Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute as evidências de que as pílulas para psicose aumentam substancialmente a mortalidade.A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui.
Pílulas para psicose aumentam substancialmente a mortalidade
Os psiquiatras apresentaram muitos argumentos sobre a importância do uso de pílulas para a psicose, mas todos eram insustentáveis. Um deles era que os pacientes com esquizofrenia vivem de 15 a 20 anos a menos do que outros cidadãos,[18:288] e entre as causas mencionadas estão o suicídio, acidentes, doenças cardiovasculares, síndrome metabólica, estilo de vida, subtratamento de doenças somáticas e danos causados por drogas.[16:628] O tratamento com pílulas para a psicose não foi mencionado.[17:308]
Um manual observou que a mortalidade aumenta se a psicose aparecer precocemente na vida,[19:239] mas não ocorreu aos autores que quanto mais longa a duração da psicose maior o tratamento com pílulas para a psicose e, portanto, também maior a mortalidade, pois as drogas aumentam a mortalidade.
Dois manuais didáticos levantaram a alegação altamente implausível de que as pílulas para a psicose reduzem a mortalidade nos transtornos psicóticos.[16:222,18:101,18:236] Elas não reduzem; elas aumentam substancialmente a mortalidade.
Não é possível utilizar ensaios controlados por placebo em esquizofrenia para estimar o efeito das pílulas para a psicose na mortalidade, porque o desenho de retirada da droga aumenta a mortalidade no grupo do placebo. A taxa de suicídio nesses ensaios antiéticos era de 2-5 vezes maior do que a norma.[1:269,161] Um em cada 145 pacientes que participaram dos ensaios para risperidona, olanzapina, quetiapina e sertindol morreu, mas nenhuma dessas mortes foi mencionada na literatura científica, e a FDA não exigiu que fossem mencionadas.
Quando decidi descobrir o quão letais são as pílulas para a psicose, concentrei-me em pacientes com demência, assumindo que poucos deles estariam em tratamento antes da randomização. Uma meta-análise de ensaios controlados por placebo com 5.000 pacientes mostrou que, após apenas 10 semanas, 3,5% haviam morrido enquanto recebiam olanzapina, risperidona, quetiapina ou aripiprazol, e 2,3% haviam morrido com o placebo.[162] Assim, para cada 100 pessoas tratadas por 10 semanas, um paciente foi morto com pílula para a psicose. Essa é uma taxa de mortalidade extremamente alta para qualquer droga.
Como metade dos suicídios e outras mortes estão ausentes, em média, nos ensaios clínicos de drogas psiquiátricas publicados,[125] eu verifiquei os dados correspondentes da FDA com base nas mesmas drogas e ensaios. Como esperado, algumas mortes foram omitidas das publicações, e as taxas de mortalidade eram agora de 4,5% versus 2,6%, o que significa que as pílulas para a psicose matam dois pacientes em cem em apenas dez semanas,[163] ou o dobro do que indicam os relatórios dos ensaios publicados.
Também encontrei um estudo finlandês com 70.718 residentes na comunidade recém-diagnosticados com doença de Alzheimer, que relatou que as pílulas para a psicose matam 4-5 pessoas a mais a cada cem por ano em comparação com pacientes não tratados.[164] Se os pacientes recebessem mais de uma droga, o risco de morte aumentava em 57%. Como este não foi um ensaio randomizado, os resultados não são totalmente confiáveis, mas são plausíveis, visto os dados dos ensaios randomizados. Assim, as drogas podem matar quatro vezes mais pacientes do que os relatórios publicados indicam, ou até mais, se estendermos o período de observação para além de um ano.
Um manual didático observou que as pílulas para a psicose podem aumentar a mortalidade em pacientes com doença de Alzheimer.[18:49] Isso é uma diminuição do problema. Essas drogas não apenas podem aumentar a mortalidade, elas aumentam a mortalidade e em grande medida, algo sobre o qual o manual didático nada disse.
Esse fenômeno é observado em todos os lugares, em manuais didáticos, artigos científicos, em sites, em palestras e em entrevistas na mídia. Há uma enorme assimetria na forma como os psiquiatras descrevem os benefícios e os danos. Raramente há ressalvas quando os benefícios das drogas são comentados, e seus efeitos são muito exagerados, o que exemplificarei ao longo deste livro.
Outro manual didático foi ainda pior. Observou que meta-análises em grandes conjuntos de dados de pacientes sugeriam uma pequena mortalidade excessiva em pacientes com demência tratados com pílulas para a psicose em comparação com o placebo, mas que era incerto o que causava essa mortalidade excessiva.[17:243]
Isso beira a fraude. Não houve referência, mas as meta-análises não apenas sugeriram, mas comprovaram a mortalidade excessiva; não foi pequena, mas enorme; e a FDA explicou o que a causa: a maioria das mortes em pacientes dementes foi por causas cardiovasculares (por exemplo, insuficiência cardíaca, morte súbita) ou infecciosas (por exemplo, pneumonia).[163]
A pergunta importante então é: Podemos extrapolar esses resultados para jovens com esquizofrenia?
