DSM: Manual de Patologia ou Apenas um Dicionário Descritivo?

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O DSM-V vem gerando polêmica desde sua criação, em 2013. O artigo de Sandra Caponi e Fernanda Martinhago, Controvérsias sobre o uso do DSM para diagnósticos de transtornos mentais, da revista Physis, expõe as contradições presentes no manual.

Em paralelo às edições do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), houve o crescimento significativo dos diagnósticos de transtornos mentais. As autoras se questionam se isso realmente significa que a sociedade está tomada por doenças mentais, ou se algo mais é o que está causando essa ‘epidemia’.

O DSM surge apenas na segunda metade do séc. XX, a partir do desejo de sistematizar os diagnósticos referentes aos transtornos da mente. Em 1952, a APA (Associação Americana de Psiquiatria) publica a primeira versão do manual, o DSM-I. Mas de lá para cá o manual veio sofrendo várias alterações, demonstrando uma mudança na própria psiquiatria.

Vale destacar que no DSM – I (1952) e o DSM – II (1968) as categorias eram baseadas no enfoque psicanalítico. No entanto, com a publicação do DSM-III (1980) há uma reviravolta, as categorias são baseadas na medicina baseada em evidências, o que na época foi considerado uma revolução científica, trazendo à tona a mudança de paradigma que a psiquiatria vinha sofrendo. A partir daí, os manuais seguintes, DSM -V (1994) E DSM-V (2013), seguiram a mesma linha.

O artigo visa compreender o uso do DSM como instrumento para fundamentar os diagnósticos de transtornos mentais através das evidência científicas. É resultado de uma pesquisa de doutorado feita por uma das autoras, entre os anos de 2013 – 2017.

“Segundo Berrios (2007, p.11), a psiquiatria é o ‘conjunto de narrativas desenvolvidas (principalmente por sociedades ocidentais) para configurar, explicar e lidar com fenômenos comportamentais, os quais, com base em critérios sociais, mais do que neurobiológicos, foram definidos como desvios’. Para Izaguirre (2011), a psiquiatria não é uma ciência e está distante de conquistar este objetivo. Ela estaria relacionada ao desenvolvimento de outras disciplinas heterogêneas entre si, nas quais busca se embasar. Todavia, estas lhe proporcionariam mais interrogações do que soluções.”

Ao longo da História, a psiquiatria estabeleceu três paradigmas: ‘alienação menta’, o rompimento com a ideia de doenças (nesse momento a psiquiatria era englobada pela medicina) e o terceiro são as “estruturas psicopatológicas”, influenciado por diversas disciplinas como fenomenologia, linguística, neurobiologia, etc. Foi em paralelo com o terceiro paradigma que se desenvolveram novos psicofármacos. Esse acontecimento impulsionou os estudos sobre neurociências e genética, as autoras levantam a possibilidade desse ser o quarto, e atual, paradigma da psiquiatria.

As autoras destacam que o DSM se caracteriza mais como um ‘dicionário descritivo’ do que um manual de patologia. Isto porque as doenças devem possuir uma etiologia (origem da doença), uma agrupação de sintomas, um curso e um prognóstico (provável desenvolvimento futuro e resultado de um processo) e uma certa resposta ao tratamento. O que não é o caso dos transtornos mentais.

A psiquiatria parece buscar conectar-se com três níveis de desenvolvimento
científico atual: as neurociências como principal, a genética e o resultado tecnológico desta díade, a psicofarmacologia. A questão é que a psiquiatria não construiu elementos diagnósticos e classificatórios que fossem coerentes com estas disciplinas, cujo embasamento estaria nos mecanismos neuronais, neurotransmissores e genéticos, bem como os efeitos psicofarmacológicos no comportamento e elementos do sistema nervoso central para estabelecer uma nova nosologia com base científica
(IZAGUIRRE, 2011).”

Mas o DSM também é considerado conveniente, na medida que favorece os interesses corporativos da medicina, os interesses financeiros dos planos de saúde e o fortalecimento da indústria farmacêutica. Afinal, o DSM é o responsável pela fronteira entre normalidade e doença, e a consequência é sua grande relevância social, pois é o responsável por definir quem recebe ou não benefício por invalidez, quem é que pode adotar um filho, quem vai ocupar uma vaga de emprego, quem é doente e quem é sadio… Além disso, gera muito lucro para a indústria farmacêutica e para os planos de saúde.

O DSM não leva em consideração a complexidade do ser humano. O manual apresenta uma serie de controvérsias, uma forte inconsistência teórica e não preenche os critérios de confiabilidade. Mas por ser conveniente ao poder médico, à indústria farmacêutica e à indústria da saúde, o DSM mantém a sua hegemonia e autoriza a epidemia de transtornos psiquiátricos e, consequentemente, a de remédios psiquiátricos.

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MARTINHAGO, FERNANDA; CAPONI, SANDRA. Controvérsias sobre o uso do DSM para diagnósticos de transtornos mentais. Physis,  Rio de Janeiro ,  v. 29, n. 2,  e290213,    2019 . (LINK)