Psiquiatras reivindicam mais atenção aos danos iatrogênicos

Os psiquiatras argumentam que a prática atual não leva em conta a interação de fatores biológicos, psicossociais e iatrogênicos.

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Um recente editorial em Psicoterapia e Psicossomática chama a atenção para os danos iatrogênicos que os usuários podem experimentar como resultado do tratamento psiquiátrico. Os autores definem a iatrogenia como sendo os efeitos colaterais e os riscos associados à intervenção médica, incluindo erro médico, reações adversas a medicamentos e negligência.

A iatrogênese psiquiátrica normalmente se manifesta como complicações do tratamento com drogas psicotrópicas, como discinesia tardia, resistência à insulina, distúrbios cardíacos / metabólicos e resultado de toxicidade direta, intoxicação, abstinência ou interação medicamentosa.

O editorial observa que, tradicionalmente, a psiquiatria tem sido avaliada apenas em relação à melhoria dos sintomas psiquiátricos, com pouco foco, no entanto, nos impactos psicológicos e comportamentais negativos do tratamento e nos efeitos colaterais considerados inevitáveis. Os autores, Giovanni Fava, psiquiatra e professor da Universidade de Buffalo, e Chiara Rafanelli, psiquiatra e professora da Universidade de Bolonha, escrevem:

“Os atuais sistemas de classificação em psiquiatria não consideram os componentes iatrogênicos da psicopatologia relacionados à toxicidade comportamental. Distúrbios afetivos causados ​​por medicamentos, bem como efeitos paradoxais, manifestações de tolerância (perda de efeito clínico, o caráter refratário), distúrbios de abstinência e pós-abstinência, são cada vez mais comuns devido ao uso disseminado de drogas psicotrópicas na população em geral. Essa negligência é séria, uma vez que as manifestações de toxicidade comportamental dificilmente respondem aos tratamentos psiquiátricos convencionais e podem ser responsáveis ​​pelo amplo espectro de perturbações incluídas na rubrica genérica de resistência ao tratamento.”

Há muito os médicos estão conscientes da necessidade de considerar os efeitos das drogas psicotrópicas nos sintomas do distúrbio que estão tratando. Não obstante, foi apenas a partir dos anos 90 que passou a surgir uma revisão da sintomatologia residual do tratamento com drogas psiquiátricas, perguntando-se como um número limitado de sintomas duradouros em usuários de antidepressivos a longo prazo, insuficientes para o diagnóstico clínico, deveria ser avaliado.

Detre e Jarecki propuseram o conceito de ‘fenômeno da reversão’, em que, à medida que a doença remite, ocorre uma progressiva repetição de sintomas e estágios em ordem inversa sobre como ela se desenvolveu. Desde então, tem sido argumentado que a redução ou a remoção de sintomas residuais pode resultar em melhores resultados a longo prazo, o que favorece o tratamento sequencial.

DiMascio e colegas definiram a ‘toxicidade comportamental’ como sendo a ação de uma droga que, dentro da faixa de utilidade clínica, produz mudanças no humor, percepção, cognição e função psicomotora, limitando assim a capacidade de um indivíduo ou constituindo um risco para seu bem-estar. Eles também introduziram o conceito ‘efeitos paradoxais das drogas’, que são alterações de humor opostas ao resultado clinicamente desejado, bem como são os efeitos pendulares das drogas, que inicialmente seguem na direção pretendida, mas que agem de tal forma que o estado do indivíduo se move para a condição oposta para a qual a droga havia sido prescrita.

Estes conceitos, afirmam os autores , receberam pouca atenção na literatura científica até muito recentemente. Argumentam ainda que a abstinência pode constituir uma forma de ‘toxicidade comportamental’ e que pode variar desde sintomas leves, de recuperação espontânea até sintomas prevalentes e duradouros. A ocorrência de abstinência parece não ser afetada pelo processo de redução da dose e, após a perda do efeito clínico, é improvável que o aumento da dose restaure uma resposta.

Há muito se discute como os medicamentos podem ter impacto na farmacodinâmica muito tempo após a cessação da medicação, embora Baldessarini tenha observado que mudanças a longo prazo podem ocorrer nos níveis da plasticidade do receptor, do disparo neuronal, da síntese do transmissor e do controle genético da função neuronal. O acompanhamento desses conceitos tem sido escasso, e ainda não está claro se as alterações farmacodinâmicas da medicação são reversíveis.

Há ‘a tolerância oposicionista’, que consiste em forças que se desenvolvem quando um mecanismo homeostático, sujeito a perturbação farmacológica prolongada, tentando trazer o sistema de volta ao equilíbrio.  Por conseguinte, o modelo oposicionista de tolerância argumenta que a continuação do tratamento medicamentoso pode levar a processos que se opõem aos efeitos iniciais de um medicamento, o que pode fazer com que a doença se torne mais maligna e não responda ao tratamento. Se o tratamento for interrompido, os processos de oposição não terão mais resistência, o que resulta em novos sintomas de abstinência, sintomas de rebote e resistência ao tratamento.

