Explorando os Efeitos a Longo Prazo dos Medicamentos para TDAH no Risco de Doenças Cardiovasculares

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Nota do Editor: Todos os artigos, matérias, notícias e traduções publicadas no Mad in Brasil são previamente autorizadas e revisadas pelo nosso editor-chefe, Paulo Amarante.

No início do ano, um estudo revelador foi publicado no JAMA Psychiatry, abordando os efeitos a longo prazo dos medicamentos para Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) no risco de doenças cardiovasculares. As descobertas desta pesquisa são de grande relevância, especialmente no atual contexto de sobrediagnóstico e medicalização, em que o recurso aos medicamentos são a principal via de tratamento escolhida e a prevalência das prescrições (e do uso não prescrito) de estimulantes e dos não estimulantes segue em ascensão.

Vale ressaltar que o JAMA Psychiatry é uma publicação renomada e influente no campo da Psiquiatria e da Neurociência, conhecida por sua rigorosa seleção de pesquisas e artigos. Como parte da família de periódicos do JAMA (Journal of the American Medical Association), fundado em 1883, o JAMA Psychiatry compartilha do prestígio e da tradição que caracterizam a marca JAMA.

O artigo intitulado Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder Medications and Long-Term Risk of Cardiovascular Diseases (em tradução livre: Medicamentos para Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade e o Risco a Longo Prazo de Doenças Cardiovasculares) resulta de uma pesquisa liderada por um time internacional de pesquisadores. Eles utilizaram extensas bases de dados suecas do registro nacional de saúde para acompanhar pessoas diagnosticadas com TDAH ou que iniciaram tratamento medicamentoso entre os anos de 2007 e 2020. Os medicamentos utilizados incluíam todos aqueles aprovados para o TDAH na Suécia durante o período do estudo e abrangiam tanto estimulantes (metilfenidato, anfetamina, dexamfetamina, lisdexamfetamina) quanto não estimulantes (atomoxetina e guanfacina).

A análise buscou entender se o uso dessas medicações está associado ao aumento no risco de desenvolver problemas cardiovasculares ao longo do tempo. Para examinar essa hipótese, foi realizado um estudo de caso-controle, abordagem de pesquisa que compara dois grupos de pessoas: aqueles que têm uma condição específica (os casos) e aqueles que não têm (os controles). Então, foram selecionadas e acompanhadas ao longo dos anos pessoas diagnosticadas com TDAH ou que começaram a usar medicamentos para TDAH. Durante o acompanhamento, quando alguém desenvolvia uma doença cardiovascular, era considerado um caso.

Para cada caso, os pesquisadores escolhiam até cinco controles, ou seja, pessoas sem doenças cardiovasculares, mas que eram semelhantes em idade, sexo e período de acompanhamento. Isso garantiu que casos e controles tivessem a mesma duração de
acompanhamento desde a linha de base (ou seja, entrada na coorte) até a data do índice
(data do surgimento de uma doença cardiovascular). Além disso, os períodos de uso dos
medicamentos para TDAH foram categorizados em 6 faixas de duração, como 0 a ≤1 ano,
1 a ≤2 anos, 2 a ≤3 anos, 3 a ≤5 anos, e mais de 5 anos. Essas faixas de tempo foram
usadas para avaliar a associação entre a duração do uso de medicamentos para TDAH e
o risco de incidentes cardiovasculares.

No estudo, o fator de interesse investigado foi o período total de uso de medicamentos para TDAH pelos participantes. Esse período, chamado de ‘duração cumulativa’, corresponde à soma de todos os dias em que os pacientes estiveram sob tratamento com esses medicamentos, desde o início do acompanhamento (linha de base) até três meses antes da data de índice. A decisão de excluir os últimos três meses antes da data do índice teve o objetivo de minimizar o risco de que alterações na prescrição de medicamentos, feitas em resposta a sinais precoces de problemas cardíacos, pudessem distorcer os resultados.

Para analisar a relação entre o uso prolongado de medicamentos para TDAH e o risco de doenças cardiovasculares, foi utilizada a técnica de regressão logística condicional. Trata-se de um tipo de análise estatística que permite estimar as Razões de Chances (Odds Ratios), ajustando por diversas variáveis que poderiam influenciar os resultados (como idade, sexo, tempo de calendário e histórico de comorbidades).

