Um Cérebro para nos Emancipar

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As perguntas sobre “O que compõe a natureza humana?” ou “Que tipo de seres somos?” foram respondidas ao longo da história por diversas narrativas, as quais determinaram, e determinam ainda hoje, nosso comportamento individual e coletivo, desde a política econômica até como educamos nossos filhos. Estas narrativas sobre nossa natureza são reflexos das diferentes formas de vida, suas culturas e cosmovisões. No caso particular da sociedade moderna, o lugar privilegiado a partir do qual são respondidas essas perguntas é a ciência moderna. Ao interior desta, disciplinas das ciências sociais, humanas e biológicas, disputam para colocar sua narrativa no topo desse lugar de privilégio epistêmico. Nas últimas décadas, surge um novo ator nesta disputa, o cérebro, e a disciplina que o estuda, a neurociência.

Apoiada em novas tecnologias de genética, computação e neuroimagem, a neurociência se apresenta como chave para entender os processos que tornam possível o humano e a humanidade. Produto de sua interação com outras disciplinas científicas, a neurociência apresenta várias abordagens metodológicas e níveis de análise, do molecular ao social e cultural. O cérebro como objeto de estudo, agora aparece como horizonte para responder perguntas sobre a natureza humana dentro do regime de verdade da ciência moderna.

Antes da neurociência, outros paradigmas e disciplinas cientificas foram os que dominaram esta narrativa, influenciando o jeito como nós pensávamos como humanos. O jeito como o conhecimento cientifico intervém na nossa construção como atores sociais e políticos é composta por fragmentos destas narrativas e o contexto aonde estão inseridas. Em palavras do filosofo da ciência Ian Hacking, a ciência teria a capacidade para “criar tipos de seres humanos”, os quais explicam-se a sim mesmos ao interior destas narrativas. O conhecimento sobre o humano determina a subjetividade deste, indo do epistemológico para o ontológico. O que um ser humano pode ou não pode fazer depende do conhecimento sobre as potencialidades que o constroem.

A seguinte pergunta seria: Qual é o papel da neurociência nesta “criação de seres humanos”? Como as teorias neuroquímicas dos transtornos psiquiátricos afetam a subjetividade dos pacientes? A retórica subjetivadora começa pelo ideal de que “nós somos nosso cérebro”, e isto, segundo os pesquisados Francisco Ortega e Fernando Vidal, provocaria em quem incorpora simbolicamente este conhecimento o nascimento de um “eu cerebralizado”.

Por uma parte, o sujeito que incorpora a narrativa neurocientífica também é atravessado por outras narrativas, não necessariamente cientificas, que também aspiram a explicar sua experiência como humano. Por outra parte, os conceitos produzidos pela neurociência têm origens e trajetórias diversas, contribuindo de maneira diferente ao fenômeno da criação de sujeitos. Aqui, colocaremos o foco e situaremos um destes conceitos, o de plasticidade, com o fim de reorientá-lo para um fim emancipatório.

A plasticidade é a capacidade do sistema nervoso para se modificar funcional e estruturalmente em resposta à estímulos. Esta capacidade de adaptação é chave no desenvolvimento, numa lesão, na aprendizagem ou na consolidação da memória. Biologicamente, os mecanismos por trás do conceito de plasticidade seriam a reorganização das sinapses ou conexões neurais, a criação de novos neurônios e processos moleculares de depressão e potenciação sináptica. Este conceito, transversal a toda a neurociência, é o ponto de partida da filosofa francesa Catherine Malabou, no livro “O que devemos fazer com o nosso cérebro?”[1]. Malabou vê na plasticidade a possibilidade de uma dimensão histórica do nosso cérebro. Frente a ideia, já abandonada, de um cérebro geneticamente determinado e rígido a plasticidade oferece a possibilidade de um cérebro com história.

A autora convida-nos a tomar consciência desta historicidade para instrumentalizá-la apoiando-se em sua semântica. Em primeiro lugar, nosso cérebro é plástico porque recebe uma forma (como uma sacola plástica), porém, também tem a capacidade de dar forma (como nas artes ou cirurgia plástica). Por último, a plasticidade também teria a capacidade de aniquilar ou destruir qualquer forma (explosivos plásticos)[2]. Temos um cérebro que não só cria e recebe, como também destrói e desafia qualquer forma ou modelo. Malabou coloca como, no capitalismo, esta potencialidade que a plasticidade invoca é substituída, na pratica, por uma flexibilidade. Enquanto a plasticidade permite uma adaptação e adequação ao meio ao mesmo tempo que nós mesmos transformamos esse meio, o que experimentamos no capitalismo é uma flexibilidade pela qual nos adaptamos a um meio imutável e previamente definido.

