Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 8: Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Sete)

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Texto originalmente publicado no Mad in America , traduzido para o português por Letícia Paladino e revisado por Camila Motta.

Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele continua detalhando a maneira como a indústria farmacêutica e os reguladores de medicamentos escondem o aumento das tentativas de suicídio e mortes devido as pílulas para depressão. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

Em 2014, dez anos após a FDA ter emitido um aviso de alerta máximo sobre as pílulas para depressão, porque a taxa de pensamentos ou comportamentos suicidas era duas vezes maior entre os jovens pacientes que usavam pílulas para depressão do que entre aqueles que tomavam placebo |303,337| um psiquiatra argumentou no New England Journal of Medicine que a FDA deveria considerar remover o aviso completamente. |337|

Seus argumentos eram insustentáveis. Ele achou perturbador que o aviso tenha reduzido o uso de pílulas para depressão também em adultos, “para os quais há evidências sólidas de um efeito positivo da medicação antidepressiva no risco de suicídio.” Como veremos, a verdade é o oposto.

Ele disse que “o risco representado pela depressão não tratada – em termos de morbidade e mortalidade – sempre foi muito maior do que o risco muito pequeno associado ao tratamento antidepressivo. Precisamos educar melhor os médicos, ajudando-os a entender que embora não possam ignorar esse pequeno risco, eles podem gerenciá-lo com segurança monitorando cuidadosamente seus pacientes, especialmente crianças e adolescentes, durante a farmacoterapia.”

É comum para esse periódico, que é tão submissa às empresas farmacêuticas que é apelidada de New England Journal of Medicalisation, publicar tal absurdo. Os danos são muito maiores do que os benefícios, que são invisíveis, e o risco de suicídio não pode ser gerenciado com segurança. Muitas crianças e jovens cometeram suicídio de maneira violenta, por exemplo, enforcamento, enquanto seus pais ou colegas não tinham ideia de que estavam em perigo. |2,7:79|

Mas é assim que os psiquiatras e os reguladores de medicamentos pensam. Em 2007, a FDA humildemente “propôs” aos fabricantes de medicamentos que atualizassem seu aviso de alerta máximo |7,371|:

“Todos os pacientes em tratamento com antidepressivos para qualquer indicação devem ser monitorados adequadamente e observados de perto quanto a piora clínica, suicídio e mudanças incomuns de comportamento, especialmente durante os primeiros meses de um curso de terapia medicamentosa, ou em momentos de alterações de dose, seja aumento ou redução. Os seguintes sintomas, ansiedade, agitação, ataques de pânico, insônia, irritabilidade, hostilidade, agressividade, impulsividade, acatisia (inquietação psicomotora), hipomania e mania, foram relatados em pacientes adultos e pediátricos em tratamento com antidepressivos.”

A FDA também observou que: “As famílias e os cuidadores dos pacientes devem ser aconselhados a observar diariamente a possível manifestação desses sintomas, uma vez que as mudanças podem ser abruptas.”

A FDA finalmente admitiu – após 20 anos de corpo mole – que os ISRS podem causar loucura em todas as idades e que as drogas são muito perigosas; caso contrário, não seria necessário um monitoramento diário. Mas como essa é uma correção falsa, a FDA, em vez de “propor” alterações no rótulo, deveria ter retirado as drogas do mercado.

A FDA também admitiu, pelo menos indiretamente, que as pílulas para depressão aumentam o risco de suicídio também em adultos.

Três anos antes, em 2004, a FDA emitiu um aviso de que as pílulas para depressão podem causar um conjunto de sintomas ativadores ou estimulantes, como agitação, ataques de pânico, insônia e agressividade |353|. Tais efeitos eram esperados, pois a fluoxetina é semelhante à cocaína em seus efeitos sobre a serotonina. No entanto, quando a EMA em 2000 continuou a negar que o uso de ISRS leva à dependência, ela afirmou que o uso dos ISRS “têm sido comprovado na redução do consumo de substâncias aditivas, como cocaína e etanol. A interpretação desse aspecto é difícil.” |372| Isso é difícil apenas para aqueles que são tão cegos que não querem ver.

Foi difícil demonstrar o perigo das pílulas para depressão porque muitos eventos suicidas estão ausentes nos estudos |2,6,7|. Isso foi demonstrado pela própria FDA. Quando a FDA, em 2006, publicou sua meta-análise de 100.000 pacientes que haviam recebido pílulas para depressão ou placebo em ensaios randomizados, após ter perguntado às empresas quantos suicídios haviam ocorrido, a taxa de suicídio com as píluas era de 1 por 10.000 pacientes |7,303|.