Em conclusão, nesse estudo com 278.027 pessoas diagnosticadas com TDAH, de idades entre 6 e 64 anos, descobriu-se que 10.388 delas desenvolveram doenças cardiovasculares (DCV). Essas pessoas foram comparadas com outras 51.672 pessoas que não tinham problemas cardiovasculares. Os tipos mais comuns de DCV foram hipertensão (4.210 casos – 40,5%) e arritmias (1.310 casos – 12,6%). Ademais, o metilfenidato foi o tipo de medicamento mais dispensado, seguido pela atomoxetina e lisdexanfetamina.

O estudo também demostrou que as pessoas em uso de medicamentos para TDAH
por mais tempo tinham maior chance de ter problemas cardiovasculares, principalmente
hipertensão e doença arterial. Nesse sentido, ao longo de todo o acompanhamento, para
cada ano adicional de uso de medicamentos para TDAH, o risco de DCV aumentava em
4%, com um risco ainda maior nos primeiros três anos de uso, chegando a 8%. Pessoas que tomaram medicamentos para TDAH por 3 a 5 anos ou mais tiveram um risco
significativamente maior de desenvolver hipertensão e doença arterial em comparação
com quem não tomou esses medicamentos.

Especificamente, o risco de hipertensão aumentou entre 72% e 80%, e o risco de doença arterial aumentou entre 49% e 65%. Logo, o uso mais longo dos medicamentos
estava ligado a um maior risco. Essa tendência foi observada tanto em crianças e jovens
menores de 25 anos quanto com adultos com 25 anos ou mais, e foi consistente entre
homens e mulheres. Além disso, o estudo identificou que o risco de DCV aumentava com
doses mais altas dos medicamentos. O uso prolongado de metilfenidato e lisdexanfetamina também foi associado a um maior risco de doenças cardiovasculares em geral. No entanto, o aumento do risco com o uso de atomoxetina foi notado apenas no primeiro ano.

Assim, a pesquisa de Zhang et al. (2024) conduzida com base em dados de sujeitos
suecos ao longo de 14 anos ressalta a necessidade de avaliar com cautela o tratamento
medicamentoso para o TDAH a longo prazo, pois isso está associado a um risco
aumentado de doenças cardiovasculares.

É importante ressaltar que a pesquisa científica tem produzido resultados mistos em relação ao assunto aqui discutido. Há estudos que afirmam não encontrar uma associação significativa entre o uso de medicamentos para TDAH e um aumento no risco de DCV. Inclusive, alguns deles sugerem uma ligação de base causal absolutamente biológica (ancorada em explicações reducionistas) entre TDAH e DCV (AHMAD BANDAY E LOKHANDWALA, 2006; COROMINAS et al., 2012; HOEKSTRA, 2019).

Apesar dessa confusão, cresce o número de estudos que encontram uma associação
positiva significativa entre o uso de medicamentos para TDAH e o desenvolvimento de
DCV, a exemplo de Hennissen et al. (2017), Liu et al. (2019), Zhang et al. (2022;
2024). Eles assinalam a necessidade de mais pesquisas sobre este assunto pouco estudado
– o que constitui uma limitação importante, pois pessoas com diagnósticos psiquiátricos
em geral são tratadas prioritariamente com psicofármacos – e, no caso específico do diagnóstico de TDAH, a terapia farmacológica é recomendada como tratamento de primeira linha em muitos países.

Os medicamentos para TDAH são amplamente utilizados para ‘melhoramentos’ (desempenho cognitivo, concentração, atenção, controle de comportamento impulsivo)
por parte de pessoas com ou sem diagnostico de TDAH. Cresce cada vez mais o uso não
prescrito para melhorar o desempenho acadêmico, laboral ou para recreação (BRANT E CARVALHO, 2012; CERQUEIRA et al., 2021; SCHUINDT et al., 2021). A lista de medicamentos mais comuns incluem estimulantes, cujo princípio ativo é o metilfenidato
(como a Ritalina e o Concerta) e anfetaminas (como o Venvanse e o Adderall), além dos
medicamentos não estimulantes cuja base é a atomoxetina (como o Atentah) e guanfacina
(Intuniv).

A prescrição destes medicamentos levanta questões preocupantes relativas ao sobrediagnóstico e medicalização da atenção e do comportamento. Isso é alarmante em
perspectiva geral e especialmente arriscado em populações infantis, cujo processo de desenvolvimento pode ser nocivamente e irremediavelmente influenciado pelo
tratamento farmacológico prolongado (ESPADAS TEJERINA, 2018; MAURILIO et al.,
2023).

