Antropólogos que estudam o campo psiquiátrico publicaram recentemente artigos em dois periódicos altamente influentes. O New England Journal of Medicine destacou um comentário de Gardner e Kleinman, “Medicina e a mente – as consequências da crise de identidade da psiquiatria“, enquanto “Mesclando apoio intensivo de pares e prática dialógica: lições de implementação do programa Parachute de Nova York” por Hopper e colegas, foi em Psychiatric Services. Arthur Kleinman e Kim Hopper são líderes em seu campo. Por esse motivo, esses documentos são dignos de revisão. Enquanto ambos pedem ou descrevem iniciativas de reforma, eles nos apontam diferentes direções em relação ao futuro papel dos psiquiatras.
Gardner e Kleinman afirmam que a psiquiatria é um campo em crise. Eles apontam as limitações da nossa base de conhecimento, observando que “diagnósticos e medicamentos psiquiátricos proliferam sob a bandeira da medicina científica, embora não haja um entendimento biológico consistente das causas ou dos tratamentos de distúrbios psiquiátricos”. Eles se referem à historiadora Anne Harrington que sugere que uma resposta seria a psiquiatria restringir o seu alcance aos mais severamente prejudicados. Gardner e Kleinman rejeitam isso, pedindo uma nova geração médicos “em geriatria, dependência química e psiquiatria social”. Eu me simpatizo com o pedido deles que sejam fortalecidos recursos para fornecer psicoterapia. Mas eles parecem equiparar a psicoterapia com abordagens psicodinâmicas, sem o reconhecimento de que as falhas dos psicanalistas podem ter contribuído para a hegemonia esmagadora dos chamados psiquiatras “biológicos”. Partilho seu desejo de que o financiamento da pesquisa seja alocado em outros campos que não a pesquisa biológica básica. No entanto, fiquei surpresa que os estudiosos de tal amplitude apoiem - ou pelo menos pareçam apoiar – reforçar o domínio da psiquiatria sendo líderes em pesquisa e desenvolvimento de programas. Preciso de ser convencida de que os problemas que concordamos existir serão melhor abordados dentro da minha profissão. Nos últimos anos, fiquei muito impressionada com as abordagens ao sofrimento mental que emanam de fora da psiquiatria.
O artigo de Hopper e colegas descreve uma dessas iniciativas, o projeto Parachute NYC. Financiado por uma concessão federal para inovação dos Centros de Serviços Medicare e Medicaid (CMS), esta foi uma implementação de tratamento adaptado às necessidades (NAT) na cidade de Nova York. Adaptado de um programa sueco com o mesmo nome, o objetivo era treinar equipes que pudessem ir às casas de indivíduos logo no início de uma primeira experiência de psicose e trabalhar com eles e suas famílias para ajudá-los na crise. Também foram desenvolvidos serviços feitos entre pares. Profissionais e pares foram treinados em conjunto no tratamento adaptado às necessidades (Diálogo Aberto evoluído a partir do NAT) e no Suporte Intencional dos Pares (Intentional Peer Support). Um extenso resumo pode ser encontrado neste “White Paper“.
Hopper e colegas foram incorporados a esse projeto e sua perspectiva é compartilhada no white paper e em outro elegante artigo escrito por Cubellis, coautor desse artigo e membro de sua equipe. (Para mais informações sobre esse modo de fazer antropologia aplicado por esse grupo – que seria um tipo de estudo antropológico feito por antropólogos – veja este artigo).
Estranhamente, embora o artigo de Gardner e Kleinman critique explicitamente a psiquiatria (e tenha sido recebido com muita consternação em alguns dos círculos que frequento), ele parece concluir com o tipo de nota triunfalista que ouvi repetidas vezes ao longo dos anos. Em essência, eles sugerem que, com uma mudança de recursos, a psiquiatria possa finalmente acertar.
O artigo de Hopper, por outro lado, está descrevendo um programa que envolve uma profunda mudança na maneira como pensamos sobre os problemas daqueles que procuram nossa ajuda; o NAT difere de outras abordagens, pois fundamentalmente não é um empreendimento médico. O Suporte Intencional de Pares (IPS) é, por definição, uma abordagem não médica e evita explicitamente qualquer tipo de privilégio ao enquadramento médico. Os médicos podem ser incluídos em uma equipe de NAT, mas de maneira restrita e mais alinhada à proposta de Harrington. O conhecimento médico pode ser oferecido, mas não é especificamente privilegiado. O IPS oferece a noção de que existem múltiplas visões de mundo e que cada uma deva ser respeitada. NAT e Diálogo Aberto introduzem a noção de polifonia– as múltiplas perspectivas não são apenas toleradas, mas valorizadas. Criticamente, os pares trabalhavam ao lado de profissionais, enquanto parceiros iguais nas equipes, pelo menos como aspiração. Como Hopper coloca, “a finalidade extravagante que o Parachute tentou perseguir é ‘contra-hegemônica’, ao apontar em direção a uma inovação que não apenas desafia os interesses profissionais e institucionais, mas que também parece divergir do senso clínico comum”.
Apesar de anunciar uma mudança radical pela qual alguns de nós anseiam, o artigo de Hopper é decididamente sombrio. Embora eu suspeite que Hopper e seus colegas apoiem as iniciativas incorporadas em Parachute NYC, eles compartilham ironicamente o sentimento de Mueser, que escreveu um comentário para Psychiatric Services no início deste ano sobre o futuro das iniciativas do Diálogo Aberto. Mueser duvidava que houvesse recursos disponíveis para implementar essa maneira de trabalhar; ele não achava que a base de evidências disponível no Open Dialogue fosse suficientemente forte para justificar mais apoio à pesquisa. Hopper se pergunta se Mueser estava certo, mas pelas razões erradas: “Pode ser que as organizações que assinaram o projeto Parachute possam não ter entendido completamente o quão radical ele era. No final, isso pode ter contribuído para a dificuldade de se sustentar quando a concessão chegou ao fim. ”
Existem grupos que continuam tentando implementar aspectos do NAT e eu trabalho entre eles. Muitos de nós acham que isso oferece uma maneira profundamente humana de trabalhar. Para mim, a humildade e a transparência dessa maneira de trabalhar se tornaram o único antídoto para os problemas levantados por Gardner e Kleinman. Estou inteiramente de acordo com a sugestão de Harrington de que a psiquiatria restrinja o seu alcance; sou membro de uma equipe, mas não a líder. Minha colega que compartilha a sua experiência pessoal com psicose é frequentemente mais útil para a pessoa no centro das preocupações do que eu.
Mas há um enigma. O sistema apoiará essa “prática contra-hegemônica”? Se não conseguirmos apoio adequado, estaremos fadados ao fracasso? Hopper levanta essa preocupação em sua conclusão: “aceitar adaptações parciais e fragmentárias pode ser para restringir as chances de sucesso a todos, e garantir mais evidências de sua ineficiência”.
O Diálogo Aberto ensina a tolerar a incerteza. É um treinamento útil para aqueles entre nós que descobrem que não temos escolha a não ser continuar a trazer essa maneira de trabalhar em nossas clínicas, apesar dos desafios que enfrentamos.