De acordo com meus documentos e registros, e minha própria memória, a utilização de camisetas como estratégia de diálogo do movimento da reforma psiquiátrica e luta antimanicomial com a sociedade, como forma de provocar a reflexão e colocar em questão o modelo manicomial, a psiquiatria e suas práticas de violência e patologização, começou em 1992. Estávamos na sede do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, na Avenida Churchill 97, em reunião para organização do II Encontro Nacional de Usuários e Familiares, quando a delegação gaúcha, tendo à frente Delvo Oliveira, entrou na sala com enormes sacos plásticos repletos de camisetas com dizeres e imagens sobre a reforma psiquiátrica e a questão antimanicomial. As camisetas foram elaboradas pelo Fórum Regional do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental Por uma sociedade sem Manicômios de Bagé.
Eram muitas camisetas com mensagens diversas!
Dentre elas destacavam-se a “De militonto a militante”.
Assim como a “De perto ninguém é normal”, que se tornou um dos símbolos mais emblemáticos do movimento.
O Fórum gaúcho foi muito importante e ativo, e dentre muitas inovações, foi o primeiro a conseguir a aprovação de uma lei estadual de reforma psiquiátrica (a Lei 9.716, de 07 de agosto de 1992, de autoria do Deputado Marcos Rolim), cerca de 10 anos portanto antes da lei nacional (a Lei 10.216 de 96 de abril de 2001).
A frase “de perto ninguém é normal” foi extraída da música Vaca Profana de Caetano Veloso. A letra faz várias referências à Espanha, inclusive à Picasso, que seria o verdadeiro autor da frase. Em algum lugar do passado eu ouvi ou li isto, que a frase seria de Picasso, mas minha memória, passando da casa dos 60, já não é tão boa! Aproveito para pedir que se alguém tiver esta informação que me ajude a esclarecê-la! O certo é que a frase foi adotada como forma de colocar em questão o conceito de normalidade, pressuposto tão fugaz, impreciso, normativo, impositivo, mas tão fundamental para o saber psiquiátrico, que distingue e classifica as pessoas!
No ano posterior (1993) organizamos uma ala no Bloco Simpatia é Quase Amor, um dos mais famosos e badalados do Rio de Janeiro. A ala, denominada de Maluco Beleza (em referência à música de Raul Seixas) era composta por militantes da luta antimanicomial. O Jornal do Brasil e O Globo deram destaque à nossa ala (a matéria em anexo tem algumas limitações na compreensão mas tem o mérito de registrar o fato). Além da camiseta preparada para a ala, de uma silhueta de rosto cinza com uma rosa vermelha e a frase “Eu vou ficar com certeza maluco beleza”, utilizamos também algumas outras, dentre as quais a “De perto ninguém é normal”.
Um casal de amigos triestinos, que também participou do carnaval que organizei em Trieste no ano anterior (mas esta é uma outra estória…) estava conosco neste carnaval carioca. Eram o Giancarlo Carena e a Claudia Ehrenfreund, e eu os presenteei com uma das camisetas “De perto ninguém é normal”. Meses depois recebi de presente deles, em retribuição, a camiseta em italiano: Da vicino nessuno è normale.
Como a humanidade caminha e o mundo dá voltas, etc etc, ano passado em São Paulo, Maria Grazia Giannichedda, presidente da Fundação Franca e Franco Basaglia, com sede em Roma, nos sensibilizou ao contar que em uma de suas viagens pelo sul da Itália, foi presenteada com uma camiseta com tais dizeres e, em baixo, o nome de Franco Basaglia. Ela disse: – Bem! Franco deve ter dito esta frase em algum momento!”. Na Espanha e Argentina também foram feitas as “de cerca nadie és normal”.
Bem, mas a ganância dos empresários do ramo dos medicamentos e seus intelectuais orgânicos não deixou por menos: passou-se a inverter o sentido da frase para procurar dizer que “se de perto ninguém é normal”, isto significaria dizer que “de perto todo mundo teria algum problema, algum transtorno, alguma doença”!
