Por várias semanas, eu tenho acordado durante a noite com sentimentos de intensa ansiedade. Monitoro-me constantemente quanto aos sintomas de uma doença que é possivelmente fatal. Não consigo me concentrar muito bem, e minhas formas habituais de lidar com as coisas não parecem estar funcionando. Eu me sinto um pouco mais segura dentro da minha casa, mas também me sinto presa. Em um minuto me sinto bem, e no outro me sinto aterrorizada. Será que de repente desenvolvi um ‘problema de saúde mental’, infelizmente coincidindo com a pandemia do COVID-19? Não, claro que não. Estou tendo uma resposta inteiramente racional a uma grande ameaça a todo o nosso modo de vida.
Parece apropriado tornar este blog mais pessoal, porque realmente estamos juntos nisso – e não quero dizer apenas enquanto comunidade ou nação, mas como espécie humana. Juntamente com os danos ambientais e as mudanças climáticas – aos quais está relacionada – a pandemia é de longe a maior ameaça que já enfrentamos. Quem pode dizer como deveríamos estar nos sentindo nesse momento? Onde traçamos a linha entre ‘normal’ e ‘anormal’, ‘doente mental’ e ‘mentalmente bem’?
E, no entanto, é exatamente isso que muitos dos chamados especialistas continuam fazendo. É horrível e fascinante ver como a narrativa de ‘doença mental’ está sendo usada para individualizar e patologizar nossas respostas, mesmo quando nossa própria sobrevivência está em risco. Isso está nos apresentando uma ilustração particularmente gritante da loucura do pensamento psiquiátrico.
No Reino Unido e no mundo, as manchetes estão por toda parte. Estamos caminhando para uma “pandemia de graves distúrbios de saúde mental“. Estamos enfrentando “uma epidemia de depressão clínica“. As instituições de caridade estão se alinhando para dar o alarme – a Mental Health Foundation descobriu que seis em cada dez pessoas estavam preocupadas com a crise e corriam o risco de terem “problemas de saúde mental persistentes e graves“. Somos exortados a aprender as lições da China e a nos preparar para “uma crise pública de saúde mental“.
Claro, isso é um absurdo. Uma resposta mais sensata seria perguntar o que há de errado com as quatro em cada dez pessoas que aparentemente não estão muito preocupadas com o que está acontecendo. Deveríamos estar muito mais preocupados com alguém que negue alegremente a extensão do problema – especialmente (sem mencionar nomes, mas existem vários deles no cenário mundial) se forem líderes nacionais encarregados de conduzir seus países durante a crise.
Apenas algumas semanas atrás, alguém que estava com muito medo de sair de casa no caso de contrair uma doença fatal e passava a maior parte do dia lavando as mãos e limpando as maçanetas, seria considerado um caso grave de ‘TOC’. Agora é a descrição de um cidadão responsável. Nunca houve uma ilustração mais clara do fato de que julgamentos sobre quem é ‘doente mental’ são sociais, não médicos. Nunca foi tão óbvio que o sofrimento faz sentido no contexto. Situações anormais levam a respostas incomuns ou extremas. Se estamos com medo, então deveríamos estar.
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O público que acompanha as nossas publicações em Mad in America, Mad in UK e Mad in Brasil não precisa ser convencido dos danos resultantes da rotulagem através do diagnóstico e, ao contrário do público em geral, nós já estamos familiarizadas com o grande conjunto de evidências que nos dizem que as várias formas de angústia diagnosticadas como ‘psicose’, ‘depressão clínica’, ‘transtorno bipolar’, ‘transtorno de personalidade’ e assim por diante estão fortemente relacionadas a experiências de trauma, abuso, negligência, perda, pobreza, desemprego, discriminação e desigualdade. As vozes hostis que algumas pessoas ouvem muitas vezes ecoam as palavras dos agressores da vida real. Humor e desespero fazem sentido se você está lutando com a solidão e a falta de recursos. Autoagressão e ansiedade são o resultado previsível das pressões que nossas crianças e jovens estão enfrentando. Em outras palavras, quando colocadas em contexto, essas reações são respostas compreensíveis às adversidades.
