O artigo faz uma revisão de trabalhos que examinam como as drogas são tornadas eficazes nos laboratórios, em contextos terapêuticos e na vida cotidiana, focando na vida social dos fármacos. Como resultado, identificou-se que não há um objeto (farmacêutico) puro, eles não são “descobertos”, na verdade, eles são constituídos e reproduzidos em relação a contextos passíveis de mudanças. Portanto, o objeto é influenciado pela sua socialização.
A discussão foi dividida entre cinco áreas-chaves: a primeira trata das práticas e técnicas utilizadas para medir a ação farmacêutica. A segunda desvenda as relações entre Estado, mercado e regulamentação modelam a ação farmacêutica. A terceira área investiga os materiais farmacêuticos de informação por meio do marketing. O quarto examina as ações de cuidado. E, por fim, a última área dilui a fronteira entre fármacos, corpos e seus ambientes.
A análise realizada no artigo dialoga com a abordagem crítica de Tim Ingold, sendo assim:
“Ingold (2012, p. 433) propõe um deslocamento do estudo dos objetos para o enfoque nos materiais, o que requer que nós sigamos o “fluxo da matéria”. A matéria está sempre em movimento, sendo moldada e transformada por processos e práticas humanas e não humanas. Nós adotamos esta abordagem para passarmos de um enfoque centrado nos objetos, que dominou a antropologia das drogas nos anos 1990 e 2000, para uma abordagem centrada nos processos que examina as articulações, desarticulações e rearticulações da matéria-pharma.”
1º área-chave: Fazendo os fármacos funcionar nos experimentos químicos
Desde a tragédia da inserção no mercado consumidor do fármaco talidomida (um hipnótico), nos anos 60, que causou malformações em diversos bebês, as agências reguladoras passaram a exigir testes que aprovassem a segurança e eficácia dos medicamentos, para só então, entrarem no mercado. Até então, era comum os experimentos serem realizados por médicos e químicos em seus próprios corpos. Visando superar as limitações dos relatos de caso e dos experimentos isolados, os clínicos passaram a utilizar os ensaios controlados randomizados (RCTs), como modelo padrão para demonstrar segurança e eficácia.
As agências reguladoras presumiram que ao analisar uma população grande, gerando estatísticas e comparando um grupo placebo e um grupo ativo, poderia garantir a segurança. Porém, os antropólogos vêm chamando a atenção para o fato desses estudos tomarem como ponto de partida um corpo biológico universal, sem levar em consideração as condições sociais e as infraestruturas que influenciam a forma como as tecnologias atuam, e por desconsiderarem os benefícios do efeito placebo.
Os estudos de RCTs, no campo da psiquiatria “psicodélica” e com placebos apontam na mesma direção, para a importância da relação terapêutica para como um mecanismo chave para intensificar a resposta dos pacientes ao tratamento psicofarmacológico e otimizar a resposta dos pacientes ao tratamento.
“Esses estudos mostram que a eficácia farmacêutica não está apenas nas drogas, mas também é potencializada sinergicamente por meio dos espaços, relações, expectativas e práticas rituais. Esses insights, junto com os novos designs experimentais que estão emergindo para explicar esses efeitos sinergéticos, desafiam abordagens materialistas e reducionistas que pressupõem que os significados simbólicos ou as dinâmicas emocionais e interpessoais não afetam as respostas farmacológicas”
2º área-chave: Os nexos entre Estado e Mercado
Uma parcela significativa da literatura na Antropologia vêm apontando para a influência dos objetivos comerciais e de mercado que estão entremeados com as pesquisas de drogas farmacêuticas. Como consequência, há uma ênfase nos efeitos farmacêuticos desejáveis e uma minimização dos riscos. A saúde vem sendo cada vez mais conhecida pelo capital, sendo crescentemente farmaceuticalizada.
“Impelidas pela lógica capitalista, as companhias priorizam o desenvolvimento de medicamentos voltados para grandes mercados para e doenças crônicas, como a hipertensão. Os pacientes que têm esse tipo de doença não são curados e nem morrem; eles tomam medicamentos durante toda a vida.”
Através da implantação dos remédios genéricos, percebeu-se que elementos como o metabolismo individual, a fidelidade às marcas e os componentes químicos inativos usados no transporte dos compostos farmacêuticos afetam a ação dos fármacos.
3º área-chave: Informando Posteriormente os Fármacos
Os remédios são, geralmente, reinscritos com novas informações sobre sua eficácia. Isso muitas vezes acontece por causa da competição com os genéricos. As indústrias farmacêuticas tentam desqualificar os genéricos e dar sobrevida aos seus produtos associando -os a novas indicações.
“Um exemplo elucidativo deste processo está no trabalho de Greenslit (2005), que descreve como a Pfizer reelaborou o marketing da fluoxetina (o princípio ativo do Prozac) como um tratamento para o distúrbio disfórico pré-menstrual. A companhia deu um novo nome a droga (Sarafem), uma nova cor (rosa), e uma outra indicação (o distúrbio disfórico pré- menstrual). Desse modo, a Pfizer encorajou as mulheres a experimentarem os sintomas do seu ciclo menstrual como algo que pode ser tratado com medicamentos, ao mesmo tempo evitando uma associação negativa com a depressão.”
As companhias farmacêuticas promovem certa eficácia médica, mas também associam sua marca a estilos de vida, prometendo a felicidade, saúde, menstruação sem oscilações de humor, e assim por diante. O marketing dos fármacos é voltado, justamente, para capturar desejos e esperanças. Enquanto os efeitos colaterais são colocados em letras minúsculas e difíceis de ler. Essa forma de propaganda modela a forma como os fármacos são experienciados e atuam.
4º área-chave: Tornando os Fármacos Eficazes em Contexto de Cuidado
Uma série de estudos etnográficos demonstram as dimensões micropolíticas no cotidiano de cuidado, no qual os médicos disciplinam os pacientes a aderir aos regimes biomédicos. A indústria farmacêutica também traça um perfil dos seus consumidores através dos prescritores, tornando as farmácias lugares chave no processo de negociação e re-atualização da ação farmacêutica.
6º área-chave: Vazamentos: pulmões, intestinos e metabolismo
Os artigos analisados vão apenas até quando os fármacos são consumidos, ou seja, ingeridos, digeridos e absorvidos. Abordam pouco a dissolução dos fármacos. Um campo novo de análise, tem sido a percepção ecológica sobre o fluxo farmacêutico, dentro e fora dos nossos corpos.
“Landecker (2015) fornece um exemplo de como podemos seguir os fármacos através das fronteiras corporais. Ela descreve como os antibióticos, embora tenham como alvo os corpos individuais, produzem eventos evolutivos e ecológicos de larga escala que vão muito além desses corpos. Eles sedimentam uma história de gerenciamento de riscos na política corporal das bactérias, que são geneticamente, fisiologicamente e ecologicamente modificadas neste meio ambiente poroso e distribuído de uso disseminado de antibióticos.”
O artigo termina concluindo que a ação farmacêutica não se resume às propriedades químicas dos fármacos, pelo contrário, ela se acha dentro de uma malha de contextos, de práticas e dinâmicas sociais.
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Anita Hardon, Emilia Sanabria e Isabel Santana de Rose. Ilha, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 263-285, janeiro de 2023 (link)