“Ex Usuários” Chilenos que Abandonaram as Drogas Psiquiátricas

"Ex usuários" relatam suas experiências com o sistema de saúde mental e com a descontinuação dos remédios psiquiátricos.

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No artigo da antropóloga Tatiana Castillo Parada, publicado na revista Salud Colectiva, da Universidade Nacional de Lanús, a autora trabalha com os significados e narrativas de cinco chilenos com experiência de diagnóstico psiquiátrico, que estiveram em tratamento farmacológico durante oito anos ou mais e descontinuaram o uso de psicofármacos.

O estudo é justificado pelo atual contexto mundial. O artigo aponta que em grande parte do mundo ocidental, os serviços de saúde mental priorizam o tratamento farmacológico em relação as abordagens psicossociais e comunitárias. No Chile, não é diferente, apesar da implementação do modelo comunitário de saúde mental desde a década de 1990.

Como antropóloga, a autora considera que a Antropologia pode ajudar a compreender práticas culturais como o consumo de medicamentos, fenômeno socialmente situado. Para tal, foram realizadas cinco entrevistas individuais semi estruturadas , com duração entre uma e duas horas. As pessoas selecionadas haviam passado pelos serviços de saúde mental, recebido algum diagnóstico e realizado tratamento psicofarmacológico durante oito anos ou mais e, no momento da entrevista, haviam descontinuado os remédios psiquiátricos dos quais faziam uso.

Os entrevistados relataram acontecimentos sociais e familiares como desencadeadores da origem do mal estar subjetivo e consequente inserção no atendimento psiquiátrico. Violência intrafamiliar, separação dos pais, dificuldades em cumprir papéis sociais, foram alguns dos exemplos citados. Já no serviço de saúde mental, relatam que foram diagnosticados com diferentes transtornos simultaneamente, tiveram experiências em hospitais psiquiátricos e seus tratamentos sem consentimento e descreveram a perda de memória e bloqueio mental como efeitos recorrentes do tratamento.

Quanto aos remédios psiquiátricos, é relatado que receberam diferentes tipos de psicofármacos, em quantidades diferentes e em diferentes combinações. Gerando efeitos complexos e distintos.

“O que eu sentia era que andava como “passarinho”, nem para cima nem para baixo. Comparado com a quetiapina que é muito mais forte e você anda como se estivesse atrás de um vidro. Como que se estivesse em uma cabine (…)
Não sei, imagina se te assustam aí, em um estado normal você sentiria algo, se assustaria, mas com a quetiapina não acontece nada. Você não sente nada né. Não sente nada emocionalmente, afetivamente, no sente nada sexualmente, não acontece nada. Você fica igual a um zumbi.” (Claudio)

Além desses efeitos subjetivos, os entrevistados também descrevem sintomas de abstinência ao tentar retirar os medicamentos, além do efeito físico durante o uso dos mesmos, como aumento excessivo de peso e dificuldades na realização de atividades cotidianas, como o simples ato de amarrar os sapatos. Alguns também descreveram dificuldades na interação social e nos processos de pensamento.

Os motivos descritos para dar início a descontinuação dos medicamentos psiquiátricos foram numerosos e diversos, não necessariamente influenciados externamente ou por informação científica, mas principalmente, influenciados pelas experiências adversas com os medicamentos.

Os efeitos de abstinência da descontinuação das drogas podem gerar sintomas distintos, físicos e sensoriais, como o desenvolvimento de ideias suicidas e sentimentos de desesperança, por causa da dependência do medicamento. Por isso, os entrevistados dizem que não é suficiente apenas a vontade de parar com os medicamentos, e sustentam que é conveniente realizar a descontinuação de maneira lenta, reduzindo as doses gradualmente. Além disso, chamam a atenção para a complexidade maior da descontinuação de certos medicamentos em comparação a outros.

Outra questão levantada pelos entrevistados é o fato de que a descontinuação dos medicamentos deixa a pessoa “descoberta”, sem o “apoio” de uma substância que por muito tempo ocultou a origem do mal estar. Eles assinalam que a descontinuação não é apenas deixar os medicamentos, senão que implica um processo íntimo de descobrimento pessoal, que requer um tempo de autoconhecimento e a busca de alternativas de autoajuda para a “substituição” desses medicamentos. A falta de modelos para a descontinuação dos medicamentos e a escassa ajuda da atenção psiquiátrica e dos serviços de saúde mental, também são descritos como dificuldades enfrentadas.

Por outro lado, os entrevistados descreveram estratégias associadas a descontinuação dos remédios psiquiátricos. Citaram mudanças de rotina, hábitos alimentares e atividades físicas, até formas de abordagem alternativas, como jejum e meditação, além de muita vontade e desejo de ter outra vida. Quanto ao apoio social durante o processo, foram citadas três: apoio familiar, médico e comunitário. Mas destacam que nem sempre é possível o apoio familiar ou médico. Já o apoio comunitário foi descrito como ativismo, possibilitando a transmissão da sua experiência, ensinamento e apoio às pessoas que passam pelo mesmo que eles passaram.

“Se você opta pelo ativismo, significa ter uma posição politica a respeito, um convencimento, uma capacidade crítica, desenvolver planos, é como um fortalecimento do teu valor como pessoa […] Ativar o movimento, ativar a consciência. Falando em termos mais comuns, é como uma revolução, porque estão muito enraizados os conceitos, os modelos, as formas de pensamento, são validados academicamente, socialmente. São aceitos e naturalizados os maus tratos , a discriminação e a estigmatização para a loucura que não tem a ver com a enfermidade mental. Está super naturalizado, então, basicamente é una revolução porque é uma mudança de paradigma.” (Claudio)

Por último, a partir do abandono das drogas psiquiátricas, os entrevistados descrevem o encerramento da sua participação nos serviços de saúde mental. A reflexão e ressignificação da experiência vivida gera a construção de uma nova identidade e compreensão de si mesmos. Por isso, se denominam “sobreviventes da psiquiatria” ou “ex usuários”, como uma necessidade de denúncia do difícil processo vivido. E destacam a importância de “fazer comunidade”, reconstruir os laços sociais, desenvolver espaços de participação social e cultivar relações significativas.

O artigo é muito valioso ao trazer à tona a experiência de sujeitos que passaram pela experiência da descontinuação. A partir da experiência dessas pessoas são elaborados saberes preciosos sobre a descontinuação de medicamentos, que deveriam ser levadas em conta pelo mundo científico.

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PARADA, T.C. Subjetividade y autonomia: significados y narrativas sobre la discontinuación de fármacos psiquiátricos. Salud Coletiva, v. 14, n. 3, p. 513 – 529, 2018. (Link)

Grupo de Autogestão Libre-Mente (Link)

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Graduada em Psicologia pela UERJ, especialista em Terapia Familiar pelo IPUB/UFRJ, com ênfase em saúde mental. Pesquisadora auxiliar do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE/Fiocruz) e Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial(LAPS/ENSP/Fiocruz) Produtora e apresentadora do podcast Enloucast. Além de atuar como psicóloga clínica. Áreas de interesse: Saúde Mental, Terapia Sistêmica, Diálogo Aberto, Construcionismo Social, Medicalização e Patologização da vida