Quadro de Referência Poder, Ameaças e Sentido (PTMF)

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Nos dias 29, 30 e 31 de Outubro próximo, ocorrerá no Rio de Janeiro, na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ), o 3 Seminário Internacional A EPIDEMIA DAS DROGAS PSIQUIÁTRICAS. O foco do Seminário serão alternativas ao diagnóstico psiquiátrico e alternativas ao tratamento psicofarmacológico.

A seguir uma entrevista com Lucy Johnstone (Reino Unido), quem irá nos apresentar o documento oficial da Divisão Clínica de Psicologia da Sociedade Britânica de Psicologia.

Um grupo de psicólogos seniores (Lucy Johnstone, Mary Boyle, John Cromby, David Harper, Peter Kinderman, David Pilgrim e John Read) e ativistas de alto prestígio dos movimentos de usuários de serviços (Jacqui Dillon e Eleanor Longden) passaram cinco anos desenvolvendo o documento Quadro de Referência Poder, Ameaças e Sentido (Power Threat Meaning Framework) como uma alternativa aos modelos mais tradicionais baseados no diagnóstico psiquiátrico. Eles foram apoiados pela pesquisadora Kate Allsopp, por um grupo de consultoria de usuários / prestadores de serviços e por muitas pessoas que forneceram exemplos de boas práticas que não se baseiam no diagnóstico.

A ENTREVISTA

Fernando: Oi Lucy. Depois de ler o documento Quadro de Referência Poder, Ameaças e Sentido (que para facilitar iremos resumir pelas iniciais em inglês PTMF), e haver trabalhado com partes desse documento em um grupo de estudos aqui no Laboratório [LAPS], enquanto psicólogo sinto-me orgulhoso, eu já lhe disse isso. É uma honra estar agora a entrevista-la.  Esse documento do qual você é uma das coautoras é uma tomada de posição oficial da Divisão Clínica de Psicologia da Sociedade Britânica de Psicologia do Reino Unido. E é muito interessante que o seu produto seja uma obra coletiva, com a participação de profissionais da clínica, profissionais da academia, e muito em particular representantes dos movimentos organizados de ex-usuários.  O documento nos mostra ser possível trabalhar com pessoas com estresse psicológico, independentemente da forma como esse estresse se manifesta, com meios que não são da abordagem do modelo biológico.  E que o Quadro de Referências consegue dialogar com distintas escolas clínicas de abordagem psicossocial, como psicanálise, teoria cognitivo-comportamental, psicologia existencial, psicologia sistêmica, etc., bem como com as experiências de vida dos usuários. Sabemos que sistema oficial de diagnóstico psiquiátrico é terrível. Saiba que a sua presença entre nós em nosso Seminário no Rio será muito importante, mostrando como é possível oferecer alternativas à abordagem biomédica para a nossa sociedade.

Então, Lucy. Minha primeira pergunta é a seguinte. Em poucas palavras, você poderia resumir quais são as questões mais importantes implicadas no sistema oficial de diagnóstico psiquiátrico?

Lucy: O sistema de diagnóstico psiquiátrico está em crise. Até os psiquiatras seniores que elaboraram essas categorias admitiram que falta confiabilidade e validade a elas. É por isso que a British Psychological Society apoiou nosso projeto de cinco anos, o PTMF, para desenvolver um sistema conceitual alternativo. Muitos profissionais não percebem que os diagnósticos não são cientificamente fundamentados e os usuários do serviço raramente são informados. Os diagnósticos psiquiátricos são impostos às pessoas como se fossem fatos médicos comprovados, enquanto a verdade é que são conjuntos de julgamentos sociais sobre crenças e comportamentos inoportunos, elaborados por comitês. As pessoas diagnosticadas podem muito bem ter problemas, mas não há evidências de que esses problemas sejam melhor compreendidos como distúrbios ou doenças médicas. No entanto, esses rótulos são muito poderosos. Eles carregam mensagens de estigma, vergonha e auto-culpa. Eles frequentemente obscurecem os abusos e privações que as pessoas sofreram. Em um nível social mais amplo, os diagnósticos impedem todos nós de fazer a ligação entre o sofrimento pessoal – o que é muito real – e a desigualdade e a injustiça social. O PTMF tenta restaurar esses links.

Fernando: O foco do PTMF são as ‘ameaças ao poder’. Por que essa mudança de foco para as ‘ameaças do poder’? Por que é tão importante que todos nós tenhamos o ‘poder’ como foco ‘?

Lucy: O foco principal do PTMF está no impacto do poder em todas as suas formas e nas ameaças que isso pode criar em todas as áreas de nossas vidas. Isso inclui não apenas as maneiras pelas quais as pessoas podem ferir, abusar ou negligenciar uma à outra, mas formas mais amplas de poder em nossos sistemas sociais, econômicos e políticos. Queríamos tornar a consideração do poder muito central, porque é o elemento que falta nos sistemas de diagnóstico. Assim que damos a alguém um diagnóstico, nos concentramos nela enquanto indivíduo, separando-a de seu contexto mais amplo. Mas muitas vezes também falta uma consciência do papel do poder na psicologia e na psicoterapia. A menos que o recoloquemos, nós sempre corremos o risco de individualizar problemas sociais, e, assim, nunca lidaremos com causas profundas.

Fernando: Considerando que no Brasil existem milhões de pessoas vivendo em inimagináveis condições miseráveis, sujeitas a todos os tipos de violência econômica e político-social, mas igualmente física, psicológica e sexual. Como o PTMF pode ajudar os profissionais de saúde mental a serem úteis no dia a dia da assistência em saúde mental? Eu sei que é uma pergunta complexa, em particular para alguém que não viva no Brasil. Teremos a oportunidade de discutir sobre isso durante o nosso seminário. Mas brevemente, você poderia nos preparar para pensar sobre isso?

Lucy: Não há respostas simples para esses problemas muito reais e muito complexos. O PTMF pediria, em primeiro lugar, aos profissionais de saúde mental, que não diagnostiquem as pessoas que vivem nessas situações com ‘doenças mentais’. Isso simplesmente lhes dá uma identidade de ‘doentes mentais’, além de outros problemas. É uma resposta não científica e ofensiva, que aumenta o senso de fracasso e desesperança das pessoas. Em vez disso, o PTMF nos encoraja a ver que as pessoas estão experimentando reações compreensíveis às circunstâncias da sua vida. Isso pode fornecer a base para apoiar mudanças, mesmo que pequenas, em suas situações. Freqüentemente, isso não é melhor feito pela terapia, mas ajudando as pessoas a acessar qualquer suporte prático disponível e, talvez, juntando-se a outras pessoas para compartilhar suas histórias e agir socialmente.

Fernando: Por fim, conte-nos suas perspectivas com este Seminário no Rio.

Lucy: No Rio, descreverei os princípios básicos do PTMF e discutirei algumas das maneiras pelas quais ele está influenciando a prática no Reino Unido e além. Uma de suas implicações é que precisamos ver o papel dos medicamentos psiquiátricos de maneira muito diferente. As drogas podem proporcionar alívio a curto prazo, mas não estão ‘tratando doenças’. Isso se encaixa bem com o tema da conferência e espero compartilhar essas idéias com outras pessoas.

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Clique aqui para ver um curto vídeo do lançamento do Documento em Londres.