Entrevista com Nilson Lopes, Ex Usuário de Drogas Psiquiátricas

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HOMENAGEM A FERNANDO FREITAS

Hoje apresento aqui no Mad a história de vida de Nilson Lopes. Nilson concedeu uma entrevista a mim em setembro de 2022, como parte de minha pesquisa de doutorado[1]. Nessa entrevista descobri que estivemos, nós dois, sentados num mesmo auditório, sem que nos conhecêssemos, escutando uma palestra de Fernando Freitas na ABRASME em 2018[2]. Nilson me contou que a fala de Fernando foi decisiva e direcionou sua vida para sempre, pois foi naquele momento que Nilson decidiu parar de tomar drogas psiquiátricas.

Divulgar a experiência de Nilson no Mad in Brasil era um plano meu compartilhado com Fernando desde outubro 2022. Hoje a apresento aqui enlaçada com o desejo de homenagear Fernando – em memória dele e ao legado que ele deixou. Assim que soube que Fernando tinha falecido comuniquei ao Nilson, que disse: “pessoas assim não morrem porque permanecem vivas em nós”.

Nilson tem 61 anos e se apresenta como “Nilson Lopes, dependente químico em recuperação, há 10 anos sem uso de nenhuma substância”. Quando o entrevistei questionei como gostaria de ser chamado na tese – se gostaria de um nome fictício para preservar sua identidade, já que havia me contado coisas muito pessoais – e ele disse: “faço questão de ser identificado, para provar ao sistema que é possível superar as drogas com políticas públicas adequadas”.

Nilson tem uma história de vida muito difícil.  Cresceu em uma família muito pobre, com 9 filhos. Nilson é negro e foi criado numa colônia alemã, num país onde o racismo estrutural opera ações de exclusão importantes cotidianamente. Ele referiu que culturalmente só começou a se identificar, conhecer as suas raízes e se sentir parte do povo negro muitos anos depois, frequentando grupos afro em Porto Alegre. “eu comecei a me identificar e era convidado a participar desses grupos para aprender, porque a minha cultura foi abafada, foi apagada a história dos meus ancestrais. E a gente está resgatando isso também”.

Nilson esteve durante cerca de 30 anos em situação de rua. Foi internado muitas vezes em hospitais psiquiátricos no RJ, em SP e no RS. Esteve 9 meses internado numa comunidade terapêutica. Foram anos usando álcool e posteriormente crack (durante 8 anos) de forma muito abusiva, naqueles ciclos de viver para usar a substância e usar para poder viver. Viveu na Cracolândia (SP) alguns anos. Voltou para o RS e começou acompanhamento em um CAPS álcool e outras drogas (CAPSad) em São Leopoldo (RS). No CAPSad Nilson passou a frequentar grupos e a ter acompanhamento de uma equipe multiprofissional. Lá se envolveu com associações de usuários e foi na condição de, na época, presidente dessa associação que esteve em Brasília, na ABRASME, em 2018.

Parou de usar drogas ilícitas há 10 anos. A partir de oportunidades de discussão em Grupos da Gestão Autônoma da Medicação (GAM) e participação em eventos da luta antimanicomial,  foi entrando em contato com reflexões críticas também sobre o uso de medicamentos psiquiátricos, gestando a ideia de parar de usar. Em 2018 decidiu parar definitivamente de usar drogas psiquiátricas, impactado com os dados apresentados por Fernando Freitas em sua palestra.

Hoje Nilson trabalha como oficineiro de horta num projeto social em uma escola na cidade de São Leopoldo (RS). É atualmente vice presidente do conselho municipal de segurança alimentar do município de São Leopoldo (RS), membro do conselho estadual de segurança alimentar do Rio Grande do Sul (RS) e do fórum estadual de usuários do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) do RS, além de muito atuante junto ao POP Rua, participando ativamente dos debates sobre acesso e condições de vida das pessoas vivendo em situação de rua.

A entrevista com Nilson Lopes durou duas horas, por isso apresentaremos aqui fragmentos da entrevista. Confira:  

Lígia: Nilson, tu faz tratamento em saúde mental?

