Como Deveríamos Pensar os Estados Mentais? A contribuição de Wittgenstein

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O segundo de uma série de blogs que apresentam uma análise filosófica do moderno sistema de saúde mental e o que está em causa nele.

Wittgenstein-211x300Existem duas abordagens amplas para o ‘mental que as ideias de Wittgenstein desafiam.  Uma delas é que todos os nossos sentimentos, pensamentos e comportamentos são causados por, ou são ‘epifenômenos’ de, um estado ou processo específico do cérebro. Isso às vezes é referido como “fisicalismo” (o ‘epifenomenalismo’ sendo uma variante do fisicalismo). Para esta visão – aquela em que a neurociência está baseada – os estados cerebrais que estão por trás das sensações e comportamentos são o que é primário e importante. Assim como para entender com precisão o comportamento da água necessitamos conhecer a sua estrutura molecular, para entender o comportamento humano precisamos identificar os estados cerebrais que o produzem.

A segunda abordagem para a compreensão da experiência humana é a ‘psicológica’. Com isso quero dizer a ideia de que os eventos e comportamentos mentais podem ser estudados e teorizados por seu próprio direito, sem referência nem ao cérebro nem ao indivíduo que os possui. De acordo com esta visão, os estados mentais têm características independentes que podem ser categorizadas, comparadas e manipuladas experimentalmente, assim como as coisas materiais no mundo, como minerais ou plantas.

Embora Wittgenstein não tenha negado que tenhamos experiências pessoais, por exemplo dor ou tristeza ou culpa, algumas das quais nos referimos como estados mentais ou psicológicos, o que ele ressaltou é que entendemos essas experiências pelo modo como as expressamos. Nós nos expressamos através de palavras, gestos e ações, que por sua vez derivam seu significado pela maneira como são usados em um contexto público e social.

Philosophical-Investigations-194x300Em Investigações Filosóficas, Wittgenstein dá o exemplo da dor. Embora a dor seja uma experiência pessoal ou subjetiva, expressamos dor através de respostas bem reconhecidas, que são automáticas ou involuntárias (recuando do estímulo doloroso, chorando) e voluntárias (implorando a alguém para parar de fazer o que for que está provocando a dor). Esses comportamentos e enunciados são reconhecidos como manifestações de dor por outras pessoas quando ocorrem em circunstâncias particulares (como alguém que caiu ou feriu o dedo). Se alguém está gritando, mas nenhum estímulo doloroso é aparente, podemos duvidar se seu comportamento é uma manifestação de dor, mesmo que afirme que o é.

Pense em uma criança pequena que aprende que expressar dor vai trazer amor e atenção de um adulto! O que está em questão é que são as manifestações públicas da dor e seu contexto particular que constituem nossa compreensão imediata e comum da dor, não a experiência ‘interna’ ou pessoal dela e nem o que for que aconteça na área dolorosa ou no cérebro ou no sistema nervoso. O significado da dor é como usamos a palavra na linguagem do cotidiano.[1]

No entanto, nós podemos investigar a base neural da dor e os processos corporais locais que a produzem. Esta é uma atividade perfeitamente legítima, mas não revela o significado da dor. Ela revela a base corporal da dor, mas não a forma como entendemos o fenômeno da dor na vida cotidiana.

O filósofo wittgensteiniano Peter Hacker descreveu como as emoções e os estados de espírito também são entendidos através de expressões públicas específicas, que constituem o critério de atribuir um estado emocional a alguém[2]. Algumas emoções são demonstradas por uma reação imediata, como um sorriso ou uma expressão de surpresa, e algumas, como tristeza, pesar ou ansiedade, por padrões de comportamento mais duradouros. Implícito na maior parte da linguagem da emoção é a ideia de que o sentimento é uma reação a alguém ou a alguma coisa. O amor, o ódio e a ira muitas vezes têm como objeto outro ser vivo. Surpresa e prazer são geralmente reações imediatas a eventos próximos. Tristeza, medo, culpa, vergonha e felicidade são reações menos imediatas, mas também normalmente entendidas como respostas a algo que aconteceu, está acontecendo ou pode acontecer com alguém. Parte do contexto da linguagem emocional é o objeto ou os eventos para os quais a emoção é dirigida.

