Ajudar as pessoas a sair da medicação – ruim para os negócios?

A literatura médica é cheia de promessas para o futuro. Ajudar os pacientes agora parece ser menos atraente.

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JAMA, o Jornal da Associação Médica Americana publicou recentemente um artigo de opinião de dois influentes cientistas, Alan Leshner, da Associação Americana para o Avanço da Ciência, e Victor Dzau, da Academia Nacional de Medicina, que defendem o chamado tratamento baseado em medicação para o ‘transtorno de uso de opioides’. O tratamento baseado em medicação envolve o uso de metadona, buprenorfina ou naltrexona de liberação prolongada para ‘aliviar os sintomas de abstinência, reduzir os desejos de opiáceos e diminuir a resposta ao uso futuro de drogas’, cuja causa é o uso de analgésicos opiáceos.

Prescrição de medicamentos para resolver problemas causados por outras drogas

O que Lesnher e Dzau sugerem é usar drogas prescritas para resolver problemas causados por outros medicamentos prescritos. Concordo que, em certos casos, isso pode ser útil ou até mesmo necessário para ajudar os pacientes. Mas luto para entender a omissão de uma solução que, pelo menos para mim, parece a melhor a longo prazo para os pacientes; ou seja, ajudando-os a reduzir com segurança e gradualmente o analgésico à base de opioides dos quais eles se tornaram dependentes.

Essa omissão obscurece um fator importante na crise dos opioides e que tem sido deliberadamente explorada pelas empresas farmacêuticas. As drogas são fáceis de serem obtidas, prescritas e tomadas, mas é muito difícil, às vezes quase impossível, parar de tomá-las.

A Food and Drug Administration (FDA) dos EUA reconheceu esse problema. Em 9 de abril, a Agência emitiu o seguinte comunicado de segurança:

“A FDA identifica os danos relatados pela interrupção repentina de medicamentos para a dor como são os opiáceos e requer alterações no rótulo para orientar os prescritores a como proceder para a sua gradual e individualizada diminuição”.

Eu apoio integralmente essa afirmação, mas também vejo um grande problema prático. Como os médicos devem seguir a orientação dada pela agência reguladora ? Usando apenas medicação padrão, essa abordagem cautelosa simplesmente não é possível. Muitos pacientes que tentaram fazer isso já sofreram desnecessariamente. Isso não pode continuar a ocorrer. Não vou aqui falar de suas histórias, mas elas podem ser facilmente encontradas nos sites do Mad, bem como naqueles de apoio dado entre colegas, como o Surviving Antidepressants, embora raramente isso se passe na literatura médica científica.

Para seguir o conselho da FDA, os médicos devem ser capazes de prescrever uma agenda personalizada de redução, permitindo que os pacientes diminuam gradualmente por longos períodos de tempo, dando passos muito curtos. Na Holanda, isso foi possível na prática graças ao desenvolvimento das tiras com doses reduzidas. Para comentar o que foi dito por Leshner e Dzau, considero esta informação relevante para os leitores do JAMA. Portanto, junto com Jim van Os, submetemos a seguinte carta ao Editor.

Carta ao editor do JAMA: Medicação decrescente permite estar conforme à nova orientação de retirada de opioides dada pela FDA

O número de vítimas de abuso de opiáceos na população dos EUA, com cerca de 130 pessoas morrendo a cada dia por overdoses de opiáceos, é entristecedor. [1]  Para ajudar a reduzir o impacto da atual epidemia, Leshner e Dzau defendem o uso de tratamento medicamentoso para o tratamento de transtornos por uso de substâncias. Embora concordemos que em alguns casos uma abordagem baseada em medicação possa ser solicitada e útil, nos perguntamos se, resolvendo o problema da prescrição excessiva de um medicamento pela prescrição de outras drogas, não estamos apenas substituindo um problema de dependência a uma substância pela dependência a uma outra.

Em 9 de abril, a FDA anunciou que exigirá mudanças no rótulo para orientar os prescritores sobre a redução gradual e individualizada dos medicamentos analgésicos baseados em opiáceos, porque a interrupção (forçada) dos opioides pode resultar em dor descontrolada, sintomas sérios de abstinência, sofrimento psicológico e suicídio. [2]

A agência FDA adverte, os profissionais de saúde não devem descontinuar abruptamente os opioides em um paciente que esteja fisicamente dependente. Como não existe uma programação padrão de redução de opiáceos adequada a todos os pacientes, eles devem criar um plano específico para o paciente para reduzir gradualmente a dose do opioide e garantir monitoramento e suporte contínuos, para evitar sintomas sérios de abstinência, piora da dor do paciente ou estresse psicológico.

A questão importante é: podemos fazer a redução gradual possível na prática de forma tal que este bom conselho, que é igualmente apropriado para outros tipos de drogas onde são conhecidos os sintomas de abstinência, possa ser seguido?

