Circuito Manicomial: A Presença do Manicômio Extramuros

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No artigo: O Circuito Manicomial de Atenção: Patologização, Psicofarmaceuticalização e Estigma em Retroalimentação, é abordada a lógica manicomial ainda presente nas instituições e na cultura. Nos manicômios havia uma prática mais ou menos hegemônica e explícita das práticas manicomiais. No entanto, com  o fechamento dessas instituições, essas práticas não deixaram de existir, mas exigem maior atenção da nossa parte, pois se manifestam de maneira mais sutil e traiçoeira, se utilizando de novos atores sociais e novas tecnologias de controle. Essa lógica manicomial é denominada de circuito manicomial de atenção, conceito que se aproxima daquilo que Basaglia denominava circuito de controle.

O estudo analisou as trajetórias de pessoas com experiência de sofrimento psíquico grave e uso abusivo de álcool e outras drogas. Foram utilizados os seguintes operadores de desinstitucionalização: autonomia, integralidade e equidade social. Os operadores de desinstitucionalização se definem como processos, ações ou dinâmicas que produzem pontos de virada na vida e nas experiências de sujeitos com histórico de institucionalização, favorecendo situações de reinserção ou recuperação ou gerando condições para elas. 

Os critérios de escolha dos casos foram: 

  1. Terem mais de 18 anos de idade;
  2.  Já terem vivido, ao menos, uma hospitalização psiquiátrica, em hospital de custódia e/ou internação em comunidade terapêutica, com um mínimo de seis meses seguidos de duração, ou um conjunto de reinternações sucessivas caracterizadas como porta-giratória;  e/ou
  3. relatarem o que chamamos de vivências institucionalizadoras extra-asilares.

As categorias de análise identificadas a partir da literatura e do trabalho de campo foram: estigma, medicalização/patologização, psicofarmaceuticalização, práticas de manicomialização e elementos do circuito manicomial de atenção.

Os autores identificam o paradigma farmacológico complementar à lógica asilar, como uma forma de dar continuidade entre o “dentro” e “fora” da instituição total. Juntamente com a medicalização/patologização e a estigmatização das pessoas. 

“Os modos de produção de identidades e subjetividades estigmatizadas, a partir da medicalização e patologização de comportamentos das pessoas, e seus múltiplos efeitos em termos de violência interpessoal, institucional, simbólica e estrutural (Nunes &Torrenté, 2009), que incluem o controle pelos psicofármacos e a retirada da autonomia e liberdade das pessoas, caracterizam práticas manicomiais que se exercem fora dos muros, com a participação de outras instituições.”

Para descrever a produção do circuito manicomial de atenção sob a perspectiva de retroalimentação entre o manicômio intra e extramuros, foram elaborados os seguintes aspectos: a) o processo de alimentação da identidade patológica; b) a espiral do controle: psicofármacos reforçando o estigma patologizante; e  c) os horrores da internação e a domesticação extramuros da solução-manicômio.

A medicalização da vida é o fenômeno de transformar problemas não médicos em problemas médicos, manifestando uma intolerância à diversidade, daquilo que sai do considerado “normal”. A epistemologia do patológico é exportada do norte global e invade o cotidiano através da atuação profissional pseudocientífica e pela incorporação na sociedade como um todo, gerando assim, um produto cultural. O impacto social é bem negativo, já que anula ou regula o sofrimento psíquico e impede a produção de soluções emancipatórias. 

“Luciane, no momento da pesquisa com 42 anos, afirma ter sido internada mais de 10 vezes na sua vida, a primeira aos 14 anos, com atual diagnóstico de transtorno bipolar. Permaneceu uma média de três meses na maioria desses internamentos. Hoje vive com sua mãe, um filho e um irmão. Gostava de escrever poesias e de se vestir de forma “romântica”, com muitos tons de rosa. Gilmar tinha 32 anos à época da pesquisa e adoeceu com 19 anos. Morava com sua mãe nessa mesma cidade e diz já ter sido internado em torno de oito vezes, tendo recebido diagnóstico de esquizofrenia. Afirma-se como homossexual e também como drag queen, identidade de que gosta muito (apesar do trabalho que dá “se montar”), pela vocação que tem para cantor e imitador.”

Nas falas dos participantes é possível perceber uma necessidade de afirmar a normalização operada pelo psicofármaco ao mesmo tempo em que se reivindica o direito em ser diferente. A patologia também parece se sobrepor a identidade de gênero, no caso de Gilmar, como se sua sexualidade fosse um sintoma da esquizofrenia. 

“Doutor Luís (pseudônimo), Mainha falava que foi meu pai, meu tio, meu avô, meu tudo. Mainha disse que ele praticamente me criou… “ (Luciene)

A fala de Luciene representa a presença e poder que o psiquiatra tinha na sua vida. No entanto, Luciene não concordava com a mãe e decidiu mudar de médico. Pela primeira vez sentiu que o médico interagiu com ela de maneira comunicativa e resolutiva. 