Mas, infelizmente, traduzir essas reações humanas compreensíveis para a linguagem da ‘saúde mental’ é tanto uma epidemia global quanto o coronavírus e tão difícil de combater quanto. Somos cada vez mais encorajados a reformular todas as formas de angústia em um ‘problema de saúde mental’, sob o novo imperativo de ‘falar sobre saúde mental’ mais ou menos constantemente. Esse discurso penetrou tão profundamente nas mentes dos profissionais, da mídia e do público em geral que eles simplesmente não o veem como problemático, ou nem mesmo compreendem quais podem ser as críticas. Para dar apenas um exemplo, a Public Health England promoveu, louvavelmente, uma mensagem de “É normal sentir-se ansioso em uma crise” e sugeriu uma série de estratégias de senso comum e apoio mútuo. No entanto, a campanha é encabeçada por dois de nossos membros da realeza, o duque e a duquesa de Cambridge, pedindo que “cuidemos de nossa saúde mental“.
‘Saúde mental’ é uma locução sedutora, mas assim que se torna apenas uma outra maneira de dizer ‘como todos nós sentimos’, somos sugados de volta para uma estrutura sutilmente individualizante e medicalizante. Até os escritores de opinião crítica acabam argumentando que deveríamos fazer X (onde X é estratégias comuns de enfrentamento e de apoio mútuo) em vez de Y (onde Y são diagnósticos e prescrições) a fim de preservar nossa ‘saúde mental’ – isso é misterioso, indefinível, porém um estado mental aparentemente frágil – em vez de desafiar primeiramente todo o conceito de ‘saúde mental’.
Mas a ideia de que estamos enfrentando duas pandemias simultâneas – uma de saúde física e, por uma trágica coincidência, uma de saúde mental também – não é apenas uma bobagem. É perigosa. Ao sermos vítimas desse modo de pensar, perdemos conexões com os problemas mais amplos com a mesma certeza – de fato, mais ainda, porque nem percebemos que estamos fazendo isso – como aqueles que estão promovendo abertamente em termos médicos a narrativa de que há uma “pandemia de transtornos crônicos”.
Existem duas razões principais para isso. Em primeiro lugar, quanto mais rotularmos nossas compreensíveis reações humanas como problemas ou transtornos de saúde mental, maior será a tentação de focar em “tratamentos” individuais – seja psiquiátrico ou psicológico / terapêutico. Eu já vi os dois grupos se preparando ansiosamente para receber todos os novos clientes criados pela crise, embora com quase um quarto da população do Reino Unido já com prescrição de um “antidepressivo” faríamos muito mais dando apoio prático e financeiro.
Da mesma forma, sabemos que intervenções psicológicas formais podem realmente ser prejudiciais se implementadas muito cedo. Em vez de nos unirmos em solidariedade, os rótulos de diagnóstico nos isolam e silenciam, e nos transmitem a mensagem de que não estamos lidando da forma como deveríamos. Por outro lado, tem sido demonstrado que o simples apoio humano e o contato de amigos, vizinhos e colegas protegem contra o medo e o desespero em tempos de crise e desastre.
Em segundo lugar, rótulos de diagnóstico e o discurso de “saúde mental” na verdade nos impedem de lidar com as razões mais amplas de nossa angústia, desconectando nossas respostas das ameaças. Em tempos mais “normais”, essas ameaças normalmente incluem coisas como abuso, negligência, violência, discriminação e pobreza. Esses fatores ainda se aplicam, mas, juntamente com as mudanças climáticas, agora estamos diante de um nível adicional de ameaça que vai além de tudo o que já sabemos.
A tarefa imediata é sobreviver à pandemia o melhor que pudermos. Isso por si só está demonstrando as falhas agudas de nossos sistemas públicos de saúde e redes de assistência social, além de advertências muito necessárias de que os membros mais essenciais de nossa sociedade são aqueles que são os menos bem pagos e os menos valorizados – enfermeiras, profissionais de saúde, motoristas de entregas, os empregados dos mercados e assim por diante. Há muita coisa a ser aprendida quando emergirmos em um mundo pós-pandemia.
