O artigo publicado recentemente na revista Saúde em Debate, A importância de Hans Prinzhorn para a reforma psiquiátrica no Brasil, de Fernando Freitas e Paulo Amarante, traz uma importante discussão para o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira: a autonomia do campo artístico-cultural frente ao campo psiquiátrico propriamente dito. Para tal, os autores exploram o papel pioneiro de Hans Prinzhorn.
A arte dos usuários dos serviços psiquiátricos sempre foi, e ainda é, muito caro ao processo da Reforma Psiquiátrica, mas os autores se perguntam se a Reforma está criando novas condições na relação entre a arte e os artistas-usuários. A hipótese trabalhada é que o reconhecimento da autonomia do campo ‘artístico -cultural’, vem se destacando com relação ao campo ‘psiquiátrico’. A ideia do artigo é retomar a obra do psiquiatra alemão, e crítico de arte, Hans Prinzhorn (1886-1933) e se debruçar sobre o que se pode aprender com a sua perspectiva.
Hans Prinzhorn se distanciou da visão psiquiátrica das obras dos pacientes. Ele questionou o valor ‘sintomático’ das características do material estudado, abandonando toda a classificação nosológica em proveito de uma ordem de apresentação das obras segundo critérios estéticos. As obras do acervo da Clínica de Heidelberg foram organizadas por Prinzhorn e vieram de várias partes da Europa. Elas foram submetidas a uma catalogação exaustiva, seguindo um enfoque formal e de conteúdo estético, incluindo a apresentação de dez ‘pacientes-artistas’, a partir da riqueza das suas obras.
As obras reunidas por Prinzhorn no começo do século passado são sob diversos aspectos impressionantes e perturbadoras. O termo genérico empregado pelo doutor Prinzhorn para a sua obra – Expressões da Loucura – indica em sua época a dificuldade, senão a impossibilidade mesmo, de designar cada artista individualmente, mas também a obrigação que nos é feita de reconhecer a multiplicidade dos modos de abordar as obras e seus criadores. Infelizmente ainda não contamos com a obra de Prinhzorn em sua versão para o português.
O artigo de Freitas e Amarante nos dá acesso a vários dos principais pressupostos estéticos propostos por Prinzhorn em seu livro. Chama-nos a atenção dois paradoxos enfrentados por quem entra em contato com o que Prinzhorn nos apresenta. O primeiro é o nosso modo de olhar que está sempre em busca de nomear, na medida em que as obras dos chamados ‘artistas loucos’ nos faz tomar consciência da diversidade dos modos de expressão, e que não conhece classificações, mas que no entanto nos obriga a reconhecer a riqueza individual de cada artista, seja ele quem for! O segundo paradoxo é que temos que constatar que há pouco da ‘falta de jeito’ e de ‘ingenuidade’ nessas obras, mas o mais frequente é uma grande qualificação técnica aliada a uma precisão do pensamento.
“A ideia dominante até então da ‘esterilidade’ da loucura foi contradita com as evidências apresentadas por Prinzhorn. As esculturas, as aquarelas e os desenhos dos chamados insanos chocavam o público da época. Havia muita coisa em comum entre Van Gogh, as obras do acervo da Clínica de Heidelberg ,os já consagrados Kandisky e Klee, as telas cubistas de Picasso e de Braque, e os quadros de fauvistas como Matisse, sem falar de Cézanne, e assim por diante.”
Dois pioneiros brasileiros no modo de se relacionar com a chamada arte dos loucos, não foram esquecidos pelo artigo, eles são Osório César (1895-1979) e Nise da Silveira (1905-1999). Ambos sofreram influência de Prinzhorn, mas há diferenças importantes entre os dois brasileiros e o alemão. Os autores consideraram importante destacar duas diferenças: enquanto Prinzhorn não subordinava a criação estética aos imperativos da clínica, Osório César e Nise da Silveira tinham essa preocupação – a arte sendo um meio terapêutico. Quer dizer, tanto Osório César quanto Nise da Silveira buscaram subordinar a riqueza plástica das obras às suas teses psicológicas. Por outro lado, Prinzhorn buscou encontrar o Outro, enquanto distinto do Mesmo, via a estética. As obras dos chamados artistas ‘loucos’ eram uma demonstração estética do Outro, do radicalmente Outro, a desafiar as concepções tradicionais do pensamento ocidental centradas no ontológico, no Ser, no Ego, no Mesmo.
Como conclusão o artigo aponta que as três décadas de Reforma Psiquiátrica vem possibilitando o reconhecimento da autonomia do campo artístico-cultural com relação ao campo psiquiátrico. Dessa forma, ao trazer para o conhecimento do público brasileiro a obra de Hans Prinzhorn, e em particular seus pressupostos da natureza estética, os autores pretendem contribuir para o aprofundamento e a radicalização da dimensão cultural do processo da reforma psiquiátrica e, dessa forma, podemos considerar, também, a virtualidade de uma maior autonomia dos próprios artistas com relação aos seus diagnósticos, profissionais de saúde; e mesmo com relação ao campo discursivo da reforma psiquiátrica.
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