Medicalização da Vida e TDAH

Narrativas de mães de crianças diagnosticadas com TDAH em uma comunidade virtual do facebook

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CAMILAO diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) tem atingido cada vez mais a população infanto-juvenil em diversos continentes, sendo a principal opção de tratamento o uso de metilfenidato (Ritalina).

Nesse contexto, a pesquisadora Fernanda Martinhago, pós-graduanda da Universidade Federal de Santa Catarina, lançou recentemente o artigo TDAH e Ritalina: neuronarrativas em uma comunidade virtual da Rede Social Facebook, publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva. O artigo surge como resultado de uma pesquisa realizada por Martinhago, cujo objetivo, é compreender como os conteúdos das redes sociais influenciam os familiares, membros dessas comunidades virtuais, em seu entendimento sobre o TDAH e seu tratamento, bem como lidam com seus filhos que apresentam suspeita ou que já receberam tal diagnóstico. A pesquisa no campo virtual ocorreu no período de maio de 2015 a setembro de 2016.

A metodologia utilizada foi a etnografia virtual, desenvolvida na perspectiva da Antropologia Médica. A etnografia é um método da Antropologia, seu intuito segundo Polivanov (2013 ) [1], é a criação de descrições de práticas sociais de indivíduos ou redes de indivíduos (coletividades), com o propósito de entender diferentes aspectos de uma cultura. Já a Antropologia médica é uma perspectiva que considera a saúde e o que se relaciona a ela (conhecimento de risco, ideias sobre prevenção, ideias de tratamentos adequados, etc.) como fenômenos culturalmente construídos e culturalmente interpretados. (Uchôa &Vidal, 1994) [2].

O Artigo aponta para um discurso neurocientífico e biomédico presente em nossa cultura e nos meios de comunicação, que privilegiam explicações sobre disfunções cerebrais do sofrimento humano, sem levar em consideração as dimensões sociais que atravessam estas aflições, fenômeno conhecido como medicalização da vida. Neste contexto, demarcado pela ‘cerebralidade’, surge uma epidemia de transtornos mentais. A autora faz referência ao jornalista Robert Whitaker, que através de seu estudo investigativo, demonstrou uma verdadeira epidemia de transtornos mentais. 

“Por exemplo, nos Estados Unidos, em 1955, uma em cada 468 pessoas sofria de algum transtorno mental. Em 1987, uma em cada 184 pessoas estava diagnosticada com um transtorno mental. Em 2007, o número passou a ser um diagnosticado para cada 76 estadonidenses.”

Mas não acaba por aí, Martinhago ressalta que essa epidemia se expandiu a tal ponto, que crianças e adolescentes também começaram a fazer parte destas estatísticas, isto se devendo às últimas versões do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). O diagnóstico mais comum dado à crianças e adolescentes é o de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). O diagnóstico desse transtorno é clínico, já que não existem exames laboratoriais que comprovem a patologia. Assim sendo, a possibilidade de qualquer pessoa receber facilmente este diagnóstico, e como consequência, uma prescrição para tratamento medicamentoso, é muito grande.

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O que Martinhago percebe através desta pesquisa é que apesar do medicamento controlado causar angústia aos pais, cientes dos malefícios causados pela medicação – dependência física ou psíquica -, eles irão preferir o tratamento medicamentoso aos riscos citados pelo DSM – 5 do não tratamento do TDAH, dentre eles o posterior desenvolvimento de transtornos por uso de substâncias. Dessa forma, a adesão do tratamento medicamentoso pelas mães é reforçada por outras mães da comunidade virtual.

Diversas mães também queixaram –se das reações adversas da Ritalina, mas mesmo assim os demais membros apoiam a insistência com o uso do medicamento.

“Não fique lendo bula de remédio, faz a gente surtar. ”  (LES)

 “Faça o tratamento, é melhor vc se arrepender de ter tentado do que pagar o preço pra ver o resultado na adolescência. ” (CPJ)

“Minha filha tem TDAH e transtorno de humor, ela toma Ritalina, 4 comprimidos de 10mg, toma Risperidona e toma Lítio, mas continua muito ansiosa, não consegue aprender nada na escola, ela tem 10 anos. ” (CPJ)

 Dessa forma, a autora observou que a comunidade virtual interage para que os pais aceitem a medicação, superando suas angustias relativas à mesma. Parecem acreditar que somente com o uso da medicação seus filhos conseguirão ter êxito na escola, bem como a crença de que a medicina e os medicamentos são meios de intervenção divina. Mas o fato é que a Ritalina causa efeitos adversos, e alguns depoimentos e relatos de mães são verdadeiros pedidos de socorro para o estado crítico de saúde de seus filhos, originados pelos medicamentos. É possível notar como a medicalização da vida, a tutela da infância e adolescência, juntamente com o controle dos corpos, fenômenos percebidos através desta pesquisa, podem causar graves consequências às crianças e aos adolescentes diagnosticados com TDAH e seus familiares.

Martinhago conclui que há um grande descaso com relação às consequências que estes medicamentos podem causar nas crianças, tanto por parte dos familiares como dos profissionais. Parece que há uma dificuldade dos pais lidarem com seus filhos, dessa forma recorrem aos diversos profissionais e técnicas para dar conta de uma função que, não faz muito tempo, era exercida naturalmente pelas famílias. Existe uma hiper patologiação dos percalços e dificuldades da vida.

Leia o artigo na íntegra → MARTINHAGO, Fernanda. TDAH e Ritalina: neuronarrativas em uma comunidade virtual da Rede Social Facebook. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro ,  v. 23, n. 10, p. 3327-3336,  out.  2018 .

[1] POLIVANOV, Beatriz. Etnografia virtual, netnografia ou apenas etnografia? Implicações dos conceitos. Esferas, Ano 2, n. 3, jul- dez. 2013.

[2] UCHOA, Elizabeth; VIDAL, Jean Michel. Antropologia médica: elementos conceituais e metodológicos para uma abordagem da saúde e da doença. Cad. Saúde Pública,  Rio de Janeiro ,  v. 10, n. 4, p. 497-504,  Dec.  1994.