Reconhecemos tristeza quando alguém nos diz que está triste, quando alguém parece triste e se comporta de maneira triste, e geralmente isso envolve explicar o que os deixou tristes. Essas coisas são necessárias para se entender e aceitar que alguém está triste. Se alguém diz que está triste, mas tem um grande sorriso no rosto, e continua a rir e a agir de forma alegre e animada, não entendemos porque alega que está triste. Da mesma forma, se alguém diz que está triste, mas não pode explicar o porquê, nós não necessariamente o desacreditamos, mas provavelmente acharemos a sua afirmação mais difícil de se aceitar do que se ele nos dissesse que está triste porque seu gato foi atropelado.

Como Rom Harré (outro filósofo muito influenciado por Wittgenstein) apontou, as emoções são diferentes das respostas fisiológicas, como dor ou fome, que são principalmente experimentadas no corpo. As emoções podem estar associadas a sensações corporais particulares, mas não são redutíveis a essas sensações [3]. Portanto, ao contrário da dor, não é claro que as emoções possuam correlatos físicos específicos. Na verdade, as evidências sugerem que não. Vários tipos diferentes de emoção; medo, ansiedade, raiva e euforia, por exemplo, estão associados ao estado fisiológico de excitação que está associado à liberação de substâncias químicas como a adrenalina e a noradrenalina (às vezes referida como a resposta “luta ou voo“). Este estado fisiológico e suas características bioquímicas, portanto, não são específicas de uma emoção particular, mas sim atravessam vários tipos de resposta emocional.

Mesmo que encontrássemos um estado específico do cérebro que se correlacionasse perfeitamente com a experiência do medo, e outro que estaria presente sempre que alguém sente alegria ou piedade, os estados cerebrais não são o que entendemos como emoção na vida cotidiana. Não são cérebros que sentem medo, piedade e alegria, são pessoas. As emoções são atributos das pessoas que vivem e atuam dentro de um mundo social ou público.

Então, o que isso significa para o estudo do domínio “mental”, incluindo as situações que chamamos de ‘transtornos mentais’? Isso significa que as entendemos através das expressões públicas pelas quais se manifestam. É assim como se refere a nossa linguagem de estados mentais e emoções. Refere-se às ações voluntárias e involuntárias, publicamente disponíveis, de pessoas vivas inteiras que estão ativamente envolvidas no mundo social e material.

Que se tome a depressão por exemplo, ou a tristeza prolongada ou a melancolia ou o desânimo (o termo depressão tornou-se tão fortemente associado hoje em dia com a abordagem psiquiátrica, que às vezes é melhor usar outras palavras para esclarecer o que queremos dizer quando pensamos sobre esse tipo de estado emocional) . Existem vários padrões de comportamento que podemos associar a essa emoção tão amplamente concebida. Alguém pode ir para a cama e deixar de lado as suas atividades cotidianas. Alguém pode estar chorando muito e exibindo sinais óbvios de angústia. Alguém pode se preocupar com uma visão negativa e pessimista do mundo. Geralmente, o uso de tais termos implica em uma mudança: que alguém anteriormente agia normalmente e então passou a agir de forma deprimida.

O ponto importante é que o tipo de comportamentos que associamos à depressão não são sinais ou sintomas de uma doença cerebral subjacente ou constructo mental. Quando nos referimos a alguém como “deprimido”, mesmo quando fazemos isso como psiquiatras conforme à estrutura de sistemas de diagnóstico, como o Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM), não estamos identificando a natureza real de seu sistema nervoso ou como está construído o seu mental. Estamos nos referindo aos tipos de comportamentos[4] que as pessoas estão exibindo, e como normalmente os interpretamos. A depressão é apenas os comportamentos que entendemos como expressão de depressão.

