Em um novo artigo para uma importante revista brasileira de sociologia, Fernando Freitas e Luciana Jaramillo Caruso de Azevedo argumentam que a psiquiatria e a psicologia estão medicalizando as partes normais da infância e da adolescência.
O artigo, intitulado “Medicalizando crianças e adolescentes”, postula que a medicalização da infância, a patologização dos comportamentos e humores típicos e esperados nos jovens, não é científica e desencoraja a neurodivergência e a singularidade.
Através da medicalização, o mundo está culpando as crianças por sua desatenção e tristeza quando, na verdade, o mundo é o culpado.
“A pluralidade de explicações sobre o comportamento das crianças foi minada. A biologia (e seus operadores) tornou-se o dispositivo primordial da psicopatologia contemporânea, embasando correntes de pensamento que afirmam ser ateóricos por estarem fundamentadas na ética naturalista”, escrevem os autores. “Estas correntes reduzem a subjetividade à cognição e têm um menu de terapias e protocolos destinados a tratar todas as nuances das categorias descritas nos manuais psiquiátricos”.
Freitas começa sua argumentação primeiro definindo a medicalização. Ao fazer isso, ele faz perguntas cruciais como: “Em que ponto o sofrimento ‘normal’ se torna patológico?” E “haveria espaço designado para o desconforto ou para o que não está indo bem?”.
Com atenção especial à medicalização dos comportamentos e humores que freqüentemente se apresentam ao longo da infância até a adolescência, os autores demonstram como as explicações psiquiátricas são comumente utilizadas de maneiras que podem ser limitadoras e prejudiciais ao desenvolvimento. A biomedicina, o diagnóstico psiquiátrico e o tratamento farmacêutico têm redefinido a angústia humana e o sofrimento mental como sendo problemas médicos, e o mesmo vale para os comportamentos das crianças considerados como desviantes e difíceis de administrar.
Deste ponto de vista, o campo da psiquiatria rapidamente colonizou e mercantilizou a desatenção, a hiperatividade e a impulsividade. Tomando proveito de sua mercantilização, faixas de profissionais e especialistas vem se tornando um balcão único de atendimento para a inabilidade das crianças em se concentrar.
Os autores explicam:
“Desta forma, o contexto socioeconômico familiar de crianças e adolescentes começa a ser avaliado através de marcadores biológicos generalistas, que levantam mais perguntas do que respostas. Os impulsos agressivos outrora tolerados, assim como os comportamentos indesejáveis que faziam parte do universo infantil, entraram no universo psiquiátrico. Estes comportamentos representariam indicadores de risco para doenças mentais graves na vida adulta e, portanto, precisariam ser eliminados com fórceps medicamentosos”.
Os autores examinam então as conseqüências da medicalização para os jovens. Notando que a doença mental infantil continua a crescer globalmente, Freitas aponta que as famílias são informadas que seus filhos difíceis estão sofrendo, não por causas sociais, mas por causas biológicas – o que pode ser corrigido através da compra ainda mais no negócio da biomedicina e da patologização. Mas muito pouca atenção está sendo dada ao que significa ser uma criança e adolescente em 2023.
Freitas oferece então quatro observações do contexto brasileiro.
- As estruturas e estilos familiares são diferentes – com o aumento da mobilidade vem uma perda dos laços e raízes familiares. No que Freitas chama de “Mundo Ocidental”, há cada vez menos ênfase na família, e em seu lugar há uma ênfase na gratificação individual e imediata.
- A própria infância é diferente hoje em dia- as novas tecnologias, da Wikipédia à mídia social, têm alterado fundamentalmente a forma como crianças e adolescentes navegam e vêem o mundo.
- O marketing para crianças mudou – as crianças devem olhar, agir, comer e ser cuidadas de maneira muitas vezes difícil e cara.
- A educação é diferente hoje em dia – Há uma ênfase mais forte do que nunca no desempenho acadêmico, na produtividade e na competição.
Cada uma destas diferenças na experiência da infância e da adolescência no século XXI só é exacerbada pelo que Freitas chama de uma “cultura do narcisismo”. Ou, em outras palavras, um mundo impregnado de individualismo.
“A ideologia do crescimento pessoal, superficialmente otimista, irradia um profundo desespero e resignação”.
Em vez de olhar para a sociedade e para as mídias sociais por razões que as crianças estão ficando mais infelizes e ‘desfocadas’, nós olhamos para a medicina. Entretanto, os autores vêem estas categorias de doenças como explicações simplistas que muitas vezes oferecem um caminho para restringir e controlar as crianças.
Para Freitas, o tema em questão é a medicalização da infância em si mesma e os tratamentos disponíveis. As prescrições para estimulantes, antidepressivos e antipsicóticos têm aumentado para crianças em todo o mundo. Infelizmente, como a taxa de drogas psicotrópicas aumenta para a juventude, também aumenta sua taxa de suicídio – o que levanta a questão de saber se o modelo biomédico serve para enfrentar seu sofrimento.
Alguns usuários de serviços encontraram identidade e uma comunidade em seus diagnósticos psiquiátricos. Entretanto, Freitas argumenta que à medida que os diagnósticos e o ato de auto-diagnóstico proliferam, devemos nos perguntar se esses diagnósticos criam ou não oportunidades significativas de acomodação. Ou, ao invés disso, eles apenas convidam a mais estigmatização, ostracização e capacidade?
As crianças são muitas vezes o alvo da medicalização, do sobrediagnóstico e da polifarmácia, e ainda assim continuam a sofrer psicológica e emocionalmente. Isto é especialmente desconcertante quando as evidências indicam que alguns tratamentos podem fazer mais mal do que bem a longo prazo. O documento nos impulsiona a considerar as causas fundamentais do sofrimento que os jovens sofrem, tais como homofobia e transfobia, racismo, bullying, pobreza e poluição.
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Freitas, F., & de Azevedo, L. J. C. (2022). Medicalizando crianças e adolescentes. Estudos de Sociologia, e022022-e022022. (Link)
[trad. e edição Fernando Freitas]