Nilson: Eu fiz durante… hoje faz 3 anos que estou afastado e que eu não tomo mais medicação né…. tomei durante 7 anos.

Lígia: Sete?

Nilson: Sete, primeiro eu tomei durante 2 anos quando me tratei do alcoolismo, depois eu tomei mais 7 anos.

Lígia: Aham.

Nilson: E hoje é… a partir das orientações do grupo GAM e também das palestras que eu ouvi com especialistas em São Paulo e em Brasília sobre a medicalização da vida né… e foi um palestrante que esclareceu uma porção de coisas lá que me fez refletir bastante e ver outras formas né…. que ele falou do quanto que era prejudicial a medicação e que a partir da patologização da vida… Ele iniciou falando das crianças –  que se uma criança sobe no sofá, fica quebrando coisas e derrubando, fazendo muita pergunta, a sociedade entende que essa criança tem algum problema mental, que é  uma criança hiperativa, que ela precisa de uma patologia e tomar uma medicação para que fique calminha. (….) A gente estava no evento enquanto movimento nacional da luta antimanicomial. Que é o contraponto da questão da internação, da medicalização além do necessário. Então, dentro disso e da questão da redução de danos e do próprio autoconhecimento. Então, a partir de uma ideia de que o paulistano que falou da medicação anti depressivo, estabilizador de humor, assim, a rodo… E sem uma avaliação mais precisa da situação. A enfermeira troca aceita, passa… Agora na pandemia, no pós pandemia, atende no plantão para dar receita e enfim. E é isso aí… esse cuidado, né? O próprio psiquiatra mesmo, com uma demanda grande para atender, não atentava para individualidade. E se tinha que aumentar, assim: “ah, tá surtando? então aumenta a medicação”.  (…) E foi assim comigo.

Lígia: Como é que foi contigo?

Nilson: Chegou um momento… eu tomava… No início, eu tomava imipramina, lá em 1998 quando eu me tratei pela primeira vez de alcoolismo. Eu tomei durante 2 anos. Mas essa medicação deixava o meu pensamento e a minha visão turva. Meu pensamento lento, raciocínio lento, a cabeça pesada e uma visão embaçada… das coisas e da vida. Me mantinha calmo. Me mantinha dopado, eu diria… e até que eu falei: mas é…? Eu precisava trabalhar, eu precisava viver. Eu estava sempre indisposto. Acordava tarde e com sono, com a cabeça pesada. Eu falei: “não é isso que eu quero para mim, né?” E eu me libertei do alcoolismo, de mais de 20 anos. E fiquei 2 anos tomando a medicação. Até que eu falei: “Não, eu não vou tomar mais e eu vou ver o que vai acontecer”. Mas eu conheci a maconha, eu conheci a cocaína, enfim… Daí eu fui para a maconha. Me acalmava e me deixava tranquilo. Enfim… Depois ela já não mais era suficiente para mim. Aí eu conheci a cocaína. Aí fui para cocaína… E depois eu fiquei 8 anos usando crack.

Lígia: Uhum

Nilson: E aí, foi a degradação humana total. E aí, sem medicação, sem nada…. E eu.. Nem documento eu tinha. Que eu fui para a rua.  E eu perdi o meu vínculo familiar, as pessoas não queriam mais eu por perto… Aí eu ficava nos albergues e viajava muito…fiquei… fui para São Paulo, fui para o Rio de Janeiro, Curitiba várias vezes, Porto Alegre, então… eu ficava por aí.. andando. (…) Andarilho. Às vezes de carona, às vezes eu ia de uma cidade para outra a pé. Ficava num albergue, arrumava algum trabalho (…) daí eu recebia, pegava o meu dinheiro e viajava. (…)  Mas eu não conseguia ficar muito tempo no emprego por conta do meu vício. Que eu faltava serviço. Dava problema com os encarregados ali, enfim, com os coordenadores, e eu não ficava muito tempo. Ficava para a rua, ia pro albergue, trocava de cidade… e… eu estava à procura do meu eu, acredito, né… Que eu não me encontrava e nem eu sabia o que eu estava procurando. Mas naquele município não era mais.

