Reflexões sobre home office e burnout: trabalho remoto e esgotamento profissional

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Nem meio ano se passou e tanta coisa mudou! O trabalho, então, nem se fala. Mais desemprego, mais precarização, em meio à pandemia e governo negacionista, entre tantos outros adjetivos desgovernantes.

Hoje, escolhi refletir sobre o home office, que se instalou em larga escala sem aviso prévio, em março de 2020, como prevenção à pandemia do novo coronavírus. O trabalho remoto alcançou milhões de trabalhadores com carteira assinada como também freelancers, autônomos e servidores públicos.  A mudança do local de trabalho levanta a necessidade de reflexão e ações em favor da pessoa afetada pelas mudanças, seja positiva ou negativamente. Ao entrar na moradia, o trabalho promove alterações no espaço e tempo, por meio da forma remota de exercício, intermediada pela internet. Essa modalidade de trabalho mexe com o espaço privado, a casa, o lar, os moradores de cada residência.

Nesse sentido, é importante falar de esgotamento profissional (síndrome de burnout).

A questão de partida para reflexão é sobre os gatilhos emocionais advindos da prática laboral remunerada exercida de casa. Esta modalidade era esperada e desejada por muitos, mas também foi inesperada e problemática para muitos outros. A modalidade de trabalho remoto expandiu-se no período atual de pandemia, não tem data para terminar ou até se cogita (ou se concretiza) instalar-se, em algumas empresas, em definitivo.

Assim, proponho ao leitor que está em home office, que antes de continuar a leitura, aceite um exercício: divida um papel em duas colunas, de um lado coloque as vantagens e de outro, as desvantagens de trabalhar em casa.

Claro, há uma vantagem imediata em tempos de pandemia, que é a de não se expor na rua, de ficar em isolamento, de modo a ter menos chance de contrair a covid-19. Mas se há de convir, que houve mudança na dinâmica cotidiana pela entrada do trabalho no espaço-tempo doméstico. Afinal, a maior parte das pessoas que está em home office, trabalha de 40 a 44 horas semanais, cinco ou seis dias da semana. É o maior período do tempo em que se está acordado, se dividirmos o dia em três partes: trabalho, sono e afazeres de casa, de lazer e de estudo.

Inicialmente, mais não fosse para se consolar em meio ao medo da doença e do desconhecido, a mídia e muitas pessoas destacaram as vantagens, como não precisar pegar condução, ter tempo de preparar o almoço e comer em casa, ficar mais com os filhos, arrumar a casa e mexer nas acumulações, descartar e doar o que não interessa mais.

O tempo passou e algumas empresas ao perceberem o lucro possível, sem se preocupar com o ônus do trabalhador, fecham ou pretendem fechar escritórios, reduzir permanentemente o número de funcionários em salas pagas pelo empregador, seja empresa privada ou pública. Assim, já se vê que o espaço, os móveis, as máquinas e a conta de luz e internet está ficando para o trabalhador.

Outras empresas, no entanto, não veem a hora de retornar ao espaço de trabalho conjunto, seja por necessidade de equipes no mesmo espaço ou até mesmo para delimitar o controle como já conhecido, com os olhos sobre o funcionário, que cumpre horário no espaço da empresa. Há um imaginário de que só o olho do dono engorda o gado. No entanto, o trabalho remoto exige cumprimento de horário ou de tarefas como antes e, por vezes, mais tarefas e exigências para além das anteriores, como se estar em casa não fosse trabalho igual. É uma lógica semelhante a de que enviar mensagens no smartphone em qualquer horário não fosse invasão na vida privada do trabalhador.

Assim, ao se voltar a atenção às desvantagens emocionais, ou melhor, aos sentimentos e fragilidades gerados nesses primeiros meses de trabalho remoto condicionado ao isolamento na pandemia, percebe-se que a mudança imposta e repentina alcançou as pessoas, de modo geral, despreparadas para trabalhar em casa. Desde o espaço físico até as dificuldades de ficar em casa, de alterar os hábitos de anos de pegar a condução, almoçar fora, conviver com colegas etc… Além disso, a maioria das residências abriga várias pessoas e uma ou mais em trabalho remoto mexe na dinâmica da vida doméstica do conjunto.

As vantagens e desvantagens podem ser muito pessoais, mas mesmo que as vantagens sejam mais relevantes do que as desvantagens, o corpo e os hábitos não se adequam simplesmente porque agora devo me comportar de outro modo. O cotidiano é uma construção e mesmo que não fosse exatamente de seu agrado, era o seu cotidiano.

As especificidades são diversas, mas gostaria de falar um pouco das pressões no trabalho ao levantar o questionamento se os gatilhos que levam ao esgotamento profissional estão em fase de transformação na prática de home office. Não é, ainda, tempo de respostas, outrossim, de iniciar a reflexão e levantar a necessidade de debate, estudo e respeito pelo trabalhador.

Como psicóloga, não me cabe a discussão propriamente sociológica, mas o contexto psicossocial e aquilo que afeta o sujeito. Deste modo, trago a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, pois, enfim, a caracterização de síndrome de burnout foi aprovada para a CID 11, que entrará em vigor em 2022. Como na CID 10 há somente uma alusão a este sofrimento, por meio de “Z 73.0, esgotamento”, vamos nos valer da caracterização aprovada para a CID 11:

Burnout é uma síndrome conceituada como resultante do estresse crônico no local de trabalho que não foi gerenciado com sucesso. É caracterizada por três dimensões:

  • sentimentos de exaustão ou esgotamento de energia,
  • aumento do distanciamento mental do próprio trabalho, ou sentimentos de negativismo ou cinismo relacionados ao próprio trabalho e
  • redução da eficácia profissional.