Não temos outra escolha. Na assistência à saúde baseada em evidências, fundamentamos nossas decisões na melhor evidência disponível. Isso significa a evidência mais confiável, que são os dados apresentados logo acima, duas mortes por cem pessoas tratadas por dez semanas. Assim, na ausência de outras evidências confiáveis, precisaremos assumir que as pílulas para a psicose também são altamente letais para jovens.
Jovens que fazem uso de pílulas para a psicose também frequentemente morrem de causas cardiovasculares e subitamente,[8:40] e esperaríamos que alguns deles morressem de pneumonia. Pílulas para a psicose e internação compulsória em uma ala fechada tornam as pessoas inativas, e quando ficam deitadas em suas camas, o risco de pneumonia e embolia pulmonar de uma trombose venosa aumenta, o que pode passar despercebido antes que seja tarde demais. Pílulas para a psicose também matam pacientes devido a ganhos de peso enormes, hipertensão e diabetes.
Considerando que essas drogas não têm um efeito clinicamente relevante na psicose e que os benzodiazepínicos são muito menos perigosos e parecem funcionar melhor para pacientes agudamente perturbados,[165] a conclusão deve ser que as pílulas para a psicose não devem ser usados para ninguém. Eles deveriam ser retirados do mercado.
Os psiquiatras não culpam suas drogas ou a si mesmos pela vida consideravelmente mais curta dos pacientes com esquizofrenia, mas sim os pacientes. É verdade que os pacientes têm estilos de vida pouco saudáveis e podem abusar de substâncias, especialmente tabaco. Mas também é verdade que parte disso é uma consequência das drogas que recebem e da maneira como são tratados. Alguns pacientes dizem que fumam porque isso contrabalanceia alguns dos danos das pílulas para a psicose, o que está correto, pois o tabaco aumenta a dopamina enquanto as pílulas a diminuem. E quando as pessoas ficam trancadas por semanas ou meses a fio e não têm nada para fazer, é estranho que elas fumem? Ou bebam? Ou comam demais? Ou se matem? Eu não acho.
Quando tentei descobrir por que jovens com esquizofrenia morrem, deparei-me com uma barreira, cuidadosamente guardada pela guilda psiquiátrica. É um dos segredos mais bem guardados que os psiquiatras matam muitos de seus pacientes, também os jovens, com pílulas para a psicose. Descrevi minhas experiências com essa barreira em 2017, ‘A Psiquiatria Ignora um Elefante na Sala,'[166] mas eventos subsequentes foram ainda piores. Este é um resumo de um relato mais abrangente.[8:40]
Estudos de coorte extensos em pessoas com um primeiro episódio psicótico oferecem uma oportunidade única para descobrir por que as pessoas morrem. No entanto, há pouca informação nesses estudos, ou nenhuma informação, sobre as causas da morte. Em 2012, Wenche ten Velden Hegelstad e 16 colegas publicaram dados de acompanhamento de 10 anos para 281 pacientes com um primeiro episódio psicótico (o estudo TIPS). Embora a idade média de entrada no estudo fosse apenas 29 anos, 31 pacientes (12%) morreram em menos de 10 anos.[167] Mas o artigo detalhado dos autores era todo sobre recuperação e pontuações de sintomas. Eles não mostraram nenhum interesse em todas essas mortes.
Escrevi três vezes para Hegelstad, mas não obtive os dados ausentes. Na terceira vez, ela respondeu que seriam publicados em breve, mas o novo artigo não apresentava os dados que eu havia solicitado.[168] Dois meses depois, Robert Whitaker e eu escrevemos ao editor da revista World Psychiatry, o professor Mario Maj, pedindo sua ajuda. Ele também não quis nos ajudar a descobrir por que os jovens morreram tão rapidamente.
Escrevemos novamente, explicando que pessoas com as quais conversei em vários países sobre mortes em jovens com esquizofrenia – psiquiatras, especialistas forenses e pacientes – todos concordaram que precisamos desesperadamente do tipo de informação que pedimos a Maj para garantir que fosse conhecida. Pedimos a ele que fizesse isso como seu dever ético, tanto como editor de revista quanto como médico em vez de nos dizer que não tinha espaço para nossa carta sobre isso em sua revista. Não tivemos mais notícias de Maj.
Ao contrário dos autores do estudo TIPS, a professora de psiquiatria dinamarquesa Merete Nordentoft foi proativa quando perguntei sobre as causas de morte de 33 pacientes após 10 anos de acompanhamento no estudo OPUS, também de pacientes com um primeiro episódio psicótico.[169] Eu mencionei especificamente que suicídios, acidentes e mortes súbitas poderiam estar relacionados as pílulas.
Nordentoft enviou uma lista das mortes e explicou que a razão pela qual as mortes cardíacas não estavam na lista era provavelmente porque os pacientes haviam morrido tão jovens. Mas nos atestados de óbito, ela viu alguns pacientes que haviam morrido subitamente, um deles enquanto estava sentado em uma cadeira, o que chamamos de mortes cardíacas.
É assim que deveria ser. A transparência é necessária se quisermos reduzir as muitas mortes que ocorrem em pacientes jovens de saúde mental, mas muito poucos psiquiatras são tão abertos quanto Nordentoft.
Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.
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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.
Tradução de Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz. Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).