Mas as lições precisam ir muito além. Existe o risco de “individualizar” uma crise, bem como as reações de uma pessoa a ela, embora todas as evidências sugiram que o COVID-19 não seja apenas um desastre aleatório. Está previsto há anos, com base no impacto conhecido da destruição de habitats de animais, o que aumenta a probabilidade de vírus serem transmitidos aos seres humanos. Essa destruição ambiental é, por sua vez, uma consequência da exploração do mundo natural impulsionada pelas demandas da industrialização. Verdadeiramente, o planeta está revidando. Um dia, a menos que tomemos medidas coletivas drásticas para mudar toda a base econômica e de valores do nosso modo de vida industrializado ocidental, haverá um vírus que não poderemos derrotar.
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Esses são argumentos complicados a serem apresentados e podem ser rapidamente interpretados como negligência insensível ao sofrimento das pessoas. É muito importante não negar o sofrimento real e agudo que muitas pessoas com “doença mental” diagnosticada estão enfrentando, especialmente se de repente descobrirem que seus serviços habituais não estão disponíveis e ficarem presas dentro de suas próprias quatro paredes sem ninguém para chamar. Vi pedidos desesperados de pessoas que foram descartadas por sua equipe psiquiátrica, exatamente quando precisam mais de contato do que nunca. Isso é chocante e injustificável.
Mas igualmente, não queremos assumir que os sobreviventes enquanto grupo não conseguirão lidar com essa situação atual. Isso é falso e até paternalista, e também há relatos de pessoas lidando melhor do que o habitual, à medida que se baseiam em talentos para a sobrevivência dos quais a população oficialmente “normal” carece. Um usuário do serviço twittou: “Para aqueles que como nós já vivem com trauma ou impactos significativos de saúde mental em nossa vida cotidiana, talvez estejamos mais preparados / menos queixosos do autoisolamento, tendo que sobreviver com baixa renda, com restrições de movimento e enfrentando cortes em nossos serviços de saúde / assistência social.“ Outro disse: “Já passamos por essas emoções extremas e conseguimos atravessar para o outro lado.”
Da mesma forma, pessoas com sérios problemas de saúde física têm salientado que o isolamento é o seu modo de vida habitual e pedem para não serem esquecidas novamente quando o bloqueio for suspenso. Sobreviventes psiquiátricos criaram uma lista impressionante de redes e recursos de pares nas últimas semanas, incluindo um conjunto de estratégias de “experiências de vida”, extraídas de “conhecimentos adquiridos com muito esforço que foram aprendidos ao atravessar experiências de vida desafiadoras”.
O jornalista britânico John Crace [1] que tem histórico de sofrimento mental, está enfrentando os dois lados da moeda: “Acordo cedo e, por um breve nanossegundo, tudo está bem com o mundo. Então minha mente se volta para … a realidade da pandemia de coronavírus. A ansiedade me eletrifica. Não é apenas uma sensação de medo existencial, é uma entidade parasitária que domina todo o meu corpo. Meus ombros e braços formigam de medo, há uma bola de pavor em minhas entranhas e passo a ter cãibras em minhas pernas. Fico imobilizado por quase uma hora. Eu sei que deveria estar saindo da cama, mas tenho muito medo de fazê-lo … No momento, não consigo enfrentar estar em meu escritório em casa. Eu me sinto muito sozinho e inseguro”. E aí ele acrescenta: “Parece que a realidade finalmente alcançou meu próprio senso de neurose e ansiedade. O que pode ser profundamente preocupante para a maioria das pessoas comuns, mas de alguma forma é quase reconfortante para mim. Quase.”
Sua ansiedade é claramente muito real e avassaladora, mas quem pode dizer que não é razoável? Talvez todos devêssemos nos sentir mais parecidos com ele há muito tempo. De repente, as barreiras entre eles – usuários / sobreviventes de serviço e nós, os “normais” – estão quebrando. Todos nós podemos oferecer e receber suporte.