Cinco anos antes, Thomas Laughren, que presidiu a grande meta-análise da FDA, publicou sua própria meta-análise das drogas, com base em dados sob posse da FDA, e desta vez a taxa de suicídio no grupo das pílulas era de 10 por 10.000 pacientes, ou seja, 10 vezes mais|373|. Laughren interpretou seus resultados de forma desonesta: “Obviamente, não há sugestão de um risco excessivo de suicídio em pacientes tratados com placebo.” Certamente não, mas houve quatro vezes mais suicídios – não apenas pensamentos suicidas – nas píluas para depressão do que no placebo, o que foi estatisticamente significativo (P = 0,03, meu cálculo).373 Laughren deixou a FDA e estabeleceu a Laughren Psychopharm Consulting para ajudar as empresas farmacêuticas “a atender aos altos padrões da FDA e de outras agências reguladoras.”|7:74| Ele certamente sabe como falar e se comportar como uma empresa farmacêutica.

O que é abundantemente claro – e que foi demonstrado por muitos pesquisadores – é que as empresas deliberadamente ocultaram muitos casos de suicídio e tentativas de suicídio em seus estudos e em seus relatórios aos reguladores de medicamentos.

É difícil compreender discrepâncias dessa magnitude, mas isso pode ser explicado. Quando a FDA pediu às empresas para adjudicarem possíveis eventos adversos relacionados ao suicídio, a agência não verificou se estavam corretos ou se alguns haviam sido deixados de fora. Por que as empresas, que haviam trapaceado vergonhosamente antes sobre eventos suicidas causados por suas drogas, não continuariam trapaceando quando sabiam que a FDA não verificava o que elas relatavam? Se elas não trapaceassem desta vez, seria óbvio demais o quanto elas haviam trapaceado antes.

Outra questão é que a coleta de eventos adversos foi limitada a um dia após interromper o tratamento randomizado, embora interromper um ISRS aumente o risco de suicídio por várias semanas. Como documentei detalhadamente, a enorme meta-análise|303| da FDA subestima drasticamente o risco de suicídio.|6,7| Em ensaios com alguns medicamentos incluídos na análise da FDA, houve mais suicídios do que em toda a análise da FDA de todos os medicamentos. Por exemplo, um memorando da Lilly Germany listou nove suicídios em 6.993 pacientes em fluoxetina nos ensaios.|374| Isso é uma taxa de suicídio 14 vezes maior do que os cinco suicídios no total na análise da FDA de 52.960 pacientes em ISRS.|303|

Muitos suicídios desapareceram e os dados que encontrei foram notavelmente consistentes. Provavelmente houve 15 vezes mais suicídios nas pílulas para depressão do que o relatado pela FDA em sua grande meta-análise.|7:70| Isso é um erro de 1.400%. A fraude foi tão massiva que é difícil de compreender e matou muitos pacientes em todo o mundo. Considero isso um crime contra a humanidade.

Mesmo deixando de fora a maioria dos suicídios e outros eventos suicidas, a FDA encontrou que a paroxetina aumentou significativamente as tentativas de suicídio em adultos com transtornos psiquiátricos, com uma razão de chances de 2,76 (1,16 a 6,60).|303| A GSK limitou sua análise a adultos com depressão, mas também encontrou que a paroxetina aumenta as tentativas de suicídio, com uma razão de chances de 6,7 (1,1 a 149,4).|375| A GSK dos Estados Unidos enviou uma carta “Caro Médico” que destacou que o risco de comportamento suicida também era aumentado acima dos 24 anos.|376|

Alguém acha que a paroxetina é uma exceção e que todas as outras pílulas para depressão não aumentam o risco de suicídio em adultos? Aparentemente, muitos psiquiatras pensam assim, mas isso é irracional.

