A Lei dos Homens

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– Doutor, o senhor já foi assaltado?

Foi esta pergunta que ela lhe fez, ainda com a voz embargada, quase afogada pelas lágrimas, enquanto sua internação era admitida, e a gestação em curso constatada. O médico da internação lia sua AIH (autorização de internação hospitalar) cuja hipótese diagnóstica que justificava o pedido era: F 60.3 (impulsividade, agressividade, auto mutilação, instabilidade emocional).

Esta AIH fora preenchida quando, aos berros, ela agrediu a equipe do hospital onde buscou atendimento quando descobriu a gestação. Nesse hospital, recusaram-se a dar encaminhamento ao seu processo de aborto, atropelando, assim, a decisão que ela havia tomado, de interromper aquela gestação.

San Francisco, CA – May 7, 2022: Unidentified Participants holding signs marching in San Francisco at Women’s Rights Protest after SCOTUS leak plan to overturn Roe v Wade.

– Doutor, o senhor já foi assaltado? Tomando fôlego e interrompendo aquelas explicações que mal conseguira decifrar uma só palavra.

O médico parou, olhou para ela, respirou profundamente e respondeu:

– Quem nunca, é o preço que se paga por morar numa cidade como essa e ter condições de comprar coisas boas. Coisa boa é cara e ladrão só quer saber de coisa boa, de gente que trabalha para comprar.

– Alguma vez o senhor sentiu medo? Insistia ela.

Ele, então, estranhou a pergunta, mas contou que recentemente sua mulher havia sido assaltada, com arma na cabeça “Aqueles vagabundos!” fizeram ela de refém durante 12 horas e até hoje ela tem tremedeira e crises de ansiedade ao sair de casa, não consegue mais passar pela rua onde tudo aconteceu e, para falar a verdade, pouco estava saindo de casa. O carro foi encontrado no dia seguinte, agora está na casa da mãe dela, porque ela não suportava olhar para ele de novo. Dizia que ao entrar no carro era capaz de sentir o cheiro daquele homem, misturado com sua própria urina que ela não pôde conter diante de tantos gritos, armas na cabeça e ameaças a sua vida. A roupa que usava naquele dia, foi toda posta em saco preto direto para o lixo. “Esses vagabundos! Olha, se eu pego um sujeito desse, sei nem o que eu faria! Só eu sei os dias de tensão e sofrimento que temos passado em casa com minha esposa, ainda bem que agora está medicada!”.

Conforme o médico ia contando, ela foi se arrumando na cadeira, as lágrimas já haviam parado de escorrer e ela já conseguia falar sem se sentir sufocada. Quando ele terminou a história, olhou para ela e perguntou:

– Mas porque mesmo estamos falando disso? Bom, vamos ao que interessa: você será mamãe, está pronta para isso? Nós vamos garantir sua integridade para que a gestação ocorra dentro dos conformes. Terá que ter muito juízo agora, cuidar de você e desse pequ…

– Doutor, eu quero tirá-lo! Não quero essa gravidez! Eu não planejei isso, não é justo comigo! – Disse ela de um grito e forte tapa na mesa, interrompendo o médico que insistia em ignorar o seu pedido inicial.

Ele fechou o semblante de imediato e disse que ela precisava dos documentos para isso, que ele não seria conivente com esse crime. Explicou que poderia até pedir um dinheiro do governo para custear a vida da criança e a encaminhou para a assistência social.

– O que adianta dinheiro se terei que conviver com o fruto da violência todos os dias da minha vida? Se terei que olhar para essa criança que não pediu para nascer e lembrar daquele dia, daquele homem, de sua voz, seu cheiro e toda a sua sujeira?! Por que tenho que ser “A louca” aqui? Enquanto o Sr e sua esposa sequer conseguem olhar para um mero carro na garagem, por causa de um assalto… Por acaso seria loucura minha o fato de eu não ser capaz de gerar, parir, criar uma criança e ainda amar algo que me fará lembrar e reviver aquele dia? O que eu só quero é esquecer! Seria eu louca por ter sido vítima de uma vi-o-lên-cia, doutor! Ficarei presa nisso, diariamente vivenciando essa violência que rasgou meu corpo. O senhor precisava ver como eu estava quando cheguei ao hospital geral, dilacerada física e psiquicamente, minhas pernas mal podiam ficar fechadas e o sangue escorria…

Com a voz vacilante o médico sussurrou:

– Mas é uma vida!

– E a MINHA VIDA? – Gritou ela aos prantos e trêmula: – O senhor seria capaz de criar e amar o homem que assaltou sua esposa? Ela seria? Porque eu devo ser obrigada, condenada a conviver diariamente com essa representação da violência que sofri? E ainda mais presa aqui…

O médico balançava a cabeça em sinal de negativa e franzia a testa, explicitamente irritado com aquela conversa e ela, como uma metralhadora, continuava a questioná-lo:

– O senhor sabe o que isso vai custar da minha vida? Não vou poder continuar minha faculdade, não terei condições de conseguir um emprego melhor, com salário melhor e que me dê condições de vida melhores. E a minha vida, doutor, como fica? E a minha vida?

Caiu no choro! Enquanto o médico preenchia um calhamaço de papéis entre prontuário, receitas e encaminhamento, alguém a consolava: dizia que há males que vem para o bem, que Deus escreve certo por linhas tortas, que uma vida é sempre sagrada, por isso ela ficaria ali, internada, para garantir a dignidade e integridade daquela vida que carregava no ventre e que, quando saíssem, ainda teria a bolsa de ajuda e que ninguém ali poderia ir contra a lei divina…

O médico, entregando os papéis, levanta-se da cadeira e  completa:

– E nem a lei dos homens… além disso, você receberá um auxílio, não é muita coisa, mas é bem… bem vindo. Ou entregue a criança para adoção!

Ela ficou ali, atônita, enojada, enjoada… gerando uma repulsa, martelando os velhos ditados em sua mente, sentido a Lei dos Homens marcada em seu corpo e no seu espírito a certeza de que há bens que vem para males.

2 COMENTÁRIOS

  1. Ninguém tem o direito de violentar ninguém. Assim como o sujeito que violentou a mulher não tem esse direito, e deve ser punido por isso, ela também não tem o direito de assassinar um bebê inocente, que não tem culpa alguma de estar ali naquelas condições nem de ter nascido de um estupro ou ato de violência. Quem tem que pagar pelo crime foi quem violentou a mulher e não o seu filho, pagar com sua vida, por um crime que não cometeu.
    Ademais, no entanto, não acho que essa postagem tenha nada a ver com psiquiatria…

    • Em uma sociedade machista como a nossa, achar que violência sexual contra mulheres não tem nada a ver com a saúde mental das mulheres é mesmo naturalizar a violência. Ademais, a história da psiquiatria é repleta de relatos de mulheres que foram internadas em manicômios após serem engravidasse por estupro.