A pesquisa de Zhang et al. (2024) também sugere que a prescrição de medicamentos para TDAH deve ser acompanhada de monitoramento cardiovascular consistente. Isso está de acordo com as diretrizes clínicas, que recomendam a avaliação da saúde cardiovascular antes de iniciar o tratamento com medicamentos para TDAH, especialmente em pacientes com fatores de risco para doenças cardiovasculares. Além disso, o monitoramento contínuo da pressão arterial e da frequência cardíaca é recomendado durante o tratamento. Também no Brasil essas orientações estão presentes no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (BRASIL, 2022). Tais recomendações corroboram a pressuposição de potencial risco de doenças cardiovasculares (DCV) associado ao uso prolongado desses medicamentos. Ainda, todas as bulas dos medicamentos para TDAH alertam sobre possíveis reações adversas cardiovasculares.

É preciso notar que, na prática, quem recebe tratamento farmacológico para TDAH não costuma receber acompanhamento cardiológico, tampouco recebe informações transparentes sobre os riscos cardiovasculares associados à terapêutica medicamentosa antes de ser submetido a elas – conforme recomendam as diretrizes. A realidade é semelhante nos tratamentos psicofarmacológicos direcionados a outros diagnósticos psiquiátricos. Ficam evidentes as lacunas no tratamento e na comunicação.

O estudo de Zhang et al. (2024) demonstra a importância de um olhar crítico para a medicalização globalmente presente. A ênfase na farmacoterapia, além de trazer problemas significativos em relação à segurança cardiovascular, ofusca as opções de tratamento não farmacológicas disponíveis para o cuidado da saúde mental, como o suporte psicossocial, mudanças ambientais e relacionais, atenção psicológica, mudanças de estilo de vida, entre outros. Desse modo, os achados do artigo trazem à tona a importância da conscientização sobre os problemas do tratamento medicamentoso e a iatrogenia daí resultante. Pesquisas sobre os efeitos nocivos dos medicamentos psicofármacos são fundamentais para melhor esclarecimento e resolução de problemas de Saúde Pública, tal como o discutido neste texto.

 

REFERÊNCIAS:

AHMAD BANDAY, A.; LOKHANDWALA, M. F. Defective renal dopamine D1 receptor function contributes to hyperinsulinemia-mediated hypertension. Clinical & Experimental Hypertension, 28(8), 695–705, 2006. BRANT, L. C.; CARVALHO, T. R. F.. Metilfenidato: medicamento gadget da contemporaneidade. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v. 16, n. 42, p. 623–636, jul. 2012.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de atenção especializada a saúde. Portaria conjunta no14, de 29 de julho de 2022. Aprova o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade. Brasília, 2022.

ESPADAS TEJERINA, M. et al. Efectos secundarios del metilfenidato en población
infantil y juvenil. Rev Neurol, 66:157, 2018.

HENNISSEN, L., BAKKER, M. J., BANASCHEWSKI, T. et al. Efeitos cardiovasculares de medicamentos estimulantes e não estimulantes para crianças e adolescentes com TDAH: uma revisão sistemática e meta-análise de ensaios de metilfenidato, anfetaminas e atomoxetina. Drogas do SNC 31 , 199–215, 2017.

HOEKSTRA, P. J. Attention-deficit/hyperactivity disorder: Is there a connection with the immune system? European Child & Adolescent Psychiatry, 28(5), 601–602, 2019.

COROMINAS, M. et al. Cortisol responses in children and adults with attention deficit hyperactivity disorder (ADHD): A possible marker of inhibition deficits. ADHD Attention Deficit and Hyperactivity Disorders, 4(2), 63–75, 2012.

LIU, H.; FENG, W.; ZHANG, D. Association of ADHD medications with the risk of cardiovascular diseases: A meta-analysis. European Child and Adolescent Psychiatry, 28(10), 1283–1293, 2019.

ZHANG, L.; YAO, H. et al. Risk of cardiovascular diseases associated with medications used in attention-deficit/hyperactivity disorder: A systematic review and meta-analysis. JAMA Network Open, 5(11), 2022.

ZHANG, L.; LI, L.; ANDELL, P. et al. Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder Medications and Long-Term Risk of Cardiovascular Diseases. JAMA Psychiatry. 81(2):178–187, 2024.

SCHUINDT, A.; MENEZES, VitóriaC..; ABREU, C. R. de C. As consequências do uso da ritalina sem prescrição médica . Revista Coleta Científica , Brasil, Brasília, v. 5, n. 10, p. 28–39, 2021.

MAURILIO, M. M.; CAMARGO, R. W. de .; BITENCOURT, R. M. de. Uso do metilfenidato em crianças e adolescentes com TDAH: uma revisão sobre riscos e benefícios. Revista Neurociências, [S. l.], v. 31, p. 1–20, 2023.

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