O etnometodólogo Jeff Coulter tem escrito sobre as características da expressão de psicose ou loucura. Coulter explica que a loucura é atribuída quando alguém age de uma forma que não é facilmente compreensível e quebra as regras não escritas de conduta social, como comportar-se imprevisivelmente ou não realizar tarefas esperadas. Seguindo Wittgenstein, Coulter enfatiza que a loucura, como outros estados mentais, é reconhecida e atribuída pela comunidade em resposta a padrões públicos de comportamento e não é algo oculto que só pode ser detectado pelos especialistas [5].

Portanto, o ponto importante que Wittgenstein faz é que os estados mentais, incluindo distúrbios mentais, como depressão ou psicose, não são apenas eventos primários ou privados – sejam eles considerados eventos cerebrais ou eventos em uma mente abstrata. Reconhecemos e identificamos essas situações através do tipo de comportamentos e reações que as pessoas exibem publicamente e do contexto em que elas ocorrem. Nem os cérebros nem as mentes estão deprimidos, ansiosos ou psicóticos – as pessoas reais estão, em situações sociais reais!

Estudar transtornos mentais como se fossem condições de mentes individuais ou cérebros, portanto, é perder o que de fato elas são. Precisamos compreendê-las a nível social, como problemas que aparecem em grupos ou contextos sociais. No entanto, nossos atuais serviços de saúde mental são configurados para ajustar cérebros ou mentes individuais, como se isso pudesse resolver o problema. Mas o problema reside na interação do comportamento de uma pessoa com seu ambiente social, que inclui as expectativas sociais de como as pessoas devem se comportar.

Isso sugere que às vezes pode ser o ambiente que precisa ser corrigido e não o indivíduo. Tomemos como exemplo o chamado “Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade”. Muitas pessoas vêm apontando que, em vez de ajustar o comportamento das crianças individuais através de produtos químicos modificadores do cérebro, devemos elaborar um sistema de educação que acomode uma gama mais ampla de trajetórias de desenvolvimento; um sistema que seja mais capaz de lidar com crianças que necessitem de mais atividade física e estimulação do que a criança média da sua idade.[6]

Outros ‘transtornos mentais’ também atuam como barômetros que revelam os atritos e as tensões de nossas instituições sociais. Se reconhecermos isso, poderemos imaginar outras formas de organizar a sociedade que possam tornar os ‘transtornos mentais’ menos prevalentes ou menos problemáticos.

Referências Bibliográficas Citadas:

[1] Wittgenstein, L. (2014). Investigações Filosóficas. Petrópolis: Editora Vozes.

[2] O filósofo de Oxford, Peter Hacker, aplicou a análise de Wittgenstein ao domínio das emoções: Hacker, P.M.S. (2004) The conceptual framework for the investigation of the emotions. International Review of Psychiatry, 16, 199-208.

[3]  Harré, R. Editor, (1986) The Social Construction of Emotions, New York: Blackwell.

[4]  Behaviorismo, também conhecido entre nós por ‘comportamentalismo’, é a escola que alinha o comportamento humano com comportamento animal instintivo ou reflexos neurológicos, trouxe confusão ao uso do termo ‘comportamento’, de modo que alguns escritores agora o evitam, escolhendo termos como “funcionamento”. Eu escolhi ficar com ‘comportamento’ em seu sentido comum, isto é, como indicando atividade humana auto-iniciada e dirigida.

[5]  Coulter, J. (1979) The Social Construction of Mind: studies in ethnomethodology and linguistic philosophy. Totowa, NJ: Rowman & Littlefield.

[6] Esse argumento é feito por vários autores, neste livro : Timimi, S. & Leo, J. Editors (2009) Rethinking ADHD: from brain to culture. Basingstoke: Palgrave, assim como por vários outros incluindo as contribuições em Mad in Brasil.