práticas social e moralmente injustas.

Um artigo publicado em Psychology from the Margins examina a história e as idéias de psicólogos da Libertação como Ignacio Martín-Baró. A autora, Hannah Heitz, expõe algumas de suas ferramentas mais eficazes para combater o status quo sociopolítico dentro da psiquiatria e da psicologia (e da sociedade de forma mais ampla). Ao lado de Martín-Baró, Heitz sugere vários caminhos que profissionais com espírito crítico poderiam tomar para ajustar as balanças da justiça.

“Alinhado com a importância da consciência crítica, Martín-Baró observou que a psicologia deve considerar o indivíduo dentro do sistema social. Sem considerar o contexto sociopolítico e histórico do indivíduo, a opressão e as barreiras para o desenvolvimento da identidade histórica se perpetuam”, explica Heitz.

“Como tal, a psicologia da libertação requer consciência crítica, consciência das desigualdades sociais e práticas que desmantelem os fatores sociais e psicológicos que sustentam a opressão – incluindo tanto a opressão institucional quanto a opressão internalizada. A libertação pessoal é parte do processo de libertação coletiva. Quando aqueles que são oprimidos iniciam o processo de libertação, torna-se possível para todos experimentar a emancipação e a cura”.

A disciplina da psicologia da libertação, inspirada em parte pelo educador e revolucionário brasileiro Paulo Freire, assim como pelo padre e psicólogo jesuíta Ignacio Martín-Baró de El Salvador, defende o bem-estar do “povo comum” contra os interesses das elites e os padrões de dominação social.

Inspirada na teologia da libertação latino-americana, a psicologia da libertação enfatiza a necessidade de se tratar a saúde mental como uma questão social, política e econômica, em vez de através de uma lente convencional individualista.

Isto inclui, às vezes, conflitos com os paradigmas predominantes dentro da psiquiatria e da psicologia, que muitos psicólogos da libertação vêem como cúmplices do status quo sociopolítico, a despeito de sua professada ahistoricidade e apoliticismo.

Por exemplo, este conflito chegou a El Salvador, onde Martín-Baró foi assassinado pelos militares salvadorenhos, presumivelmente por suas idéias radicais (e ameaçadoras do status quo). Deve-se notar que o batalhão de elite que executou o assassinato de Martín-Baró foi uma unidade de contra insurgência treinada pela Escola das Américas do Exército dos Estados Unidos em 1980.

O artigo atual traça as origens da psicologia da libertação. Ele delineia algumas de suas principais ferramentas conceituais a serem mobilizadas para uma crítica da psicologia dominante e para desenvolver uma estrutura para uma psicologia alternativa que leve a sério o contexto social e as questões de poder.

Heitz observa, antes de tudo, que a psiquiatria convencional e a psicologia têm entendido a individualidade como sendo a primeira pessoa – um paciente identificado na linguagem dos sistemas familiares.

Pelo contrário, a psicologia da libertação “identifica os sistemas sociopolíticos opressivos como a origem do sofrimento”. Heitz explica:

“…a psicologia da libertação sugere que um indivíduo com uma identidade marginalizada pode experimentar ansiedade em resposta a suas experiências de discriminação e opressão, com ênfase no papel que estruturas maiores e fatores sociopolíticos desempenham na perpetuação de sua experiência de opressão em nível individual e coletivo…

…De acordo com a psicologia da libertação, indivíduos e grupos marginalizados sofrem preconceitos e internalizam estereótipos negativos e são patologizados pela psicologia ocidental para identificar ou responder à opressão – tudo isso dificulta a experiência de bem-estar psicossocial”.

Dentro da psicologia da libertação de Martín-Baró, então, o objetivo é repensar e reencenar um tipo diferente de psicologia que poderia levar em conta estes fatores sociais e contextuais, pois procura corrigir o que aflige as pessoas – o que Martín-Baró chamou de psicologia enquanto um “instrumento de mudança”, em vez de um programa de adaptação ou de manutenção do domínio social.

Conceitos importantes, “tarefas” ou perguntas pertinentes para uma psicologia da libertação são numerosos, mas Heitz se concentra em um punhado de questões. Elas são:

  • Consciência crítica ou “conscientização”.
  • Recuperação da memória histórica
  • Desideologizar a experiência cotidiana
  • Utilizar as virtudes do povo
  • Que devemos trabalhar de maneira diferente
  • “Mas se [psicologia] contribui para a alienação ou manutenção do controle do povo, para que serve a psicologia? As pessoas não precisam de tal psicologia”.