Em suas submissões às agências de medicamentos, várias empresas obscureceram o risco de suicídio usando anos de paciente como denominador em vez do número de pacientes randomizados. Isso introduziu um viés considerável porque vários dos ensaios tiveram uma fase de acompanhamento onde todos os pacientes poderiam receber o medicamento ativo. Como aqueles que continuam com o medicamento são aqueles que o toleram, os anos de paciente são adicionados “gratuitamente” ao grupo da droga em termos de suicidabilidade.|7:78|

Em 2016, meu grupo de pesquisa descobriu que, em comparação com o placebo, as pílulas para depressão dobram a ocorrência de eventos precursoras definidas pela FDA para suicídio e violência em voluntários adultos saudáveis.|377| Em 2017, demonstramos com métodos semelhantes, baseados em relatórios de estudo clínico não publicados enviados aos reguladores de medicamentos, que a duloxetina aumentou o risco de suicídio e violência em 4-5 vezes em mulheres de meia idade com incontinência urinária por estresse, e que o dobro de mulheres experimentou um evento psicótico principal ou potencial do que aquelas que receberam placebo.|378| Mais tarde, a FDA anunciou que, na fase de extensão de rótulo aberto dos ensaios randomizados em incontinência urinária, a taxa de tentativas de suicídio foi 2,6 vezes maior com a duloxetina do que em outras mulheres de idade semelhante.|379|

Psiquiatras importantes não gostaram de nossos resultados e criticaram nosso uso de eventos precursores, mas isso é um engano. Eventos precursores são usados em toda a medicina, por exemplo, fatores prognósticos para doenças cardíacas. Como fumar e inatividade aumentam o risco de ataques cardíacos, recomendamos às pessoas que parem de fumar e comecem a se exercitar.

Tentativas de suicídio e suicídios não são apenas escondidos durante o ensaio. Na maioria das vezes, eles também são omitidos quando ocorrem logo após o término da fase randomizada.|8:52| Quando a Pfizer em 2009 fez uma meta-análise de seus ensaios com sertralina usados em adultos, eles relataram uma redução pela metade dos eventos suicidas (razão de risco de 0.52).380 Mas quando eles incluíram eventos ocorridos até 30 dias após o término da fase do ensaio, houve um aumento nos eventos de suicidabilidade de cerca de 50% (razão de risco 1.47).

Uma meta-análise de 2005 realizada por pesquisadores independentes usando dados de reguladores de medicamentos do Reino Unido encontrou um aumento de duas vezes em suicídio ou autolesão quando eventos subsequentes foram incluídos.|381| Esses pesquisadores observaram que as empresas subestimaram o risco de suicídio em seus ensaios e também descobriram que a autolesão não fatal e a suicidabilidade foram seriamente subnotificadas em comparação com os suicídios relatados.

Outra meta-análise de 2005 foi realizada por pesquisadores independentes, mas desta vez dos ensaios publicados.|382| Ela encontrou o dobro de tentativas de suicídio com a droga em relação ao placebo, com uma razão de chances (que é aproximadamente igual à razão de risco quando os eventos são raros) de 2,28 (1,14 a 4,55). Os pesquisadores relataram que muitas tentativas de suicídio devem ter sido omitidas. Alguns dos pesquisadores dos ensaios disseram que houve tentativas de suicídio que não relataram, enquanto outros nem sequer as procuraram. Além disso, eventos ocorrendo logo após a interrupção do tratamento ativo não foram contabilizados. Esses pesquisadores descobriram que, para cada 1.000 pacientes tratados por um ano, houve 5,6 tentativas adicionais de suicídio com a droga ativa em comparação com o placebo (em todas as idades). Portanto, ao tratar 179 pacientes por um ano com um ISRS, um paciente adicional tentará suicídio.

A razão pela qual é tão importante incluir eventos suicidas que ocorrem após a fase randomizada é que isso reflete o que acontece na vida real, ao contrário de um ensaio rigidamente controlado onde os investigadores motivam os pacientes a tomar cada dose da droga do ensaio. Na vida real, os pacientes deixam de tomar doses porque esquecem de levar as pílulas para o trabalho, escola ou uma estadia de fim de semana, ou eles fazem uma pausa na droga porque as pílulas impediram que eles tivessem relações sexuais.383

Diferente de ensaio para ensaio, o que acontece quando termina varia. Às vezes, os pacientes são oferecidos tratamento ativo, às vezes apenas os pacientes tratados continuam com o tratamento ativo, e às vezes não há tratamento.

Em 2019, dois pesquisadores reanalisaram os dados da FDA e incluíram danos ocorridos durante o acompanhamento.|384| Psiquiatras proeminentes não gostaram dos resultados e criticaram os pesquisadores, que então publicaram análises adicionais.|385| Como outros pesquisadores, eles descobriram que eventos suicidas foram manipulados, por exemplo, eles removeram dois suicídios que tinham sido erroneamente atribuídos ao grupo do placebo nos dados da paroxetina.|385| Eles relataram o dobro de suicídios nos grupos da droga ativa em comparação com os grupos de placebo, com uma razão de chances de 2,48 (1,13 a 5,44).

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