A definição de comorbidade de Feinstein é ‘qualquer entidade clínica distinta que exista ou que ocorra durante o curso clínico, além da doença em estudo’. A ‘comorbidade iatrogênica’, por sua vez, refere-se a modificações no curso, nas características e respostas ao tratamento em relação à terapia prévia, e pode explicar a resistência a um fármaco anteriormente efetivo, a persistência de efeitos colaterais assim como o surgimento de novos sintomas.

“O conceito mal definido de resistência ao tratamento está baseado na suposição não comprovada de que o tratamento estava certo inicialmente e a incapacidade de responder é inteiramente transferida (e implicitamente responsabilizada) pelas características do paciente”, escrevem os autores.

A ‘iatrogênese em cascata’ é o conceito de que o desenvolvimento de múltiplas complicações médicas pode progredir após um primeiro evento inofensivo, que despertou pouca atenção. Quando os sintomas de toxicidade comportamental são mal interpretados ou ignorados, os eventos em cascata podem levar à deterioração da doença, simplesmente a partir das escolhas do clínico.

À medida que a atual frequência de uso de drogas e que a polifarmácia aumenta, o acesso aos danos dos medicamentos e à polifarmácia torna-se cada vez mais crucial nas avaliações psiquiátricas. As definições atuais do DSM e do CID assumem que exista um paciente livre de drogas, um paciente que é cada vez menos provável que exista de fato, já que a maioria dos casos psiquiátricos na prática clínica envolve algum tratamento medicamentoso. Isso pode resultar em uma falta de ênfase na coleta de informações relacionadas ao tratamento anterior, o que reflete a razão da crescente necessidade de tratamento psiquiátrico.

Um primeiro passo crucial deve ser avaliar a eficácia, bem como a ‘toxicidade comportamental’ dos medicamentos psicotrópicos anteriores. Em seguida, o clínico colocar essa informação no contexto da morbidade psiquiátrica e médica. A taxonomia clínica tradicional não inclui considerações iatrogênicas, na medida que estão relacionadas à ‘toxicidade comportamental’. Os autores advogam, em vez disso, por um modelo de vias concêntricas, em que fatores psicológicos, biológicos, sociais e iatrogênicos formem uma teia concêntrica, todos contribuindo para a condição clínica. A partir daí os autores sugerem a ‘macroanálise’ que assuma as relações funcionais entre áreas problemáticas que irão flutuar durante o curso da sintomatologia.

A incorporação de fatores iatrogênicos, anteriormente ignorados na psiquiatria, exigirá um renascimento da psicopatologia e um exame minucioso dos modelos conceituais atuais. Para fazer isso, os autores fazem vários comentários orientadores.

  • Em primeiro lugar, os autores argumentam que os sintomas de abstinência muitas vezes podem ser mal interpretados como sendo um sinal de recaída, isto é, mal interpretados. Seu diagnóstico, ao contrário, requer a coleta de novos sintomas que não fazem parte da sintomatologia anterior, embora essa questão seja complicada pela coexistência de sintomas de recaída e abstinência.
  • Em segundo lugar, é importante distinguir a não resposta do novo tratamento da tolerância à terapia prévia ou à perda de resposta durante a terapia de manutenção.
  • Terceiro, a identificação de distúrbios afetivos secundários ou sintomáticos pode ter implicações críticas para as síndromes psiquiátricas induzidas por drogas; os autores sugerem considerar essas síndromes relacionadas a drogas até que se prove o contrário – nos casos em que os agentes produzem sintomas psiquiátricos concordantes.
  • Em quarto lugar, os autores argumentam que devemos considerar se é o tratamento antidepressivo ou a depressão o que está na causa dos distúrbios pós-abstinência.
  • Finalmente, como Richardson e Doster sugerem, os autores propõem que sejam considerados: o risco inicial do transtorno sem tratamento, a falta de resposta ao tratamento e a vulnerabilidade a efeitos adversos do tratamento, ao ser tomada uma decisão médica. Isso deve ser adaptado a cada paciente, afastando-se assim da estrita dependência aos critérios diagnósticos convencionais.

“A noção de doença psiquiátrica não está mais de acordo com o espectro de saúde hoje conhecido e com a interação complexa de fatores biológicos, iatrogênicos e psicossociais”, observam os autores.

“A consideração de fatores iatrogênicos desafia a maioria das práticas atuais de prescrição de drogas psicotrópicas. O reconhecimento de fatores iatrogênicos na psicopatologia contraria os principais interesses comerciais e, não surpreendentemente, é censurado em revistas médicas convencionais, nas reuniões científicas e pelas diretrizes oficiais. ”

Finalmente, os autores declaram que o compromisso com a medicina baseada em falsas evidências e o marketing da indústria farmacêutica são atualmente os principais responsáveis ​​pela tomada de decisão dos psiquiatras. Em contrapartida, pedem aos psiquiatras que para entenderem os componentes iatrogênicos da psicopatologia, usem o seu já complexo julgamento clínico bem como as suas habilidades de entrevista.

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Fava, GA, & Rafanelli, C., (2019). Fatores Iatrogênicos em Psicopatologia. Psicoterapia e Psicossomática, 14 , 1-12. doi: 10.1159 / 000500151 (Link)