(…)

Nilson: Então foram dois espaços – um da saúde mental e o da assistência social – que me projetaram para outros espaços:  conselho de saúde, conselho comunitário (…)  e eu me identifiquei muito com isso para conhecer os meus direitos, para cobrar… Eu acho que foi isso que me que… ãahhhm… Como é que eu vou dizer? É o combustível que me move, né? E de estar com os meus iguais também, representando nesses espaços. Que eu sei da dificuldade que é de quem está com fome e de quem tem um vício, ou que usa uma droga de sua preferência ou álcool, de estar nesses espaços para cobrar dos seus direitos. Quem está com fome a prioridade dele é comer. Quem usa droga está obcecado por usar. O alcoolismo é a mesma coisa. Então a gente tem que tá… E isso também me fortalece enquanto pessoa em superação dessa situação. E quando eu falo disso, reforça. Eu falo para mim mesmo primeiro, né? E isso… Eu me convenci de estar forte e de tentar fazer mais.

(…)

Nilson: Eu vim de uma família de 9 irmãos negros, de pai analfabeto e de mãe também analfabeta. Convivia com uma porção de coisas dentro de casa, com briga, miséria, fome. Então todo um contexto que me fez, acredito eu, tomar esse rumo e de não conseguir estudar como uma criança normal, por conta de desnutrição e de não ter vestes nem material o suficiente para me sentir bem, né? E conseguir acompanhar os colegas… Aí, então… foi toda uma problemática que me fez ir para esse rumo. A falta de perspectiva… de olhar para o meu futuro e ver que não tinha muita coisa né? Que…é como a minha escolaridade… Tanto é que eu concluí o ensino fundamental agora em 2020 e o ensino médio em 2021 pela EJA. Mas por conta de toda uma combinação de fatores, do CAPSAD, da participação dos grupos, das políticas públicas, de pessoas, de trabalhadores comprometidos que me cobravam e me acompanhavam… E que parte dessas pessoas que era estagiário no início lá, quando a gente se conheceu, e hoje tem o seu consultório e a gente é amigo, toma café juntos, enfim… Então várias coisas assim, que… coisas pequenas, mas que somadas a outras e outras e outras formaram um… essa coisa mais gigante que me manteve. É difícil…mas que é o que me faz hoje estar onde eu estou, falando contigo, porque eu já me senti morto na minha vida… Para tudo… Só o corpo estava vivo. E obcecado por comida, mas principalmente por droga, por cachaça.

(…)

Quando eu estava  em situação de rua eu diria, né… Que eu estava sozinho no mundo, eu não tinha… eu rompi os vínculos familiares e eu não tinha amigos e eu não queria ficar no mesmo.. na mesma cidade, enfim, para não envergonhar eles e porque eu me conhecia… Eu sabia que às vezes eu exagerava, eu fazia confusão no boteco, enfim. Então eles não me queriam por perto… Por conta de que… briga dentro de casa com o meu pai, com os irmãos, enfim. Então, um jeito assim que eu tinha de… muita revolta. Muita mágoa, muita tristeza, muita angústia e que me sufocava…. e daí eu descarregava no que estava na minha frente.

Lígia: Sim.

Nilson: Né? E depois vou dizer que meu pai, meus irmãos, todos eram vítimas também, né? É que é…. Era todo um contexto social que, por conta da cor da pele, por conta de da história do Brasil, né? De tudo como se deu… Que a própria libertação dos escravos não foi na verdade libertação… Foi o início da favela, o início da população em situação de rua… Por conta do fato de que não foi oferecida nenhuma oportunidade de aquisição de terra e nem de sobrevivência com dignidade. Enquanto que… Para os imigrantes europeus teve acesso à terra, linhas de crédito e todo uma estrutura para que as pessoas pudessem progredir e de lutarem, poder ter seus filhos, de poder ter acesso à escola, enfim…

Lígia: Exatamente

Nilson: tem todo um histórico… No livro[3] eu falo que se olho para um ser humano e não vejo um ser humano, é porque antes disso ele já foi violentado.

