Por que a Filosofia é Importante?

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jmoncrieff-150x150Este é o primeiro de uma série de blogs em que apresentarei uma análise filosófica do sistema moderno de saúde mental e com o que ele está envolvido.

O filósofo do século 20, Ludwig Wittgenstein, cujos últimos trabalhos dizem respeito ao nosso pensamento sobre a “mente”, sugeriu que o papel da filosofia é identificar e esclarecer confusões conceituais. Muitas dessas confusões foram introduzidas pelos filósofos, fazendo perguntas erradas no modo errado. Wittgenstein esperava mostrar que, ao se compreender melhor a natureza da linguagem, muitos dos dilemas mais complexos da filosofia simplesmente se dissolveriam.

Essa ideia de arrumar nossa linguagem pode soar como uma atividade bastante modesta, de pouca importância prática, própria a apenas filósofos que foram seduzidos por usos confusos da linguagem e desviados em debates infrutíferos. O que não procede na prática. Essas confusões conceituais têm permeado o pensamento do cotidiano. Influenciam nosso comportamento como indivíduos e estruturam as instituições sociais que construímos. Em nenhum lugar isso é mais impactante do que no sistema, do que hoje em dia chamamos de  sistema de ‘saúde mental’.

Thomas Szasz é, naturalmente, a pessoa mais conhecida por chamar a atenção para a confusão conceitual incorporada no termo “doença mental” [1]. Para Szasz, doenças e enfermidades são conceitos que estão inextricavelmente ligados ao corpo, daí que mente – que não é corporal –  não possa ser ‘doente’ [2]. Situações que são referidas como ‘doença mental’ são definidas por certos comportamentos problemáticos e não pela disfunção biológica característica de uma doença enquanto tal. Szasz também entendeu que a confusão inerente ao conceito de ‘doença mental’ não surgiu simplesmente porque as pessoas estavam equivocadas, é o que ele chamou de “estratégico”. Designar certos problemas como ‘doença mental’ justifica particulares arranjos sociais e isso se passa porque os termos ‘enfermidade’ e ‘doença’ derivam seu significado por ser uma condição do corpo.

Em blogs posteriores voltarei à questão crucial de se uma doença é ou não necessariamente uma característica corporal, mas agora eu apenas quero ilustrar o quão importante é essa questão. Sistemas sociais inteiros dependem do pressuposto de que o que chamamos de ‘doença mental’ ou ‘transtorno mental’ (um termo que pega carona no primeiro) se origina no corpo. Em particular, essa noção é fundamental para a atual resposta social a certas formas de comportamento e para os processos de alocação de recursos para assistência ou bem-estar.

Nas sociedades modernas, o uso da força por alguns indivíduos contra outros é considerado inaceitável e é ilegal. O Estado reserva-se o direito de usar a força em algumas situações, mas apenas contra aqueles que quebraram o código de conduta nacionalmente acordado – a lei. No entanto, se pensa que o pensamento e o comportamento de alguém são o resultado de um processo biológico aberrante que ocorre no corpo ou no cérebro, um processo que não tem nada a ver com a personalidade ou o self do indivíduo (que é o que eu argumentarei enquanto a compreensão usual do termo ‘doença’), então o indivíduo perde logicamente o direito de ser considerado como um ser de atuação autônoma. O que a pessoa faz e diz nessas circunstâncias pode legitimamente ser desconsiderado. Os esforços para mudar seu comportamento, que podem envolver o uso da força, podem ser concebidos como um ‘tratamento’ médico que não se destina ao indivíduo per si, mas à doença subjacente.