(Organização Pan-Americana da Saúde, Opas/OMS)

Vale lembrar a ressalva de que síndrome de burnout é restrita “a fenômenos no contexto ocupacional e não deve ser aplicada para descrever experiências em outras áreas da vida”. Esta ressalva vai de encontro com trabalhar em casa, pois neste caso o trabalho entra no espaço privado, as demandas domésticas e a interação com os moradores de uma unidade residencial. O que é chamado de “contexto ocupacional” invadiu o que podemos chamar de contexto pessoal, privado, residencial, socioafetivo. Além disso, é uma experiência recente para a grande maioria e o deslocamento do “local de trabalho” e do “contexto ocupacional” é impactante. Surgem dificuldades de diversos matizes para definir um local de trabalho e juntar em um mesmo espaço físico os cotidianos antes separados.

Levanto, assim, algumas perguntas.

O que está em jogo no controle do tempo? Nos espaços laborais há controle dos corpos pelo tempo de presença, estabelecido no horário de trabalho e nos comportamentos adequados. Uma minoria nesse universo de trabalho, tem alguma flexibilidade e a medida de eficiência se dá em especial pelo cumprimento de projetos e tarefas. Qual é o limite para se exercer o controle de um profissional em seu espaço privado? Teria o trabalhador de ficar exposto aos olhos do empregador as mesmas horas em que se expunha nas condições de trabalho in loco? Quem define essa exposição do privado no laboral e vice-versa? Há um fórum de discussão com liberdade de expressão?

O controle entrou com olhos e dentes no espaço privado. E agora? Os limites precisam ser claros, pois o trabalho que já avançou há anos na privacidade pelo smartphone, entra no espaço-tempo privado, tanto físico como afetivo.

Além de novas regras estarem em construção, os arraigados costumes de patrões não consultarem os trabalhadores para efetivar alterações segue em alta. As relações de trabalho estão involuindo e os direitos minguando a passos largo no Brasil, mas também em muitos outros países. Segue a escalada de precarização das relações de trabalho e o momento é utilizado para ampliar a flexibilização, em nome da pandemia. Esse processo já tem nome e, possivelmente, logo entrará no dicionário: uberização.

O sofrimento no trabalho advém de questões trabalhistas, não se pode esquecer, certamente. Mas em grande medida, o estresse se inicia no excesso de trabalho e exigências, nas relações humanas e tarefas sem sentido, no retrabalho e atividades inúteis. Os modelos de comportamento corporativo exigem por vezes que o indivíduo aja diferentemente de sua orientação pessoal, para não perder a competitividade. Essa condição paradoxal e incoerente produz sofrimento, confusão, dor emocional. Sofrem mais as pessoas atacadas em sua sensibilidade pela dinâmica imposta, muitas vezes sem plena consciência do que as atinge. Nem todos adoecem em condições similares, mas adoecer não é sinal de fraqueza, como muitos pensam. Esta maneira de entender acaba por responsabilizar quem está adoecendo do trabalho, muitas vezes pessoas que se dedicam demais e se frustram mais ainda. Interpretar o sofrimento do outro como defeito é uma atitude de manutenção do status quo e, pior, de culpabilização do outro. É grave, por vezes transforma-se em assédio.

O sofrimento emocional relacionado diretamente ao trabalho é um dos grandes motivos de absenteísmo, mas o adoecimento por esgotamento profissional (síndrome de burnout) não pode ser medido estatisticamente, para a promoção de políticas públicas de enfrentamento, por não estar na CID 10.

A síndrome de burnout é literalmente uma combustão, o esgotamento impede seguir adiante, acabam-se as forças, a pessoa não tem condições nem físicas nem emocionais de se manter produtiva. Por falta de caracterização da síndrome de burnout na CID 10, o afastamento do trabalho se dá por sintomas e caracterizações parciais, como depressão, estresse, ansiedade, pânico e sintomas som. Assim, o tratamento também fica comprometido e mais uma vez ressalto, não se leva muito a sério, inclusive na área de saúde. Este é mais um agravante para quem está sofrendo e se sentindo incapaz.

No que tange o aumento do trabalho remoto, vão-se construir especificidades, mas já é possível entender que há sofrimento envolvido, do medo da doença à invasão do externo ao ambiente doméstico, entre outras especificidades.

O meu recado é que cada um, individualmente e em seus fóruns de discussão se deem conta de como é necessário dialogar sobre as subjetividades emergentes, para que não só o empregador coloque suas necessidades, mas o trabalhador que entra com o local de trabalho precisa promover seu próprio bem-estar e participar da construção de formas interativas de trabalho remoto adequado à produtividade empresarial e adequado ao conjunto que envolve uma moradia.

Por fim, esse tempo de recolhimento, mesmo que imposto, é uma oportunidade de olhar para si, de perceber-se no espelho. Olhar para si mesmo, perceber como estão as extensões corporais, como o modo de vestir, a casa, o consumo. Enfim, é tempo de cuidado de si. A possibilidade está diante de nós, quem investir em si mesmo, provavelmente, sairá mais íntegro deste período. O isolamento acelerou alguns processos e o cotidiano mais lento nos dá essa possibilidade de rever os valores e desejos.

Dessa forma, você poderá perceber melhor como está se sentindo e se é tempo de buscar ajuda para enfrentar as mudanças. Como também, é importante separar, na medida do possível, os sinais advindos da pandemia e os sintomas de esgotamento profissional, pois burnout é o adoecimento no trabalho, do trabalho.

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