Lígia: Olha…(pausa)

Nilson: E que para…

Lígia: “Se olho para um ser humano e não vejo um ser humano, é porque antes disso ele foi violentado”.

Nilson: É porque já foi violentado. E o que vejo é o que sobrou de um ser humano… um corpo… um zumbi.  É por que… para compreender o momento de hoje de alguém, ou do mundo, ou do Brasil é preciso compreender o processo histórico. Porque ele terminou por… para que hoje seja dessa forma.

Lígia: Aham

Nilson: Então não é por acaso que tem moradores de rua. “É vagabundo, não quer trabalhar”, né, eu quantas vezes queria trabalhar? Queria que… Se fosse me dado a oportunidade lá no início, desde criança…talvez seria diferente hoje. Não me arrependo do que eu sou hoje, né, que eu me considero a cada dia como… estar no ponto mais alto do pódio da minha vida, né? (ri emocionado) Que o meu ponto de partida é a sarjeta, é uma coisa ruim. Mas voltando à medicação… Quando… no CAPSAD eu tomei… várias vezes eu conversava com a psiquiatra e eu dizia: “Ah, tá sendo fraco, eu acho… Porque eu continuo com ansiedade… às vezes eu tenho depressão… e eu tenho umas crises repentina”. E aí ela mudava a medicação. E ela depois me perguntava como que estava, se foi bom. Aí eu tinha um sono muito pesado e não conseguia acordar.  E ela modificava e aí me perguntava… E assim foi indo né… isso durante 7 anos.  No ínicio eu tomava 5, 6, 8 de manhã, meio dia, de noite. (…) Mas aí eu tomei… Eu diria que todos, né, Imipramina lá. Mas aí principalmente Haldol, Amplictil… para não ter convulsão, para a pressão arterial eu tinha que tomar também… e complexo B  para a questão da alimentação e até para a ansiedade, enfim. (…) tomei carbamazepina, tomei Diazepam por um tempo… depois o médico cortou. Ele disse: “é, tu tá viciado nesse Diazepam. Esse tu não vai tomar mais”. Carbonato de lítio foi o que mais tempo eu usei. (…) Mas também… todos me deixavam nessa coisa de… flutuando, cabeça pesada, não podia ter uma vida normal. Até que chegou no final, é… aí eu conversei com a doutora. Eu falei: “doutora, às vezes eu tenho ansiedade e… eu não sei se isso pode ser o meu normal, né… que… que seja isso”, isso depois de ter participado dessas palestras, né?

Lígia: Essas de Brasília e de São Paulo?

Nilson: De Brasília e de São Paulo. E aí eu falei.. Aí, eu não sei… De repente…(pausa) como que a gente vai lidar com isso, se isso é normal e eu tenho que desenvolver alguma maneira de…. de suportar isso.

Lígia: Aham

Nilson: ou…Porque eu não posso ficar a base de medicação para… se ela me deixa num estado que… anormal para mim. Eu estou com o freio de mão puxado. E eu preciso viver, eu preciso trabalhar, eu preciso estar nos espaços… e para poder assimilar as coisas, aprender né… e não ser tão esquecido. (…)  Daí a gente combinou de fazer uma experiência de diminuir a dose até zerar. Eu falei: “tá, vamos fazer então” E aí a conclusão que a gente chegou… é que eu continuava tendo as mesmas… ãhmmm… aquelas… Não crises né… mas assim, repentinamente eu ficava com ansiedade.

