A sobrevivência da reforma psiquiátrica

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Nunca é demais lembrar que a proposta da Reforma Psiquiátrica, entre nós, parte de (1) uma decisão no campo dos Direitos Humanos para enfrentar o “tratamento” manicomial; (2) de uma proposta inclusiva da loucura pela sociedade; e de (3) construir serviços substitutivos ao manicômio para que ela acontecesse. Qualquer ferimento a estes princípios pode ser mortal a sua continuidade. Portanto, não há como melhorar o manicômio; o tratamento em liberdade e na comunidade é necessário; e, um serviço substitutivo não aceita a existência do hospital especializado. Essa é sua radicalidade.

Nunca é demais lembrar que falhamos na firmeza dessa radicalidade. Primeiro, aceitamos alguns serviços comunitários não como substitutivos, mas alternativos ao manicômio. No Rio é fácil verificar a convivência das CAPS com os antigos manicômios federais que deveriam ser substituídos. Segundo, a função gestora local ao terceirizar mão-de-obra pelas Organizações Sociais (OSs) quebrou a espinha dorsal da formação de servidores comprometidos com a reforma (pela precariedade do vínculo e/ou pela rotatividade). Além do que ao entregar a gestão dos serviços para as OSs privatizou-se o que seria necessariamente público e isso tem  implicações na proposta. Desconfigura os serviços que necessariamente são públicos.

Nunca é demais lembrar a discordância de alguns médicos – formados nas certezas da neurobiologia americana – com a proposta da Reforma. São os que nunca aceitaram a reforma DA psiquiatria, mas uma reforma NA psiquiatria, nos seus métodos. E a tentativa de subordinar saberes transdisciplinares necessários à proposta reformista tenta anular conhecimento de outros campos científicos e saberes que possa substituir conhecimentos médicos. Esse um grande campo de discórdia, que devemos enfrentar para consolidar uma proposta transdisciplinar onde todos os envolvidos têm seu núcleo de saber, mas atuam conjuntamente no campo do conhecimento que envolve os vários núcleos. Na reforma não há hierarquia de conhecimentos, mas complementaridade. O psicanalista tem que poder explicar à equipe o efeito produzido por seus conhecimentos, assim também o médico tem que discutir com a equipe métodos biológicos ou neuroestimulativo que usará. É na discussão do núcleo de saber de cada membro da equipe que deverá ser feita as ações no campo comum do conhecimento.

Nunca é demais lembrar que enquanto lutávamos contra os manicômios permitimos a entrada em cena das Comunidades Terapêuticas ligadas a entidades religiosas e ávidas por financiamentos públicos. O que parecia uma nova parceria era o velho manicômio, disfarçado, sem controle e comandados pela fé. Essa estranha mistura de fé e ciência resultou em torturas e castigos, disfarçados de penitência com sedação química. E hoje essas comunidades religiosas são candidatas a exercer o papel manicomial e o retorno do que queríamos superar.

Nunca é demais lembrar que a constituição de uma fraca rede de atenção psicossocial (a chamada RAPS) tirou o protagonismo dos CAPS de uma “teia” de cobertura psicossocial para a introdução de dispositivos frágeis e permitir a reintrodução de antigos serviços antirreformistas na rede, como ambulatório de especialidades e emergência psiquiátrica.

Nunca é demais lembrar que a tibiez na radicalidade reformista permitiu seu enfraquecimento e os ataques disfarçados atuais que tentam retomar a tal RAPS, sem que os CAPS sejam serviços substitutivos, e reintroduzindo sem desfaçatez o hospital psiquiátrico especializado – precursor inconteste do velho manicômio. Isso faz parecer que não houve uma ruptura, mas o canto da sereia esconde uma contrarreforma e a anulação dos princípios que chamo atenção de não pudermos abrir mão. É isso.

E é muito importante que, agora, no momento de enfrentamento anunciado, que discutamos os nossos equívocos para não sermos capturados numa alteração de nossa prática que inviabilize uma retomada do processo de consolidação permanente da Reforma Psiquiátrica brasileira. Porque ela é uma construção permanente, nunca terminada.

O clareamento dos princípios reformistas ajudará na nossa prática diária – lugar de resistência por excelência – o soerguimento de uma trincheira construída por trabalhadores, usuários, familiares e sociedade. O hospital psiquiátrico especializado é o precursor do manicômio, pois, segundo Basaglia, não é manicômio que deformou o hospital psiquiátrico, mas o saber psiquiátrico que produziu o manicômio. Por isso a reforma DA psiquiatria é necessária e não uma reforma nos métodos da psiquiatria. Tratar em liberdade é terapêutico, por isso a proposta ética de inclusão da loucura na sociedade. Os CAPS são substitutivos da internação hospitalar e devem ser comunitários, nunca apêndices hospitalares.

A favor de nossa prática temos que desaprendemos a trabalhar no modo antigo e nem os usuários aceitam mais voltar ao manicômio. Para isso precisamos esclarecer que não aceitamos o disfarce do hospital para não sermos capturados pelo manicômio no futuro. Muito necessário o trabalho dos profissionais junto à sociedade para que ela não aceite ser seduzida pelo canto da sereia do hospital modernizado. Os CAPS como locus da resistência poderão recuperar o protagonismo que o caracterizou na reforma: espaço comunitário terapêutico com a possibilidade de contraposição à internação hospitalar. Serviço substitutivo.

Portanto, acredito que a sobrevivência da Reforma Psiquiátrica precisa de uma afirmação dos seus princípios, entre nós, para o enfrentamento que apenas se anuncia. E nesse enfrentamento vamos ter que lidar com a asfixia financeira dos serviços pelas instâncias de transferências de recursos que a aprovação da “PEC do fim do mundo” já nos impôs. Se aprovada a PEC de desvinculação das despesas (em saúde, educação, segurança, por exemplo) os estados e municípios estarão dispensados de fornecer os recursos – que hoje são forçados por lei e já insuficientes – o caos pode se instalar ainda pior do que já se encontra hoje em dia.

A nossa luta deverá se aliar à defesa do SUS e da democracia. Sem um e sem outro não existe saúde mental. Portanto a sobrevivência da Reforma Psiquiátrica está atrelada a lutas políticas de hoje.