No livro “A luta pelo reconhecimento da loucura. A gramática moral da assistência social na deficiência mental”, publicado este ano pela editora CRV, alcanço a entrever as condições de possibilidade de uma nova reviravolta. Um possível caminho por onde a Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) poderia avançar na resolução de alguns dos seus impasses atuais. Existem elementos subjetivos e objetivos capazes de reclamar a negação da institucionalidade da assistência social da deficiência mental, ou seja, a negação do poder institucionalizante articulado no processo do BPC pela instituição tolerante do INSS.
Para chegar a esta proposição tivemos que efetuar dois passos prévios. O primeiro, foi reconsiderar conceitualmente o ato inaugural – estrutural – da RPB. O fizemos a partir de revisitar a história da loucura, desde Foucault até a atualidade, com as lentes da teoria do reconhecimento de Axel Honneth. Isso nos levou três capítulos e nos permitiu, entre outras coisas, a conceitualização das palavras proferidas por Basaglia no instituto Sedes Sapientiae de São Paulo:
“O descobrimento da psiquiatria democrática foi reconhecer que o doente não é apenas um doente, senão um homem com todas as necessidades (…) e dizer não à miséria e à prática psiquiátrica” (1979).
“Dizer não” foi a atitude inicial. Mediante o dispositivo da reviravolta se tentará manter de forma permanente este ato inaugural. Porém, anos de reforma têm ensinado que esse dispositivo de reviravolta, que pretende levar em seu ventre a permanência do ato, paradoxalmente, não é, não pôde ou não soube ser constante. Esta realidade exige um esforço intelectual que possa captar de forma estrutural a associação dos elementos que compõem o descobrimento da psiquiatria democrática (reconhecimento e dizer não, ou reviravolta). De forma resumida poderia ser formulado assim:
Na base da reviravolta se encontram sentimentos coletivos de injustiça vinculados com o mal-estar que produz a inadequação das consciências/experiências da loucura (médica e social). Esta inadequação se exprime, cada vez, como a promessa incumprida da ciência médica de fazer do louco um ser humano como qualquer outro, ou seja, no mal-estar das tensões implícitas no consenso normativo do sistema científico-institucional. Por isso, se pode dizer que a ação desinstitucionalizadora (reconhecimento e reviravolta) intervém sobre os padrões de reconhecimento do amor, direito e solidariedade que, junto com uma semântica da liberdade, vem questionar e disputar a gestão do mínimo de liberdade e autonomia estabelecido pelo reconhecimento operado pela psiquiatria positiva e manicomial.
Este trabalho de conceitualização, aqui apresentado de forma muito resumida, nos possibilitou avançar sobre outras realidades além de nosso objeto de estudo. Em primeiro lugar, no entendimento de que a luta pelo reconhecimento impulsionada pela RPB cria as condições de autorrealização para muitos sujeitos. Dessa maneia, produz uma ampliação da civilidade que resulta no progresso moral da sociedade Brasileira. Mas também, nos permitiu discutir a normatividade ontológica (racionalidade eurocêntrica) da teoria de reconhecimento, como sendo a responsável por excluir o campo da SM dos referentes empíricos da sua teoria. Dessa maneira, ao contemplar a intersubjetividade própria de nosso campo, nos vimos levados a fazer aportes para a ampliação da normatividade do aspecto motivacional das lutas sociais.
Já o segundo passo, consistiu em explorar o estado atual da inadequação estrutural das consciências/experiências da loucura – as tensões implícitas no consenso normativo do sistema científico-institucional da concessão/negação do BPC em deficiências mentais. Aqui, além de analisar muita literatura, a legislação e o próprio instrumento de avaliação, tentamos compreender as diferentes dimensões dos conflitos mudos entre os participantes e suas respectivas instâncias institucionais: requerentes, CAPS, INSS e Justiça Federal (JF).
Isto nos levou oito capítulos. Os seus títulos oferecem uma ideia desta gramática moral: O sistema é bruto; Fraude, mentira, simulação e dissimulação; o círculo hermenêutico da prostituta das provas; contratransferência afetiva e sem afeto; o instrumento de avaliação no reconhecimento da loucura em SM; A estrutura do corpo, o prognóstico e o longo prazo: um caso de lost in translation?; Nem todo louco recebe benefício: eu estou apta para o trabalho, mas o trabalho não está apto para mim; A sobrevivência como um benefício: o benefício como recurso terapêutico; Sentimentos de injustiça murmurados.
Daqui surgiram os elementos subjetivos e objetivos capazes de fazer-nos afirmar que estão dadas as condições para uma nova reviravolta, para a negação da institucionalidade do BPC, ou seja, o INSS. Esses elementos, captados nos diferentes registros da gramática moral dos conflitos mudos, podem alcançar uma formulação sintética:
A normatividade do INSS funciona como um Outro estranho para o campo da Saúde Mental. A estrutura de reconhecimento da necessidade e do direito do BPC para os sujeitos em sofrimento psíquico se impõe desde fora, sem contemplar as preferências axiológicas e a intersubjetividade próprias do campo da Saúde Mental.
Esta distância da estrutura de reconhecimento da institucionalidade do BPC (INSS) a respeito das preferências axiológicas de nosso campo, foi descrita, no capítulo que nos ocupamos dela, a partir de três noções. A reificação paradoxal: reestabelece o paradoxo constitucional do tratamento moderno da loucura (proteção-exclusão) no nível da relação entre direito e necessidade. O deslocamento das condições de intersubjetividade de reconhecimento: levanta a questão da racionalidade institucional necessária para responder ao novo paradigma de solidariedade nas deficiências. E finalmente, o desenquadre: indica como o conflito na concessão do BPC permite reestabelecer a autoridade do Juiz e do perito psiquiatra – e com elas a tutela. Mas também, destacar o questionamento sobre quem é o ator social mais adequado para instrumentar a avaliação pautada no paradigma psicossocial (CIF).
Uma política desinstitucionalizadora do BPC requer de algumas objetivações: a) O nível de extensão do conflito e dos sentimentos de injustiça não se restringe aos sujeitos de nosso campo (usuários e profissionais dos CAPS), pelo contrário, perpassam todas as categorias profissionais das diferentes institucionalidades que fazem parte do processo; b) Embora exista um consenso positivo sobre o instrumento de avaliação, sua aplicabilidade nas deficiências mentais ainda apresenta peculiares dificuldades; c) O elevado gasto para o cofre público que representa a conflitividade vigente.
Finalmente, sabemos que toda negação da institucionalidade vigente supõe uma invenção capaz de ampliar o reconhecimento das necessidades. Pois bem, nesses sentimentos de injustiça, nessas preferências axiológicas feridas, na ética do cuidado desenvolvida de forma cotidiana nos CAPS, podem se encontrar verdadeiros esboços de futuras institucionalidades que venham a responder melhor às contradições entre direito e necessidade. Verdadeiros bosquejos para a construção de uma nova semântica da liberdade, que possa articular de forma mais adequada autonomia e cuidado, assim com a passagem entre a orientação moral do trato igual, recíproco e simétrico entre os direitos e obrigações; e a bondade (beneficência), da prática afetiva e não recíproca da infinidade do outro concreto.
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Dr. Martín Mezza. Autor do Livro: “A luta pelo reconhecimento da loucura. A gramática moral da assistência social na deficiência mental”.
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