A Folha de São Paulo de 6 de junho de 2004, noticiando o 2º Encontro Paulista de Psiquiatria da Unifesp, expõe a interpretação de um dos organizadores que considera que “ao dizer a frase de perto ninguém é normal” Caetano Veloso acabou tocando numa coisa interessante, porque a frequência de problemas psiquiátricos e emocionais na população é muito grande (…) Nós fizemos um levantamento na cidade de São Paulo e constatamos que um terço da população ia precisar de algum tipo de atendimento.”! Vejam só! Um terço da cidade de São Paulo é de pessoas que precisam de cuidados psiquiátricos!
Preferimos ficar com a posição de Ernesto Venturini. Ao fazer o prefácio da primeira edição de meu livro “Loucos pela Vida” ele observa que “De perto ninguém é normal; é verdade! Mas, pode-se dizer também que, de perto ninguém é anormal”! No momento atual de radical processo de patologização da vida cotidiana pelo DSM 5, pela indústria farmacêutica, pela psiquiatria da Big Farma é preciso que estejamos atentos resistindo no dia a dia em não considerar que tudo na vida é doença! É preciso que façamos uma reinvenção do significado da experiência humana ao não reduzi-la à patologias…
Vejam “Vaca Profana” com Caetano Veloso assistido por Chico Buarque de Holanda.
Respeito muito minhas lágrimas
Mas ainda mais minha risada
Inscrevo, assim, minhas palavras
Na voz de uma mulher sagrada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada
Ê, ê, ê, ê, ê
Dona das divinas tetas
Derrama o leite bom na minha cara
E o leite mau na cara dos caretas
Segue a movida Madrileña
Também te mata Barcelona
Napoli, Pino, Pi, Paus, Punks
Picassos movem-se por Londres
Bahia, onipresentemente
Rio e belíssimo horizonte
Bahia, onipresentemente
Rio e belíssimo horizonte
Ê, ê, ê, ê, ê,
Vaca de divinas tetas
La leche buena toda en mi garganta
La mala leche para los puretas
Quero que pinte um amor Bethânia
Stevie Wonder, Andaluz
Como o que tive em Tel Aviv
Perto do mar, longe da cruz
Mas em composição cubista
Meu mundo Thelonius Monk’s blues
Mas em composição cubista
Meu mundo Thelonius Monk’s
Ê, ê, ê, ê, ê,
Vaca das divinas tetas
Teu bom só para o oco, minha falta
E o resto inunde as almas dos caretas
Sou tímido e espalhafatoso
Torre traçada por Gaudi
São Paulo é como o mundo todo
No mundo, um grande amor perdi
Caretas de Paris e New York
Sem mágoas, estamos aí
Caretas de Paris e New York
Sem mágoas, estamos aí
Ê, ê, ê, ê, ê,
Dona das divinas tetas
Quero teu leite todo em minha alma
Nada de leite mau para os caretas
Mas eu também sei ser careta
De perto, ninguém é normal
Às vezes, segue em linha reta
A vida, que é ‘meu bem, meu mal’
No mais, as ramblas do planeta
Orchta de chufa, si us plau
No mais, as ramblas do planeta
Orchta de chufa, si us
Ê, ê, ê, ê, ê,
Deusa de assombrosas tetas
Gotas de leite bom na minha cara
Chuva do mesmo bom sobre os caretas
Paulo, Maravilhoso seu texto. Sonho em um dia receber outro destes tão vivo, profundo, crítico e afetivo. Paulo, o Mundo precisa de Homens como vc.
Paulo, querido, não sei se isso é um grupo ou uma lista de transmissão, não sei se outros vão var. Mas se eu pusesse, hoje, gritar bem alto para o mundo (no meu caso, o Universo!) inteiro ouvir, a um minha infinita admiração por você, pelo trabalho de sua vida; eu o faria até perder o fôlego. Mas, graças ao Deus de todos nós, não preciso, porque o Universo já brilha por causa disso. E minha voz é desnecessária! Mas não consegui direito ler a respeito da notícia “evento promove disseminação de conhecimento em psiquiatra, (etc)”, e isso me interessou particularmente. Pode me atualizar sobre isso?, AMEI a ideia, simplesmente, da ” coisa ” ser de dominio Universal!! (Podíamos inclusive substituir a palavra “domínio” por outra mais animal, tipo compartilhamento, ou uso, ou discussão, ou experiência, ou até guarda compartilhada (adoro esta!!)…
Quando vocês vem? Muuuito!! para conversar!! Bjs p Lê e Felipe.
Em tempo: gostei do topete!, “somos todos Amarante”!!!
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