Em defesa da depressão saudável

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EnricoUm recente relatório da Blue Cross Blue Shield documentou um aumento de 33% nos diagnósticos de depressão nos Estados Unidos de 2013 a 2016. Concluiu-se que os índices de depressão estão um pouco abaixo dos da pressão alta, uma condição que é da maior importância por afetar adversamente a saúde em geral.

Podemos atribuir o aumento dos diagnósticos de depressão ao incentivo que médicos da atenção primária rastreiem a depressão. Os médicos não-psiquiatras não apenas estão se tornando verdadeiros rastreadores da depressão, mas estão passando a ser os profissionais de saúde mental da linha de frente. Estima-se que cerca de 80% dos antidepressivos sejam prescritos por médicos não psiquiatras.

À medida que mais e mais médicos veem o tratamento da depressão como algo que está sob a sua alçada, em combinação com a nova ênfase na integração dos cuidados de saúde entre médicos e demais profissionais de saúde, é provável que a tendência ascendente nos diagnósticos de depressão persista. Ela persistirá porque quanto mais a depressão for avaliada e tratada por meio de uma lente médica maior a probabilidade de que estados normais e saudáveis de depressão sejam patologizados e agrupados indiscriminadamente com a verdadeira depressão clínica.

É imperativo distinguir entre a depressão clínica real e a ‘depressão saudável’, como sendo respostas adaptáveis e esperadas a eventos de vida angustiantes que sinalizam a necessidade para a pessoa de repensar a sua vida e de calibrar diferentemente as suas percepções e emoções.

Na depressão clínica, há um pensamento pessimista arraigado; distúrbios no sono e no apetite; letargia; dificuldades de concentração; culpa patológica sobre transgressões reais e imaginárias; isolamento; desesperança desoladora; e um humor desanimado. A pessoa clinicamente deprimida pode ser assombrada por ideias suicidas. Acabar com a vida pode parecer a única solução para livrar-se da dor psíquica, do sentimento de desespero e futilidade e das autoimagens odiosas que acredita serem características permanentes da vida.

Na depressão saudável: há menos a sensação de um sentido geral do eu como deficiente ou defeituoso do que a pessoa que imaginamos ser e que é tão valorizada passar agora a ser menos imaginável. Há uma diminuição de si mesmo, em vez de uma fragilidade de si mesmo. O início da depressão nos indica que, de alguma forma, precisamos enquadrar nossas autoconfianças com os nossos atributos, talentos e conquistas reais. O bem-estar emocional exige que formemos estimativas de nossos atributos, talentos e conquistas que sejam mais precisos e estáveis. Se percorrermos a vida subestimando ou superestimando quem somos, potencialmente nos prepararemos para um sofrimento perpétuo. A depressão transitória pode nos indicar que é loucura continuar procurando parceiros mais atraentes do que é ser realista, por exemplo, ou buscar cargos que estão fora de nosso alcance, ou deixar de aceitar limitações funcionais provocadas por doenças crônicas. Podemos resistir emocionalmente e ficar com raiva e irritados: por que não podemos ter tudo isso. A vida é injusta! Mas, mais cedo ou mais tarde, a irritabilidade e a raiva precisam ser suplantadas pela aceitação amorosa de quem realmente nos tornamos, e ok.

Tipicamente, a depressão saudável é caracterizada por perdas identificáveis e tristeza acessível. Pode ser a perda de um relacionamento romântico, uma posição de emprego valorizada ou uma capacidade atlética devido à doença. Se a tristeza normal é confundida com depressão clínica e é medicada, são perdidas as oportunidades para se lamentar uma perda, processá-la emocionalmente e aprender sobre si mesmo, possivelmente em psicoterapia.

Para as pessoas clinicamente deprimidas, o isolamento muitas vezes serve ao propósito de escapar de uma vida que é insuportável e percebida para sempre sendo assim. A pessoa tem pouca energia para ser social conforme maneiras básicas – corresponder a um sorriso ou responder a um aceno. Atenção e concentração estão comprometidas. Isso porque a pessoa está tão preocupada com suas próprias falhas e sentimentos que tem pouca energia mental em reserva para se concentrar em outras coisas.

No entanto, a necessidade de isolar-se pode ser uma aspiração saudável em alguém com depressão transitória. A atenção dada aos outros e a compromissos externos pode desviar o foco e a energia para a atenção para o eu que é produzida por uma percepção emocional que é apenas adquirida com solidão. Estar sozinho nos ajuda a pensar e fazer um balanço das velhas ideias sobre nós mesmos e nossas vidas. Permite a introspecção que traz autopercepções do valor pessoal e da atratividade alinhando-as com as novas circunstâncias da vida. Isso nos permite tempo e espaço para chegar a uma consciência mais completa das novas regras com as quais o jogo da vida deve ser jogado. Podemos chamar a isso de ‘solidão produtiva’.

Isso envolve um sentimento incômodo vindo lá de dentro de que não estamos vivendo de acordo com o nosso potencial, sem levar a efeito os dons e talentos que possuímos. É a voz dentro da nossa cabeça que está a nos dizer que estamos perdendo a nossa vida, se tornando complacentes demais e deixando a barra muito baixa. Atender ao chamado da culpa existencial nos mantém honestos quanto a seguir nossos ideais internos e realizar nossas capacidades.

‘Culpa má’ é culpa patológica, que é encontrada em pessoas clinicamente deprimidas. Isso envolve um sentimento global de que tudo é ruim. É como se a pessoa tivesse uma consciência hiperativa, onde está preocupada em ter feito algo errado ou estar prestes a fazer algo errado. A parte trágica é que, na realidade, a pessoa é decente e bem-intencionada.

Às vezes, a depressão é realmente apatia. Resulta do fato de uma pessoa ter sacrificado sua autonomia, vivendo passivamente uma existência roteirizada e, sem sucesso, tentando ignorar a percepção de que as convenções sociais ou religiosas que deveriam dar significado perderam toda a relevância. A disforia sentida em torno disso, se ouvida, é o ímpeto emocional para renovar os compromissos de vida de alguém, de acordo com novas crenças e valores emergentes.

Da mesma forma, a depressão pode nos alertar de que estamos presos, deixando de agir com base em fontes de satisfação pessoal e realização que não podem mais ser negadas; ou, a depressão pode ser o resultado de permanecer em relacionamentos estagnados com os efeitos estagnados sendo finalmente sentidos.

Relampejos de ideação suicida nem sempre devem ser abordadas com alarme e ação protetora. Para algumas pessoas, confessar pensamentos suicidas é o mesmo que comunicar que a vida que estão vivendo se tornou inabitável e precisa ser repensada e re-abordada. Pode haver mais esperança do que desesperança, porque o desespero que se sente é processado como um chamado à ação, um doloroso lembrete de que algumas mudanças essenciais na vida precisam urgentemente ser feitas.

Agora, mais do que nunca, com a crescente medicalização da depressão, precisamos separar a depressão saudável como sendo uma resposta humana relativamente normal à perda; um sistema inato de sinalização que nos estimula a recalibrar pensativa e emocionalmente quem somos, quem nos tornamos e quem precisamos ser; e uma indicação de que a solidão produtiva pode ser necessária para um período de introspecção pessoal, e que a tristeza, a culpa e o remorso, se reconhecidos e processados, fornecerão alívio e aceitação.