Por que muitos médicos são autoritários – e prejudiciais

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Durante vários anos, achei ser importante iluminar a natureza autoritária dos profissionais de saúde mental – especialmente aqueles que não se rebelaram de alguma forma contra a ‘socialização’ profissional. Neste artigo, vou resumir uma análise convincente do Journal of Medical Ethics sobre as variáveis ​​da cultura médica contemporânea, uma formação que produz médicos autoritários e nocivos. Primeiro, no entanto, algumas definições e as minhas observações pessoais.

Autoritário é definido como “relacionado a, ou favorecendo a submissão cega à autoridade”. Autoritários com poder exigem obediência inquestionável daqueles com menor patente, e os subordinados aos autoritários cumprem todas as exigências das autoridades.

Em contraste, os anti-autoritários rejeitam – para si e para os outros – uma obediência inquestionável à autoridade, e acreditam ser importante desafiar e resistir à autoridade ilegítima. Em contraste com a obediência inquestionável aos autoritários, os anti-autoritários avaliam se as autoridades realmente sabem do que estão falando e se são competentes, honestas, têm integridade e se preocupam com as pessoas que estão confiando nelas. E quando os antiautoritários se dão conta que uma autoridade é ilegítima, eles (elas) resistem a essa autoridade – não importa se essa autoridade é seu pai, professor ou médico.

Há sempre uma tensão entre autoritários e anti-autoritários, e quando os autoritários têm poder sobre os anti-autoritários, esta tensão resulta em várias formas de violência.

Em fevereiro de 2012, Mad in America publicou “ Por que os anti-autoritários são diagnosticados como doentes mentais ”, com minhas observações pessoais sobre o autoritarismo de profissionais de saúde mental e como isso resulta em danos para seus pacientes. (Este artigo foi republicado em outros sites com títulos como ” Nós teríamos drogado Einstein? Como o anti-autoritarismo é considerado um problema de saúde mental“.) Nenhum outro artigo que eu publiquei resultou em mais e-mails (que eu continuo até hoje a receber), a maioria das pessoas que relatam sentir-se desvalorizadas e acreditam que o seu antiautoritaríssimo – ou o do seu filho(a) – resultou em diagnósticos de doença mental.

Nesse artigo, eu simplesmente relatei minhas observações sobre como a seleção e a socialização dos profissionais de saúde mental geram antiautoritários. Eu notei que ser aprovado na pós-graduação, em uma faculdade de medicina, se tornar um psicólogo ou um psiquiatra, exige muita obediência comportamental e ser atencioso às autoridades, mesmo àquelas autoridades pelas quais não se tem respeito. Salientei que aqueles com escolaridade prolongada viveram por muitos anos em um mundo onde rotineiramente estão em conformidade com as exigências das autoridades, e foi a minha experiência que a maioria dos psicólogos e psiquiatras não é apenas extraordinariamente complacente com as autoridades, mas também inconsciente da magnitude da sua obediência. Concluí que os pacientes não complacentes criam uma enorme ansiedade para os médicos autoritários,

Enquanto pesquisava para o meu livro atual Resistindo à autoridade ilegítima (Resisting Illegitimate Authority) me deparei com um artigo do Journal of Medical Ethics de julho de 2012 intitulado “ Uma longa sombra: médicos nazistas, vulnerabilidade moral e cultura médica contemporânea ” (A Long Shaddow: Nazi Doctors, Moral Vulnerability and Contemporary Medical Culture) de autoria de Alessandra Colaianni. Argumentando como os médicos na Alemanha nazista permitiram atrocidades nazistas, Colaianni deixa claro que a “cultura médica contemporânea” também permite danos. Mencionei brevemente o artigo de Colaianni em Resisting Illegitimate Authority, mas achei que a comunidade do Mad seria um bom lugar para fornecer um resumo mais detalhado da análise feita por ela.

Colaianni começa relatando: “Mais do que 7% de todos os médicos alemães se tornaram membros da SS nazista durante a Segunda Guerra Mundial, em comparação com menos de 1% da população geral. . . . Em 1945, metade de todos os médicos alemães haviam se juntado ao partido nazista.” Colaianni ressalta:“ Médicos se juntaram ao partido nazista e às operações de morte, não com uma arma na mão, não pela força, mas por vontade própria ”(não há um único reportado caso de um médico que tenha sido baleado, encarcerado ou penalizado de alguma forma por se recusar a participar nas operações de genocídio).