Nós abordamos exatamente essa questão desenvolvendo as chamadas tiras com doses reduzidas, que permitem a um médico prescrever cronogramas personalizados, usando uma abordagem compartilhada de tomada de decisão médico e paciente. [3] Os resultados do primeiro estudo observacional sobre o uso dessas tiras mostram o quão bem-sucedida a abordagem pode ser. [4] Dos 895 pacientes que desejaram descontinuar um antidepressivo, 636 (71%) conseguiram se estabilizar completamente, muitos dos quais haviam falhado uma ou várias vezes antes ao usarem outros métodos.

Inicialmente, as tiras com doses reduzidas foram desenvolvidas apenas para reduzir a paroxetina e a venlafaxina, mas depois de recebermos solicitações de pacientes e médicos para também disponibilizá-las para outros tipos de medicação, as tiras também foram desenvolvidas para outros antidepressivos, antipsicóticos, sedativos e antiepilépticos, trabalhando analgésicos centralmente como metadona, oxicodona e tramadol e alguns outros medicamentos. As primeiras experiências com o uso em doses reduzidas gradualmente [5] sugerem que o uso de tiras com doses reduzidas para opioides, como a oxicodona, pode ser uma valiosa primeira opção de tratamento para pacientes que desejarem descontinuar a medicação opioide.

Rejeição de JAMA

“Infelizmente, por causa das muitas submissões que recebemos e das nossas limitações de espaço na seção Cartas, não podemos publicar sua carta no JAMA. . . . . determinamos que a sua carta não recebeu uma classificação de prioridade alta o suficiente para publicação.”

JAMA não quis publicar nossa carta, porque não obteve uma classificação de prioridade alta o suficiente. Fiquei surpreso e desapontado e quis saber quais critérios foram usados para chegar a essa conclusão. Então eu escrevi o seguinte email para o editor.

E-mail para o editor do JAMA

Você escreve que a nossa carta não tem uma classificação de prioridade alta o suficiente. Por que isso é assim,ds não é explicado, então eu só posso adivinhar. Isso significa que JAMA:

  1. Não acha ser um problema de alta prioridade que nos EUA todos os dias 130 pacientes morram de uma overdose de drogas opiáceas e um número muito maior sofra muito tentando sair desses medicamentos com segurança (e muitas vezes em vão)?
  2. Não acha ser um problema se um número desconhecido de pacientes no futuro próximo terá que sofrer desnecessariamente porque eles poderiam ter sido melhor ajudados se seus médicos tivessem sido informados pelo JAMA? O JAMA é uma plataforma importante e influente que atinge um grande público. Todo médico promete não fazer mal. Este compromisso não se aplica também ao JAMA?

Em vista dessas perguntas, peço a gentileza de reconsiderar sua decisão. Se, após reconsiderar, o corpo editorial ainda achar que nossa carta não tem uma classificação de prioridade alta o suficiente, eu agradeceria muito que você fosse gentil em nos explicar quais são as razões para chegar a essa conclusão.

Dentro de alguns dias, recebi a seguinte resposta:

“Eu sinto muito que você não tenha ficado satisfeito com a nossa decisão. Publicamos vários artigos sobre a epidemia de opiáceos, por isso não é exato que não consideremos o tópico uma prioridade alta. No entanto, cada revista tem prioridades diferentes quando se trata de selecionar cartas para o editor publicar. Consideramos as cartas como uma forma de revisão por pares pós-publicação. Assim, procuramos por cartas que comentem diretamente sobre uma questão levantada em um ponto de vista ou em um artigo de pesquisa. Para o JAMA, a coluna de cartas não é um local para informar os leitores sobre novas descobertas científicas, que consideramos ser do espaço de artigos de pesquisa.

Apenas cartas “que comentem diretamente sobre uma questão levantada em JAMA”

JAMA, aparentemente, só quer cartas que “comentem diretamente sobre uma questão levantada em um ponto de vista ou em artigo de pesquisa“. Na minha opinião, isso é precisamente o que fizemos. Dada a urgência e gravidade do problema – somente nos EUA todos os dias 130 pessoas morrem de overdose de opiáceos! – Não consigo entender como nossa contribuição não pode ser considerada diretamente relacionada à questão levantada no artigo de Leshner e Dzau em JAMA.

Concluí que o JAMA simplesmente não quis publicar a nossa contribuição e que seria uma perda de tempo escrever ao editar novamente. Em vez disso, decidi escrever este blog para levantar a seguinte questão:

“Por que uma revista médica influente não está interessada em uma solução prática que comprovadamente ajuda pacientes e que já está disponível?”

No futuro, mas não agora!

Ao longo dos anos, depois de ler milhares de artigos científicos sobre transtornos psiquiátricos e o uso de medicamentos psiquiátricos, ficou muito claro para mim que as revistas médicas querem publicar principalmente sobre drogas ou intervenções que se espera que funcionem melhor do que as existentes, que tenham menos efeitos adversos e que, por fim, devem levar a melhores tratamentos e a melhores diretrizes. No futuro.