Pense no contraste entre as ordens para tratamento comunitário compulsório ou o compromisso para tratamento ambulatorial para pessoas com diagnóstico de transtornos mentais e o uso de agentes supressores de libido para infratores sexuais (às vezes designados por castração química). Embora essas drogas possam ser impostas aos condenados como parte da sentença em algumas partes do mundo, na maior parte da Europa os delinquentes sexuais devem dar o seu consentimento, e no Reino Unido uma segunda opinião também é necessária para que os medicamentos sejam administrados por injeção. Sob leis de comprometimento ambulatorial, alguém que tenha um diagnóstico de transtorno mental, mas que nunca tenha feito mal a alguém, pode ter seu corpo alterado quimicamente contra a vontade dela durante o resto da vida, apesar de ter a capacidade de tomar uma decisão por ela mesma e de forma perfeitamente racional. Isso não é imposto como uma punição por mau comportamento (pelo menos não explicitamente) e não seria aceitável na sociedade ocidental moderna sem a suposição implícita de que ter um ‘transtorno mental’ equivale a ter uma doença corporal. Isso permite que os desejos expressos do indivíduo sejam desconsiderados, uma vez que ela não é mais vista como um agente autônomo, mas como um objeto que é conduzido pelo processo biológico que ocorre em seu cérebro.

A ideia de que o transtorno mental é uma doença também é a base dos sistemas de bem-estar modernos e crucialmente importante para a aplicação da ética de trabalho moderna. As características do ‘papel doente’, descrito por Talcott Parsons, derivam da natureza das doenças como processos biológicos. As pessoas que têm uma doença têm isenções de expectativas sociais normais e direitos para cuidar e apoiar, devido ao reconhecimento de que os eventos biológicos não são (geralmente) sob o controle humano. [3]

A sociedade moderna não tem outra maneira de dispensar as pessoas de suas obrigações sociais. Embora reconheçamos que numerosos eventos da vida comum (quebra de relacionamento, perda de emprego) podem tornar difícil para as pessoas lidar com seus deveres diários, apenas um certificado médico que verifique que alguém está “doente” (o “bilhete de doença”) as autoriza para ficar livre de ter que trabalhar ou a ter assistência financeira sem a obrigação de buscar trabalho.

Não estou pretendendo dizer nada novo aqui. Szasz fez essas considerações há décadas. Não obstante, há uma tendência dentro dos círculos de saúde mental para camuflar ou evitar o problema. Os defensores do modelo “biopsicossocial” parecem sugerir que os transtornos mentais podem ser simultaneamente um processo biologicamente orientado e uma condição comportamental. Outros afirmam que os mecanismos mentais e os processos biológicos são a mesma coisa e, portanto, que se pode ter um transtorno mental ou estar doente da mesma maneira.[5] Embora o termo “transtorno mental” pareça evitar críticas ao conceito de doença mental, na realidade serve ao mesmo propósito e, portanto, “pega carona” no conceito de doença mental.

Eu simplesmente quero enfatizar que os aspectos fundamentais da sociedade ocidental dependem da equação de certos problemas sociais com enfermidades ou doenças corporais. Sem isso, os conceitos de doença mental ou transtorno mental não podem funcionar como ocorre atualmente. Eles não poderiam formar a base dos sistemas sociais que atualmente sustentam.

O que doença ou enfermidade são precisamente pensadas para ser, e se esses conceitos deveriam, ou não, incluir os problemas que chamamos de ‘doença mental’, tem consequências extremamente significativas. Acontece que esclarecer as confusões conceituais pode ter um impacto profundo na sociedade moderna.

No próximo blog desta série, vou analisar a filosofia de Wittgenstein com mais detalhes e como isso se relaciona com nossa compreensão da ‘mente’ ou do ‘mental’.

Notas de pé de página:

  1. Szasz, T. (1961) The Myth of Mental Illness: Foundations of a Theory of Personal Conduct.New York: Harper.
  2. Szasz, T. (2000). Mental disorders are not diseases. USA Today, January issue.
  3. Parsons, T. (1951). The Social System. London: Routledge and Keegan Paul.
  4.  Szasz, T. (1989). Law, Liberty and Psychiatry: an inquiry into the social uses of mental health. Syracuse, New York: Syracuse University Press.
  5. Eu estou me referindo aqui, entre outros, a Jerome Wakfield’s ‘harmful dysfunction’ hypothesis of mental disorder: Wakefield, J.C. (1992) Disorder as harmful dysfunction: a conceptual critique of DSM-III-R’s definition of mental disorder. Psychological Review, 99, 242-247.