“O médico, que era Doutor Luís na época, até hoje nunca me explicou nada; o único médico que veio me explicar alguma coisa foi Doutor João (pseudônimo), que, quando eu conheci ele, eu fui logo falando: oh, Doutor, eu quero saber tudo, não me esconda nada, eu quero saber o que eu tenho de verdade, e ele foi me explicando.” (Luciene)

Em ambos os casos, Luciene e Gilmar, a questão do controle farmacológico aparece bastante. Existe um controle, organizando a rotina ao redor do remédio, a partir de uma visão de que a possuem uma doença crônica sem cura e que apenas a estabilização é possível. Reduzindo o sofrimento a dimensão bioquímica e o cuidado à psicofarmaceuticalização do sujeito. 

“A psiquiatria foi boa, porque (durante as internações) me ensinou a tomar os remédios – porque às vezes não queria comer o que não gosto, tomar um cafezinho frio… Daqui para o final do ano, eu vou em Doutor João, mesmo que não tenha nada, só para ver a medicação.” (Gilmar)

O artigo aponta para o conceito de psicofarmaceuticalização da subjetividade. O trabalho colaborativo entre psiquiatra, família e o psicofármaco terminam por desempenhar uma função macrobiopolítica, estendendo a psiquiatria para além do consultório e fazendo com que as famílias atuem como proxi-psiquiatras. A esse arranjo de retroalimentação, se soma a estigmatização desses sujeitos, utilizado para que a sociedade e os próprios sujeitos em sofrimento perpetuem práticas opressivas favorecendo o controle extramuros. 

A partir do estigma, características pessoais são lidas como parte de uma “doença”, e julgamentos morais são aguçados, exigindo comportamentos estritos para a pessoa ser aceita e reconhecida. 

“Eu achei muito difícil a convivência (com as pessoas da comunidade), porque ninguém me entendia, uns achavam que era mania, outros achavam que era surto mesmo, devido à maneira como eu ficava. Eu não lembro como eu ficava, já fui até amarrada de corda, fui até agredida por várias pessoas. Muitas pessoas já chamaram até a polícia, os vizinhos, eu não entendia, achava que estava fazendo algo muito errado. Na época, vinha bombeiro e a polícia me levava toda machucada pra lá (hospital), internava lá na psiquiátrica, aí, quando eu saía de lá, as pessoas ficavam me olhando. Até hoje, quando eu me visto diferente, de um modo, por exemplo, se eu tiver uma roupa que eu mesma faça meu look, umas cores… aí fala: tá ó (gesto de doida), já olham com um olhar diferente. Eu sinto isso, que chega.” (Luciene)

Também é evidenciado pelo artigo como a internação, a segregação ainda é um recurso muito utilizado. Há um processo de subalternização da pessoa em sofrimento em que ela acaba vendo a internação como um cuidado necessário. Os motivos pelos quais os participantes foram internados se devem mais a questões sociais (moradia temporária, acesso a alimentação…) e pelo desamparo diante de situações de violência intrafamiliar, redes sociais fragilizadas, do que como uma opção terapêutica de fato. 

“Aí acordei, e têm uns que maltratam, têm enfermeiras que não querem nem saber. Eu forrava minha cama, eu estava em um quarto assim… e parecia um filme de terror. Tinha um cara lá,amarrado, um cara negro, quando eu acordei, parecia que eu estava num filme de terror. Deus é mais! Aí vem outro, vem outro aí arrancou minhas pulseiras tudo do hospital, uma mulher, foi a primeira crise, né?” (Gilmar)

Como conclusão, os pesquisadores apontam para o risco de usar a instituição asilar como muleta. Uma crítica feita ao processo da reforma psiquiátrica foi a autonomia na ação direta com os usuários, se afastando de suas redes sociais e a atuação insuficiente no território. O processo de medicalização da vida que se manifesta na patologização do sofrimento, no paradigma farmacológico, na estigmatização e moralismo do cuidado, também são apontados como dificuldades atuais no campo da saúde mental. Há, pois, uma continuidade extramuros da lógica manicomial, já que a negação ao manicômio não foi feita. 

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NUNES M. DE O.; TORRENTÉ, M. DE.;CARVALO, P.A.L. DE.. O Circuito Manicomial de Atenção: Patologização, Psicofarmaceuticalização e Estigma em Retroalimentação. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 42, 2022. (Link)

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Graduada em Psicologia pela UERJ, especialista em Terapia Familiar pelo IPUB/UFRJ, com ênfase em saúde mental. Pesquisadora auxiliar do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE/Fiocruz) e Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial(LAPS/ENSP/Fiocruz) Produtora e apresentadora do podcast Enloucast. Além de atuar como psicóloga clínica. Áreas de interesse: Saúde Mental, Terapia Sistêmica, Diálogo Aberto, Construcionismo Social, Medicalização e Patologização da vida