Lígia: Aham

Nilson: E.. alterava o humor. Eu vivia com a minha mãe e às vezes eu via que eu tinha respondido de uma forma que não era adequada e que não era daquele jeito que tinha que ser e nem que eu queria ser. E… daí? A ideia era então que… que eu aprendesse a lidar com isso, né. Sem a medicação. Por que a conclusão é de que é… eu tinha, mas era na mesma, no mesmo nível. Tomando medicação, eu tinha. E não tomando, eu tinha. E…. não morria por conta disso, né? Mas que, claro, eu precisava desenvolver. Aí a gente começou a… me dediquei bastante tempo a hortas, a jardim – que é uma coisa que eu gosto de fazer – e estar nos espaços falando. Seja para estudantes, seja para outras pessoas… No CENTRO POP, nos albergues, onde tem gente da rua ou tem pessoas que também tem um vício… de… Para que as pessoas possam ver que é possível e que, tendo força de vontade e claro que todas essas combinações que eu falei, é possível que a pessoa se liberte da medicação e que ela pode ter uma vida normal.  Para mim, no caso, né? É… como é que eu vou dizer… (pausa) A partir da escuta, de você valorizar o potencial que já existe. Todo mundo sabe fazer alguma coisa que só ela daquele jeito. E eu, por conta da curiosidade, de querer aprender, de querer saber mais e até de me conhecer melhor…

(…)

Lígia: Ô Nilson, só para eu entender, então, quando tu se afastou (do CAPSad), na verdade, tu já não usava mais medicação, já tinha parado de usar medicação.

Nilson: Sim, tinha. Eu parei de usar em 2018. Aí eu pedi para fazer essa avaliação e eu falei que eu estava ainda…. que eu tinha ansiedade. Que eu tinha dificuldade de dormir. Só que eu tomava e dormia de mais. O sono ficava muito pesado e durante o dia eu tinha ansiedade e ficava meio nublado e as perna pesada e a cabeça. E daí ela falou, mas é o lítio, o lítio é o mais recomendado, com menos efeito colateral.

L: Nessa época, depois de todos os medicamentos, tu só tomava o lítio e mesmo assim, continuava sentindo esses efeitos colaterais

N: Exato

L: E aí, tu aí que tudo começou esse processo de redução gradual do lítio é isso?

N: Lítio, que era a última medicação que faltava. Que era a última que faltava eu me libertar dela.

(…)

Nilson: eles (os psiquiatras do CAPSad) falavam, “não, tu não precisa, tu está bem. Tu não precisa tomar medicação, tu precisa se conhecer”. E controlar a ansiedade de outras formas. Por que existem outras formas.

Nessa época, Nilson ouviu a palestra de Fernando na ABRASME:

N: Sim, eu vi e daí eu conversei com a minha psiquiatra. Ela foi uma das pessoas que me atendeu mais tempo, ficou 4 anos. E então ela conseguiu no fim da história… Ela sempre dizia “tu está bem Nilson, já pode dar alta”. Mas eu não estava seguro

L: Que tu já estava há muito tempo sem usar nenhuma substância e continuava frequentando o CAPSAD porque tu se sentia seguro.

N: Exato e até porque o meu público estava lá, enquanto associação de usuários, a gente não tinha sede a gente se… A gente nasceu dos espaços de convivência. Então, era uma referência. Para encontrar esse público lá. E a gente tinha uma relação de afeto. De vínculo, de companheirismo, de ajuda, de emprestar dinheiro, de sair junto… E isso me fortalecia. Mas quando eu ouvi essa palestra e… eu já tinha, eu já vinha num processo de diminuição. E digo “nossa, então, se… As pessoas precisam ser elas mesmas, não é?” porque o hipocondríaco ele tem todas as doenças e ele precisa tomar medicação e o analgésico também, uma das coisas mais consumida que existe. Então, tudo está a na farmácia. E, se eu não consigo, se eu não estou dentro de um procedimento artificial social, então eu sou um doente. Então, eu tenho que tomar uma medicação e sem essa coisa de… Claro e eu tomei.. e acredito que naquele momento fez a diferença. Mas assim como eu sabia que tinha me tratado de alcoolismo, tinha saído e nunca mais me fez falta e que eu passei pela drogadição das 3 e do crack, que foi um dos mais fortes e que não morri por isso. E que, então,  também a medicação eu poderia  abolir e tratar de outras formas. Com chás. Vendo filme… ver as coisas que eu gosto para poder fazer e não…. não é isso…. ficar dependendo de medicação.

 

(….)

