A Luta dos Sobreviventes Psiquiátricos Brasileiros pela Libertação Impedida pelo Modelo Médico

Fernando Freitas: "A experiência brasileira de reforma psiquiátrica é um exemplo dos limites impostos pela psiquiatria pós-asilar".

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O psicólogo brasileiro Fernando F.P. de Freitas, em seu novo artigo publicado no Journal of Critical Psychology, Counselling, and Psychotherapy, descreve como os entendimentos puramente biomédicos de doenças mentais muitas vezes minam os objetivos do movimento de sobrevivência psiquiátrica no Brasil.

Usando a “teoria do reconhecimento” do filósofo alemão Axel Honneth, Freitas argumenta que a resistência dos movimentos brasileiros dos sobreviventes da psiquiatria nunca alcançará a libertação de fato enquanto o modelo biomédico de doença mental mantiver o seu poder hegemônico. Além disso, Freitas destaca que as intervenções psiquiátricas predominantes não estão tratando dos altos níveis de sofrimento mental no país.

“O Brasil é o país com a maior taxa de consumo de antidepressivos do mundo”, escreve Freitas. E, de todos os outros países da América Latina, “o Brasil é o país com o maior nível de transtorno de ansiedade e depressão… Uma pesquisa da Functional Health Tech mostra que o uso de antidepressivos no Brasil aumentou em 23% entre 2014 e 2018. As mulheres na faixa dos 40 anos são as que mais usam essas drogas… Entre as cinco drogas controladas no Brasil, os benzodiazepínicos têm o maior consumo. Em 2018, foram consumidas 56,6 milhões de caixas de tranquilizantes e comprimidos para dormir, o equivalente a 1,4 bilhões de pílulas”.

O Brasil não está sozinho em seu crescimento em prescrição, consumo de psicotrópicos e diagnóstico. Embora as Nações Unidas tenham argumentado que estas taxas podem refletir mais as mudanças políticas do que as médicas, muitos usuários de serviços em todo o mundo, especificamente no Brasil, relatam dependência de medicamentos psiquiátricos. Esta dependência pode desafiar os críticos que entendem que, embora as drogas psiquiátricas possam não melhorar os resultados a longo prazo, elas ainda são desejadas e entendidas como úteis por inúmeros usuários de serviços e partes interessadas em todo o mundo.

Em 2001, o Brasil aprovou uma lei de saúde mental destinada a proteger os “doentes mentais” e os “psicossocialmente incapacitados”. A nova política exige que a internação involuntária em psiquiatria seja relatada ao Ministério Público dentro de 72 horas após a hospitalização. No entanto, Freitas argumenta que a lei, que foi concebida para beneficiar os usuários de serviços brasileiros, pouco tem feito para ajudá-los de fato – e continuará sendo inútil enquanto a lei for fundada no modelo biomédico de doença mental.

“Um estudo mostra que, entre as pessoas encaminhadas à psiquiatria sem medicação prévia, 98% não escapam de uma prescrição psicofarmacológica. Isto implica que, independentemente da condição de entrada, o encaminhamento à psiquiatria provoca sempre a prescrição de medicamentos psiquiátricos”.

Freitas escreve que os altos índices de medicação e a falta de eficácia das leis brasileiras para a saúde mental se opõem diretamente aos princípios de autorrealização e autonomia. Além disso, ele argumenta que a hegemonia do modelo biomédico torna impossível para o usuário do serviço se curar e encontrar a libertação, especialmente quando considerado no âmbito da Teoria do Reconhecimento do filósofo alemão Axel Honneth.

Honneth, a partir da ideia de “reconhecimento mútuo” apresentado por Hegel, argumenta que existem três tipos distintos de reconhecimento necessários para a libertação, autonomia e a autorrealização.

  1. Amor e autoconfiança básica – um reconhecimento que garante apoio emocional e reconhecimento em relações de amizado, parceiros românticos e profissionais, incluindo apoio profissional de saúde.
  2. Relações jurídicas e autorrespeito – um reconhecimento de direitos e relações consensuais.

Freitas cita Honneth:

“…só podemos chegar a nos entender como portadores de direitos quando sabemos quais são as várias obrigações normativas que devemos manter em relação aos outros: só quando tivermos tomado a perspectiva do “outro generalizado”, que nos ensina a reconhecer os outros membros da comunidade como portadores de direitos, poderemos nos entender como pessoas jurídicas, no sentido de que podemos ter certeza de que algumas de nossas reivindicações serão atendidas”.

  1. Solidariedade e autoestima – Isto diz respeito ao reconhecimento entre a comunidade mais ampla e o respeito às características e habilidades específicas de outros.

Freitas vê o modelo biomédico da psiquiatria como um impedimento para cada tipo de reconhecimento: 1. Os profissionais da saúde mental são incapazes de reconhecer os seus pacientes em relações recíprocas. 2. O sistema legal reduz os direitos das pessoas com deficiência psicossocial, e 3. Aqueles com deficiências psicossociais são desvalorizados e mal compreendidos – não deixando espaço para o reconhecimento mútuo e, portanto, para a autorrealização e libertação.

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Freitas, F., (2021). “User and psychiatric survivor movements and their struggles for recognition: The case of Brazil” Journal of Critical Psychology, Counselling, and Psychotherapy, 21(3) 22-32. (Link)

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Samantha Lilly traz a sua formação em filosofia, bioética e justiça social para o seu trabalho como suicidóloga crítica, com a crença de que a suicidologia, no seu melhor, é um trabalho de justiça social. Antes de iniciar um doutoramento em Saúde em Ciências Sociais na Universidade de Edimburgo, Sam recebeu uma bolsa Thomas J. Watson Fellowship. O seu projecto, "Understanding Suicidality Across Cultures", deu-lhe o privilégio de trabalhar ao lado de especialistas em ética, académicos e defensores dos direitos nos países da Benelux, Lituânia, Argentina, Aotearoa, e Indonésia. A investigação actual da Sam dedica-se a trazer metodologias feministas e descoloniais para a prevenção do suicídio.