No entanto, Colaianni não apenas reitera a história de como o autoritarismo entre os médicos na Alemanha nazista permitiu atrocidades nazistas. Sua contribuição original é uma descrição daquelas variáveis ​​que continuam a existir hoje na ‘cultura médica contemporânea’ e que resultam no autoritarismo e na nocividade dos médicos. A seguir, um resumo dessas variáveis:

Hierarquia e socialização: “A cultura médica é”, conclui Colaianni “de muitas maneiras, uma hierarquia rígida”. A essência do autoritarismo é a obediência inquestionável, e Colaianni aponta: “Aqueles no extremo inferior da hierarquia estão acostumados a fazer o que os superiores pedem, muitas vezes sem entender exatamente o porquê. . . . Questionar os superiores é muitas vezes desconfortável, por medo de consequências negativas (retaliação, perda do respeito do superior) e de estar errado. ”

Ambição de carreira: Colaianni observa: “Tornar-se um médico não requer pouca ambição. . . . O estudante pré-médico típico é impiedosamente competitivo, disposto a fazer qualquer coisa para progredir ”. Ela observa que “existe uma linha tênue entre estar motivado para ter sucesso e estar disposto a comprometer a integridade para alcançar o sucesso”, que, para os psiquiatras em treinamento, mesmo que tenham receio de ‘tratamentos’ prejudiciais, como o eletrochoque (ECT), eles reconhecem que a recusa em administrar ECT pode ameaçar a sua carreira. A triste realidade é que, para muitos médicos, a ambição de carreira – e uma compulsão de agradar a autoridade – superam suas apreensões morais.

A ‘Licença para o Pecado’: Colaianni ressalta: “Médicos e até mesmo estudantes de medicina podem realizar ações que, em outros contextos, são tabus.” Ela relata como, na faculdade de medicina, ela e colegas “dissecaram o cadáver de uma mulher com 98 anos de idade, cortando os músculos com bisturis e cortando os ossos com uma serra. ”Essa licença para pecar ”, conclui ela, pode resultar em arrogância prejudicial.

Infringindo dor: Colaianni observa: “Os médicos devem sentir-se confortáveis ​​infligindo dor transitória e desconforto em seus pacientes em benefício próprio, na forma, por exemplo, de pontos e biópsias.” Sentir-se confortável para infligir dor pode levar a”, Colaianni aponta, “ médicos que não se preocupam o suficiente sobre se estão machucando seus pacientes ”. Isso resulta, por exemplo, na superutilização de procedimentos e tratamentos perigosos e às vezes necessários.

Terminologia e eufemismo médicos: Colaianni observa como a medicina e os pesquisadores científicos usam uma linguagem que os protege das realidades do sofrimento. “Os cientistas usam eufemismos e a voz passiva em artigos de periódicos . . .” escrever “os animais foram sacrificados” no final do experimento é menos chocante do que admitir que “eu matei 20 ratos segurando seus pescoços e puxando suas caudas até que suas espinhas quebrassem”. Eufemismos também fornecem aos médicos autoenganos e decepções para pacientes sobre verdades que, quando claramente estabelecidas, reduzem a autoridade do médico; ela dá esses exemplos: “Usamos rotineiramente as palavras ‘idiopática’ ou ‘criptogênica’ para significar ‘não sabemos’ e ‘iatrogênica’ ou ‘nosocomial’ para significar ‘nós causamos’.”

Desprendimento: Colaianni descobriu que “a profissão médica requer imperturbabilidade diante de coisas que os outros considerariam repugnantes, horríveis ou de outra maneira sufocante”. Ela relata ter sido advertida contra se envolver emocionalmente demais com seus pacientes; e ela foi ensinada a ter “um distanciamento clínico ou preocupação desapegada”, o que significa “demonstrar empatia e carinho, mas não tanto que você se queime emocionalmente ”. Colaianni relata:“ Está bem documentado que os estudantes de medicina se tornam menos empáticos e menos éticos na medida em que avançamos na escola de medicina. ”

Embora existam médicos como Colaianni que têm angústia em relação à sua socialização profissional, muitos não o fazem.

Entre psiquiatras, psicólogos e outros profissionais de saúde mental, há um punhado que arrisca a sua carreira para resistir à autoridade prejudicial, mas a maioria não o faz; e acredito que os pacientes antiautoritários deveriam se preocupar especialmente com psiquiatras e psicólogos autoritários – talvez até mais do que com outros médicos autoritários. Enquanto um cirurgião cardiotorácico autoritário pode ser um idiota abusivo para uma equipe de enfermagem, esse cirurgião ainda pode efetivamente realizar um desvio de artéria necessário para um paciente antiautoritário. Entretanto, psiquiatras e psicólogos autoritários sempre causam danos a seus pacientes antiautoritários, porque o não-consentimento antiautoritário cria ansiedade e muitas vezes até mesmo vergonha para os médicos autoritários, e sua ansiedade e vergonha alimentam diagnósticos e tratamentos prejudiciais.