N: E a gente conseguiu… De uma história que eu sempre digo que tem como ponto de partida a sarjeta e o farrapo humano em todos os sentidos… Por que quando uma pessoa está deitado na rua. É muito mais do que um corpo que está ali no chão. É a alma, é o espírito, é a dignidade. É a cidadania, autoestima, os sonhos né?… tudo o que de bom havia naquele corpo que está deitado ali… É só um corpo que está ali, morto. Um morto vivo, um zumbi, como diz o cartaz né? Que a gente foi chamado de zumbi aqui em Porto Alegre. O pessoal da rua… “esses zumbis que ficam circulando de noite”, né?. Por isso que diz “Zumbi, só se for dos Palmares”. Que esse fez a diferença na vida dos negros

(…)

Lígia: como é que tu avalia o papel da medicação assim, na tua vida assim?

N: Eu acho que assim (…) ela foi importante nos momentos, naqueles estágios em que eu me encontrava, ela foi importante sim. Ela me confortou e ela fez a diferença, assim, me fez melhor, né? Eu acho que eu teria surtado, enlouquecido em alguns momentos e eu não dou… não teria dormido à noite se eu não tomasse a medicação. Mesmo que ficasse com sono de dia, mas que naqueles momentos, que naqueles estágios em que eu me encontrava eram necessários. Mas que… não para tomar a vida toda. Não para continuar nessa dependência. E de também me deu a oportunidade de me conhecer de cara, poder ficar de cara limpa. De como que é… e de que o bicho não é tão feio quanto eu imaginava. Eu tinha medo, né de ficar assim, mas aí.. diante de de… de tanta informação que eu sempre tive curiosidade de saber mais no do que eu estou inserido… do medicamento, de saber mais é… da psicologia, ler livros, de que… o que que, de fato, é a psicologia, o que que é da área social… qual é que são os meus direitos, o que que é um caps, né? quais os princípios do SUS e do SUAS, qual o papel? E então… é, e de ver que tinha um monte de coisa, quanto mais eu aprendia, eu via que eu sabia menos. Mais coisa eu tinha para aprender, como ainda hoje, né?

(…)

Por isso que eu digo: quanto mais eu estudo e aprendo, menos eu sei.[risos] Mais coisa eu fiquei… mais coisas eu tenho para aprender.

L: [Risos] Mais coisa tu descobre que ainda tem para aprender, né?

N: E até o próprio autoconhecimento. Sempre se descobrindo… descobrindo coisas que a gente gosta, o que não gosta. Mas é muito importante para mim poder falar da causa que eu defendo e de poder mostrar para as pessoas que é possível sim, um zumbi… morto vivo se transformar numa pessoa produtiva. E a rua produz conhecimento também. Produz! A rualogia! Eu quero fazer quando eu tiver oportunidade pedagogia para eu organizar da fala para ser um palestrante e para qualificar isso.

***

Autora: Lígia Castegnaro Trevisan

Psicóloga clínica, Especialista em Saúde da Família e em Psicologia Social e Institucional. Mestre em Saúde Coletiva. Atualmente doutoranda em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio                                      Grande do Sul (UFRGS). Possui experiência em gestão do Sistema                                    Único de Saúde (SUS), apoio institucional, Atenção Primária em                                        Saúde (APS),saúde mental, clínica e docência (cursos de psicologia                                    e medicina).

 

[1] Doutorado em Psicologia Social e Institucional, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com orientação de Analice Palombini, com término previsto para 2023. A tese investiga a relação estabelecida com as drogas psiquiátricas, analisando experiências de uso prolongado de psicofármacos e de redução/interrupção, imergindo nos campos de disputa que se instauram na problematização do uso de drogas psiquiátricas.

[2] A fala de Fernando ocorreu na ABRASME, em Brasília, no dia 04/09/2018, intitulada “Medicalização: Patologização da Sociedade”.

[3] Nilson se refere a um livro lançado por Ana Carolina Mattos no qual teve participação: MATTOS, Ana Carolina Einsfeld. “Mas, se a gente é o que come, quem não come nada some!”. APPRIS, 2021. Para saber mais, acesse https://sul21.com.br/opiniao/2021/07/um-livro-que-une-a-academia-e-as-realidades-da-populacao-de-rua-por-ana-carolina-mattos/