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Sobreviver à pandemia, como ocorrerá com a maioria de nós, é apenas o começo. No entanto, não devemos ser tentados a voltar a uma narrativa médica, mesmo que o que vem depois seja provavelmente tão ruim, se não pior. A equipe de saúde pode ficar profundamente abalada com o sofrimento que viu, mas não precisamos chamar isso de um surto de “Transtorno Pós-Estresse”. As pessoas que perderam o emprego provavelmente se sentirão desesperadas, mas não precisamos descrever isso como “depressão clínica” e prescrever medicamentos para isso. A recessão econômica que se seguirá à pandemia pode levar a tantos suicídios quanto as medidas de austeridade, mas não precisamos dizer que “doenças mentais” causaram essas mortes.
O COVID-19 é uma crise nacional e internacional e não há dúvida de que todos ficaremos profundamente assustados. No entanto, podemos sair desta crise em um estado melhor do que antes, mantendo-se conectados com nossos sentimentos e com as ameaças urgentes que nos levaram a eles e realizando ações coletivas para lidar com as causas profundas. Talvez, finalmente, sejamos forçados a estabelecer a ligação entre níveis crescentes de miséria, medo, automutilação, suicídio e desespero e os males sociais da austeridade, emprego inseguro, discriminação e pobreza. Talvez finalmente abandonemos os dois polos da narrativa “saúde mental / doença” e, em vez disso, conversemos muito mais sobre nossas reais e válidas reações humanas à discriminação, insegurança, desigualdade e injustiça em nossas vidas e em nossas comunidades.
Esta é uma chance de desafiar, e não reforçar, a narrativa de Saúde Mental e é por isso que faço parte de um pequeno grupo tentando transmitir uma mensagem diferente na mídia. Tivemos alguns sucessos (confira The Guardian and Nursing Standard). Mais artigos, podcasts e blogs estão por vir e reunimos recursos não médicos e não patológicos que estão no Mad in UK.
“Trauma coletivo” pode ser definido como um evento ou situação que desafia o estilo de vida, os valores e a identidade de toda a sociedade. Judith Herman [2] , uma das pioneiras no trabalho de trauma, reconhece seu profundo impacto em sociedades inteiras, bem como em indivíduos. Ela diz: “A solidariedade de um grupo fornece a proteção mais forte contra o terror e o desespero, e o antídoto mais forte para a experiência traumática“. Ela também diz que a ação social e a revelação da verdade podem trazer cura e mudar as adversidades. O escritor Ben Okri expressou isso lindamente:
As questões levantadas pela pandemia devem se espalhar para todas as outras questões através das quais futuros desastres podem surgir … mudanças climáticas, assistência universal à saúde, justiça e pobreza … Os valores do mercado substituíram os valores da solidariedade humana … Estamos imersos em um novo terreno baldio … Todos os nossos mitos apontam em duas direções. Ou subimos, em direção ao verdadeiro significado da civilização, ou seguimos para um apocalipse.
Eu acredito que já existem sinais de avançar na direção certa. No Reino Unido, as feridas do Brexit estão começando a se curar, à medida que os “defensores da permanência” [na Comunidade Europeia]” se oferecem para fazer as compras de mercado “aos que “defenderam o abandono” e vice-versa, e as pessoas se juntam ao grupo de WhatsApp de suas ruas para ficar de olho nos vulneráveis e idosos. Embora fisicamente separados, estamos de certa forma mais próximos do que nunca. Para mim, há o prazer inesperado de ter meus dois filhos adultos em casa novamente, cozinhando e assistindo filmes de lixo juntos. Outros estão encontrando o lado positivo com nova liberdade frente ao deslocamento e às pressões diárias, além de um ar mais limpo e prazeres mais simples.
Precisamos de uma nova narrativa de angústia compartilhada para substituir a falida dos “transtornos” individuais. Precisamos de conexão humana e apoio mútuo. Podemos aprender a gerenciar nossos sentimentos de uma maneira que nos ajude a atravessar a crise e que nos dê energia para fazer as mudanças sociais e ambientais necessárias depois. As linhas divisórias usuais desaparecem diante dessa emergência a nível global. Nós realmente estamos nisso juntos.
Referências bibliográficas:
[1] [Crace, J. (2020, March). I’m often paralysed by fear but it’s time to appreciate the small stuff. The Guardian.
[2][Herman, J. (2015). Trauma and recovery: The aftermath of violence—from domestic abuse to political terror. Basic Books.