Consciência crítica ou conscientização

Esta noção se refere a um processo de aumento do diálogo e da conscientização em torno das condições materiais, sociais e políticas da própria situação (ou de uma comunidade) no mundo, com especial atenção às posições de subjugação. Para Martín-Baró, de acordo com Heitz, a consciência crítica envolve três passos cruciais:

“Primeiro, a mudança individual ocorre através do engajamento ativo no diálogo. Segundo, o indivíduo torna-se consciente dos sistemas de opressão e da possibilidade de fazer mudanças. Terceiro, o indivíduo começa a compreender sua capacidade de moldar ativamente sua identidade e seu papel no contexto social; esta parte do processo inclui uma compreensão histórica do eu e da comunidade”.

A consciência crítica é a conscientização através do diálogo (não apenas interpessoal, mas muitas vezes também comunitária) da situação em que as pessoas se encontram. Isto abre a porta para outras atividades ao longo do caminho, tais como esforços ativistas e a recusa de aceitar tais condições para si mesmos.

Recuperação da memória histórica

Para entender o presente e preparar-nos para um futuro mais brilhante, devemos saber de onde viemos. A “memória histórica” não deve ser perdida. Dando um exemplo, diz Heitz:

“Após a guerra civil guatemalteca, que durou de 1960 a 1996 e teve como alvo principal os civis de ascendência maia, a Igreja Católica iniciou o Projeto de Recuperação da Memória Histórica… O objetivo do projeto era permitir que os sobreviventes da violência política na Guatemala pudessem compartilhar suas experiências e histórias para informar um futuro mais justo e promover a justiça, o perdão e a reconciliação”.

Outros esforços semelhantes têm existido/continuam a existir para o povo judeu envolvido em atividades de memória histórica em torno do Holocausto, e talvez alguns esforços na África do Sul pós-Apartheid relacionados com os esforços de reparo comunitário e reconciliação.

Inerente a esta abordagem está a crença no poder de preservar a narrativa histórica e cultural, pois ela pelo menos em parte explica de onde as pessoas vêm – o que elas passaram. Em vez de esquecer estas provações em alguma tentativa de “começar de novo”, os psicólogos da libertação acreditam que é vital encontrar raízes na própria linhagem histórica, mesmo quando ela envolve sofrimento.

Desideologizar a experiência cotidiana

Este conceito está ligado à idéia de consciência crítica. A ênfase aqui, porém, está em ” dar um passo atrás em relação às histórias socialmente construídas” e, em vez disso, entrar na “reflexão” e na “tentativa de observar objetivamente nosso ambiente social”.

Pode-se pensar em debates recentes nos EUA em torno das tentativas de reforma educacional do Projeto 1619 e de seu retrocesso conservador, à medida que guerras culturais são travadas sobre mitos fundadores e “histórias socialmente construídas”.

Para Martín-Baró, estas não são simplesmente idéias ou discursos concorrentes, sem fundamento. Pelo contrário, desideologizar pressupõe que existe um grau de verdade a que podemos chegar em relação ao que está acontecendo social e politicamente à nossa volta . Olhando concretamente para esta questão, por exemplo, pode-se ver como corporações internacionais em todo o mundo procuram extrair recursos de países “em desenvolvimento”, bem como influenciar a tomada de decisões de líderes poderosos e órgãos governamentais no mundo “desenvolvido” através de esforços de lobby.

Martín-Baró acreditava no uso de múltiplas ferramentas à disposição dos cientistas sociais, desde a análise quantitativa até o trabalho qualitativo, a fim de descobrir e desideologizar estas verdades sociais, que foram cobertas por novas histórias e verdades por aqueles que estão no poder.

Utilizar as virtudes do povo

Dado que Martín-Baró, inspirado pela teologia da libertação, acreditava no poder do povo comum para determinar seu próprio destino, ele também pensava que os psicólogos da libertação devem olhar para o próprio povo para responder à pergunta “o que deve ser feito”. Isto se opõe ao método psiquiátrico e psicológico convencional de eventualmente incluir a voz dos marginalizados como uma perspectiva simbólica – eles muitas vezes procurariam colocar a voz e a experiência vivida do povo em primeiro lugar.

Da mesma forma, este foi um movimento da parte de Martín-Baró para trabalhar contra o modelo “deficitário” sob o qual uma grande parte da psiquiatria e da psicologia tem trabalhado, tentando encontrar o que está “errado” com as pessoas para fornecer algum “conserto”. Em vez disso, a psicologia da libertação procura defender e ampliar os recursos já existentes de pessoas marginalizadas e oprimidas.