Se a ideia de plasticidade é sequestrada pelo capitalismo na sua face mais radical, o neoliberalismo, deveríamos então nos reapropriar dessa categoria e exteriorizá-la para que o nosso cérebro plástico dê forma a uma realidade digna, ao contrário do que acontece no capitalismo, aonde é uma realidade miserável a que dá forma ao nosso cérebro flexível. Malabou demonstra que é possível pegar um conceito neurocientífico e reorientá-lo estrategicamente. Não poderíamos fazer isto com outros conceitos neurocientíficos? Não poderíamos fazer isto com toda a disciplina, chave na compreensão da natureza humana? É possível imaginar outro jeito de entender o nosso cérebro e nossa humanidade a partir de valores como a cooperação, interdependência e solidariedade. Não seria nosso cérebro plástico capaz disso?

A modernidade capitalista, além de relações de poder, cria o tipo de ser humano que acredita que estas relações de poder são naturais e imutáveis. A construção deste ser humano é conduzida pelo conhecimento que ele tem sobre ele mesmo. Para reverter isto, será necessária uma revisão crítica do conhecimento humano que guia nosso ser e estar no mundo. A procura pelo conhecimento universal e objetivo gera um tipo de humano concreto, idealizado e limitado, além do qual são produzidas ausências e injustiças, pois o que não é pensado não existe. A neurociência e a ideia de que “somos o nosso cérebro” também sofrem estas limitações e na sua incapacidade para abranger com a sua teoria todas as formas de vida do planeta, as oculta e margina. Precisamos desvendar as dimensões sociais e políticas do marco conceitual das ciências naturais, algo fundamental para estruturar a luta contra as injustiças cognitivas. Na procura de uma descolonização epistêmica e cognitiva, devemos descolonizar o conhecimento sobre o cérebro que define nossa humanidade, dando lugar a outras formas de conhecer e outras formas de humanidades além do modelo eurocêntrico, moderno e capitalista.

O que é então que devemos fazer com o nosso cérebro? Como podemos criar uma nova forma de entendê-lo que seja libertadora? Precisamos, não só de uma nova ideia do cérebro que nos permita superar as opressões capitalistas, coloniais e patriarcais, como também uma epistemologia que permita construir este novo cérebro. A justiça cognitiva passa pela crítica de como é articulada a relação entre cognição e cérebro. O conhecimento que articula esta relação é moderno e capitalista, portanto, orienta nosso cérebro a aceitar com flexibilidade as relações de poder que nos subjugam. Precisamos de uma neurociência em diálogo com outros saberes e afastada das hierarquias epistêmicas da ciência moderna e seu regime de verdade. Nesta linha, recorremos à proposta do sociólogo Boaventura de Sousa Santos das Epistemologias do Sul, dado que precisamos uma crítica e diálogo desde posições externas a própria ciência moderna. Neste processo, podemos reapropriarmos de forma estratégica de conceitos neurocientíficos, com o fim de reorientá-los e dotá-los de um novo sentido contra hegemônico, tendo cautela para não nos manter presos ao interior do marco categorial moderno. A proposta de Malabou com o conceito de plasticidade poderia ser a primeira de muitas reapropriações contra hegemônicas possíveis que nos ajudem a construir uma nova neurociência e uma nova ideia do cérebro humano que seja emancipatória.

 

[1] O título original é “What should we do with our brains?” e não foi traduzido ao português ainda.

[2] Em francês, as palavras ‘plastiquage’ e ‘plastiquer’ denominam substâncias explosivas formadas por nitroglicerina e nitrocelulose.


Tradução de Thamyres T. Choji: é estudante de doutorado na Universidade de Cádiz (Espanha) e participa do grupo de pesquisa & quot: Intelligent Social Knowledge-Based Systems&quot (IntellSOK). Ela possui uma formação multidisciplinar em engenharia química e ciência da computação, hoje seu foco está centrado em estudar a interseção entre a tecnologia e seu impacto na sociedade utilizando análise de redes e bibliometria. Email: [email protected] / Twitter: @ThamyChoji