Talvez eu tenha me tornado um pouco cínico, mas o que vejo acontecendo de novo e de novo é o seguinte:

Promessas feitas em revistas médicas são principalmente sobre ajudar pacientes no futuro e raramente sobre como ajudá-los exatamente agora.

A mensagem geral, especialmente em editoriais, convidando comentários e artigos de opinião, é que “este novo estudo mostra uma grande promessa“, que “estamos quase lá” e, talvez mais importante, que “precisamos de mais pesquisas“. Minha interpretação é: “que nos dê o dinheiro e ficaremos felizes em realizar isso“. Com a promessa implícita de que, uma vez que essa nova pesquisa tenha sido feita, teremos um mundo melhor.

Mas nós estamos conseguindo um mundo melhor? Em muitos casos, não vejo isso acontecendo. O que eu vejo é que depois de alguns anos o ciclo simplesmente se repete, levando a novos editoriais, convite a comentários e artigos de opinião afirmando que “este novo estudo mostra uma grande promessa”, que “estamos quase lá’ e que “precisamos de mais pesquisa”. E assim por diante. Trabalhos em andamento que nunca terminarão e que continuam gerando renda estável para os pesquisadores. Sem ajudar muito pacientes e médicos na prática clínica diária.

Quanto progresso fizemos realmente para melhorar a farmacoterapia para problemas de saúde mental?

O que eu observo é que nós temos cada vez mais, e propositalmente, tornado fácil o começo de pacientes com o uso de drogas psiquiátricas, com pouca pesquisa ou esforço clínico para ajudar os pacientes a sair dos medicamentos ou para tentar entender ou reduzir os sintomas de abstinência.

E não estamos falando aqui de novas drogas. Estamos falando de drogas que foram descobertas décadas atrás (mais de 70 anos no caso do lítio e da clorpromazina). Muitas dessas drogas ainda estão em uso hoje e a maioria se tornou extremamente barata, porque todas estão sem patente. Tão barato que a solução mais em conta para ‘ajudar’ os pacientes quase invariavelmente é prescrever mais remédios do que tentar outra coisa para ajudá-los a sair da medicação.

As empresas farmacêuticas que trouxeram essas drogas para o mercado sabem sobre os diversos problemas da abstinência, mas não fizeram e ainda nada fazem para desenvolver soluções práticas para evitá-los. Infelizmente, eles ainda não têm a obrigação de fazer isso quando trazem uma nova droga ao mercado.

E o que a psiquiatria fez até agora para encontrar uma solução para o problema da abstinência? O que eu vejo é que tivemos que esperar até 2019 para que o Colégio Real Britânico de Psiquiatras admitisse que os sintomas de abstinência poderiam ser mais severos e mais duradouros do que as diretrizes oficiais dizem. Que se deixe que algo será feito. Isso é algo que eles prometem que farão no futuro.

Isso me traz de volta à minha pergunta. Por que as revistas médicas influentes, como a JAMA, apenas estão interessadas em soluções que levarão a melhores tratamentos e diretrizes no futuro? E não em uma solução prática, como reduzir a medicação com tecnologia que já está disponível e que pode ajudar os pacientes exatamente agora?

Isso é porque ajudar os pacientes a sair da medicação com segurança é ruim para os negócios?

Veja as notas de pé de página:

  1. Leshner AI, Dzau VJ. Medication-Based Treatment for Opioid Use Disorder. JAMA. 2019;321(21):2071-2072. https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/2732941
  2. FDA drug safety announcement: FDA identifies harm reported from sudden discontinuation of opioid pain medicines and requires label changes to guide prescribers on gradual, individualized tapering. April 9, 2019. fda.gov/drugs/drug-safety-and-availability/fda-identifies-harm-reported-sudden-discontinuation-opioid-pain-medicines-and-requires-label-changes
  3. Groot PC. Tapering strips for paroxetine and venlafaxine. Tijdschrift voor Psychiatrie. 2013;55(10):789-794 (article in Dutch, English version available at https://www.taperingstrip.nl/wp-content/uploads/Groot_2013_Taperingstrips_paroxetine_venlafaxine.pdf
  4. Groot PC, van Os J. Antidepressant tapering strips to help people come off medication more safely. Psychosis 2018;10(2):142-145. https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/17522439.2018.1469163
  5. taperingstrip.org (a not-for-profit website of the User Research Center of Maastricht/Utrecht University Medical Center, the Netherlands

Nota dos Editores

Peter Groot tem a sua presença confirmada no III SEMINÁRIO INTERNACIONAL A EPIDEMIA DAS DROGAS PSIQUIÁTRICAS. De 28 a 31 de Outubro, na Escola Nacional de Saúde Pública, Rio de Janeiro. A Programação estará disponível aqui no nosso site.