Além disso, esta abordagem vai contra a mentalidade colonial, que é predominante em grande parte da psiquiatria e psicologia ocidental. Ao invés de entrar com idéias predefinidas de bem-estar humano e patologia humana, o que Martín-Baró está propondo exige humildade e disposição para observar e até mesmo seguir a orientação daqueles que estão mais intimamente conscientes das lutas de opressão e dominação. Às vezes isso pode entrar em conflito com as idéias ocidentais do eu, de outros, do mundo e até mesmo das cosmologias.

Heitz observa, por exemplo, que a medicina ocidental tem frequentemente suspeitado das práticas indígenas de cura, mas que pode haver mais destas práticas – localizadas em ambientes comunitários – do que a medicina ocidental pode compreender plenamente. É um ato de colonialismo entrar e dizer a um grupo cultural: “não, não, toda a sua abordagem está errada”. Já descobrimos” – sem prestar atenção em como essas práticas podem beneficiar a comunidade e seus membros.

Devemos trabalhar de forma diferente

Para Martín-Baró, trabalhar de forma diferente significava um tipo diferente de prática terapêutica e, segundo Keitz, “reimaginar os limites tradicionalmente individuais da psicologia”. Essencialmente, Martín-Baró acreditava que não era suficiente reformar a prática terapêutica ou a prática terapêutica grupal. Ao invés disso, era necessária uma alternativa imaginativa à psicologia, que poderia “operar em nível estrutural para “despolarizar, desmilitarizar e desideologizar” para produzir mudanças significativas e de longo prazo”.

Heitz observa que embora existam diferenças significativas entre El Salvador e os Estados Unidos contemporâneos da guerra civil, com a pandemia da COVID-19 coincidindo com questões de injustiça racial – privação sistêmica entre as linhas raciais e outras – os psicólogos americanos estão talvez em uma posição oportuna para começar a pensar sobre como “abordar os cuidados de forma diferente”, levando em maior consideração questões como opressão e acesso a recursos.

“Mas se [psicologia] contribui para a alienação ou para manter o controle do povo, para que serve a psicologia? As pessoas não precisam de tal psicologia”.

Dada a insistência da psicologia da libertação de que grande parte da psiquiatria e da psicologia dominante mantém relações de opressão, dominação, alienação e assim por diante, então o que deve ser feito a partir de uma perspectiva de psicologia da libertação? Vale a pena salvar a psicologia e a psiquiatria?

Antes de responder a essa pergunta, Heitz aborda mais uma vez a questão da psicologia e da ignorância da psiquiatria:

“Levando a declaração de Martín-Baró um passo adiante, ignorando a opressão social, mesmo que estejamos abordando clinicamente as conseqüências individuais da opressão, estamos contribuindo para uma forma de psicologia que minimiza, e até ignora, as circunstâncias sociopolíticas”.

Em vez disso, Heitz argumenta a favor de múltiplos caminhos que psicólogos focados na libertação também podem tomar informados por terapias feministas e outras fora da psicologia, apelando para mudanças na abordagem de questões sociais sistêmicas (raciais), como o historiador e estudioso anti-racista Ibram X. Kendi.

Entre as possibilidades que ela enumera estão 1) trabalhar pela libertação negra, por dentro da academia, 2) iniciativas e programas dentro de uma organização (como os esforços da Associação Americana de Psicologia e suas várias divisões) para elaborar planos de ação para tratar de problemas sociais, 3) defesa política, tanto individual quanto coletiva, como “votar, chamar representantes locais e estaduais, ou voluntariar tempo e experiência através de iniciativas maiores organizadas pela Associação Americana de Psiclogia ou associações psicológicas estaduais”.

Heitz conclui:

“Devemos nos engajar ativamente no desmantelamento das estruturas opressivas e capacitar os grupos oprimidos a fazer o mesmo para promover a libertação psicológica”. Reunindo as idéias de Martín-Baró e Kendi, fica claro que se os psicólogos não estão lutando ativamente contra a opressão, então a disciplina da psicologia não está servindo ao povo, e não está apoiando a cura ou a libertação.

A psicologia, tal como existe hoje nos Estados Unidos, não está atendendo de forma equitativa às necessidades de todos os indivíduos e grupos. De fato, em alguns casos, o campo continua a perpetuar as iniquidades. Enquanto algumas dessas iniquidades estão enraizadas além do campo da psicologia, como o sistema de saúde nos Estados Unidos, existem maneiras que os psicólogos podem advogar pela mudança, e é nossa responsabilidade fazê-lo. A psicologia da libertação fornece uma estrutura para entender e dar sentido à história da psicologia, priorizar vozes oprimidas, facilitar mudanças positivas e trabalhar em direção à cura e libertação coletiva”.

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Heitz, H. K. (2022) “Liberation Psychology: Drawing on history to work toward resistance and collective healing in the United States.” Psychology from the Margins4(4). Bottom of Form (Link)