Questionando os pressupostos filosóficos da pesquisa em neurosciência

Os mal-entendidos filosóficos estão por detrás do fracasso da neurosciência em fornecer pesquisas clínicas úteis?

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Peter SimonsEm um artigo recente, o pesquisador de psiquiatria Diogo Telles-Correia argumenta que os pressupostos filosóficos não examinados por detrás da pesquisa em neurociência influenciam a maneira como os estudos são projetados e interpretados. Telles-Correia, do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Lisboa, argumenta que essas posições metafísicas não questionadas estão no centro do fracasso da neurociência em fornecer pesquisas clínicas úteis. Ele sugere que os pesquisadores investiguem ativamente a filosofia da ciência com a qual operam e que questionem suas suposições sobre a questão mente-cérebro.

Photo Credit: Max Pixel

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Publicado no Journal of Evaluation na Clinical Practice, o artigo enfoca inicialmente a lacuna “mente-cérebro”. Telles-Correia escreve que a maioria das pesquisas em neurociência contém a suposição implícita de que a mente é sinônimo de cérebro e que a mente é governada completamente por fenômenos físicos já descobertos. No entanto, ele escreve:

“Não existe um método científico que comprove que a mente pode ser reduzida ao cérebro e que as leis que governam a mente são as mesmas que governam o sistema nervoso. ”

O reducionismo é a crença de que qualquer estado mental ou emocional pode ser simplificado por seus correlatos biológicos. Segundo Telles-Correia, “o reducionismo não é uma atitude científica, mas metafísica”. Segundo Telles-Correia, embora o reducionismo seja às vezes não abertamente declarado como sendo a posição dos pesquisadores neurocientistas, ele está frequentemente implicado no desenho da pesquisa assim como na forma como os resultados são interpretados.

Por exemplo, os pesquisadores tendem a projetar um teste sem questionar se o teste realmente representa a experiência interna que está sendo estudada. O resultado é que se interpreta qualquer atividade cerebral detectável como estando  ‘relacionada’ ao teste em questão e, finalmente, se conclui que essa atividade cerebral causa ou é causada pela experiência interna.

No entanto, essas suposições não levam em conta o significado do teste, nem tampouco a experiência interna real e a questão de saber se alguma atividade cerebral associada é causal de um estado mental. Telles-Correia ressalta que nenhuma dessas questões subjacentes pode ser investigada usando a metodologia atual da neurociência. Para exemplificar ele apresenta pesquisas em neurociência sobre trauma.

“Embora um evento traumático na infância possa ter uma tradução no nível da biologia do cérebro, isso não significa que é através das neurociências que esses eventos traumáticos podem ser melhor descritos e explorados”.

Telles-Correia prossegue comentando os achados dos ‘correlatos neurobiológicos’ dos transtornos psiquiátricos. “Distúrbios psiquiátricos são ‘construções sociais”, ele escreve, “não tipos naturais que existem independentemente de qualquer esforço humano. A avaliação do que é ou não ‘patológico’ na psiquiatria está relacionada a 1) se o estado mental / comportamento é compreensível, dado o contexto sociocultural do paciente, 2) adaptabilidade (adaptativo ou não-adaptativo ao contexto) do paciente), e 3) conexão com o sofrimento e a incapacidade (se causam ou não aflição ou incapacidade) ”.

Ele também observa que “não foi possível demonstrar a presença de fronteiras naturais entre doença mental e normalidade”. Isto é, as linhas que separam uma “doença” diagnosticada e os chamados estados mentais ‘normais’ são vagas, exigindo julgamento feito por uma entidade externa (como um psiquiatra ou pesquisador de neurociência). Portanto, ele sugere que não é possível encontrar os correlatos neurobiológicos dos transtornos psíquicos diagnosticados em comparação com a neurobiologia dos chamados controles ‘saudáveis’.

Outra questão surge em pesquisas que tentam descobrir os correlatos neurais de um transtorno psiquiátrico particular. Diagnósticos psiquiátricos são categorias amplas e indivíduos com o mesmo diagnóstico podem ter estados mentais muito diferentes. Por exemplo, alguém com o diagnóstico de depressão pode dormir muito ou pouco ou pode comer demais ou comer em excesso. Nestes casos, alguém diagnosticado com depressão pode ter os sintomas opostos de outra pessoa diagnosticada com depressão.

Telles-Correia argumenta que estudos futuros precisam incluir especialistas de vários campos, não apenas especialistas em neuropsiquiatria. Ele sugere que especialistas em filosofia da ciência passem a ser considerados como um apoio necessário para equipes de neurociência e de pesquisa psiquiátrica.

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Telles-Correia, D. (2018). The mind-brain gap and the neuroscience-psychiatry gap. Journal of Evaluation in Clinical Practice. doi: 10.1111/jep.12891 (Link)

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Peter Simons MIA-UMB News Team: Peter Simons tem formação em ciências humanas onde estudou inglês, filosofia e arte. Agora está em seu doutorado em Psicologia de Aconselhamento, sua pesquisa recente tem se concentrado em conflitos de interesse na literatura de pesquisa psicofarmacêutica, o uso de medicamentos antipsicóticos no tratamento da depressão, e as implicações filosóficas e sociopolíticas gerais da taxonomia psiquiátrica no diagnóstico e tratamento.