Foi com este mesmo título em inglês, “A disease called childhood”, que Allen Frances publicou o emblemático texto no New York Times na data de 31 de março de 2013, no qual denuncia o aumento vertiginoso do diagnóstico de crianças e do uso de estimulantes para o tratamento do transtorno de déficit de atenção. Segundo Frances, em vinte anos esse mercado cresceu de US $ 70 milhões para US$ 7 bilhões. Quatro por cento das crianças usavam drogas prescritas. Neste mesmo período, as taxas de transtorno de déficit de atenção triplicaram, enquanto o transtorno autista e o transtorno bipolar infantil aumentaram 40 vezes. Frances é enfatico ao afirmar que “nossos filhos não ficaram mais doentes de repente, só que os diagnósticos são aplicados a eles de forma mais livre”. A recomendação final é “não devemos medicalizar as dores e sofrimentos da infância normal”. Ora, mas como e por que isso aconteceu? Existem saídas possíveis? Quais?
A infância transformou-se em um tempo da vida a ser gerido sob inúmeras expectativas e demandas. O discurso sobre a infância tem sido cada vez mais orientado por práticas supostamente preventivas que visam minimizar ou até mesmo eliminar os riscos à saúde mental. Segundo Sassolas (2012), a nova cultura psiquiátrica privilegia os atos técnicos, assim como a avaliação e a previsibilidade, apoiando-se em
marcadores supostamente objetivos. Estes dispositivos associam práticas pedagógicas que legitimam uma intervenção médica na esfera privada, especialmente nas relações familiares e no cuidado com as crianças.
Detectar precocemente vestígios de transtornos mentais na infância transformou-se em uma verdadeira obsessão, em torno da qual se articula o DSM-V. Podemos pensar que os impulsos agressivos que eram tolerados anteriormente, bem como algumas condutas “indesejáveis” que faziam parte do universo infantil, ingressaram no universo psiquiátrico, passando a representar indicadores de risco para doenças mentais graves na vida adulta. Crianças que poderiam ser descritas como peraltas, mal-educadas, indisciplinadas ou desmotivadas começaram a ser tomadas como acometidas por disfunções nos circuitos cerebrais. Irrompeu o ideal de uma “criança perfeita” associado diretamente à saúde mental, cujas imperfeições devem ser precocemente mapeadas, localizadas e evitadas tanto quanto possível (Lima, 2016).
Como exemplo da infância como doença, temos muitas análises críticas sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Ao realizar um estudo aprofundado sobre o TDAH, Lima (2005) indica que a tentativa de descrever como condição médica diversas condutas infantis tratadas como “maus comportamentos” não é recente, datando dos estudos pioneiros do pediatra inglês George Frederic Still em 1902. Entre 1917 e 1918 as consequências da pandemia de encefalite ajudaram a reforçar a hipótese de uma causa biológica para distúrbios de conduta infantis. Durante esse período e nos dez anos que se seguiram, as crianças mostravam como sequela uma marcante hiperatividade, impulsividade e comportamento perturbador, cujo quadro foi denominado por Holman em 1922 de “desordem pós-encefalítica do comportamento”. Situações como estas contribuíram para o estabelecimento da categoria “lesão cerebral mínima”, expressão consagrada por Strauss e Lehtinen em 1947. As crianças apresentavam comportamentos semelhantes aos das vítimas de encefalite, porém não haviam sido atingidas por esta doença. Tais crianças passaram a ser consideradas como portadoras de um dano na estrutura cerebral presumido. Este termo pretendia explicar não somente os transtornos de comportamento como também os de linguagem e aprendizado (Lima, 2005). Ou seja, historicamente, há uma tendência à formulação de diagnósticos excessivamente abrangentes que sequestram a diversidade infantil.
Com a generalização de hipóteses localizacionistas cerebrais e a persistência em identificar lesões para justificar os distúrbios no comportamento infantis, propôs-se a denominação “Disfunção Cerebral Mínima” (DCM) em 1966. O surgimento e a aceitação rápida desse diagnóstico podem ser explicados pelo contexto histórico e social dos EUA na década de 60, quando houve queda da prosperidade econômica experimentada no pós-guerra e a estabilidade da família americana começaram a dar sinais de crise (Lima, 2005).
Para diferenciar um indivíduo com e sem o transtorno de TDAH, o discurso psiquiátrico faz comparações. As performances produtivas, a adaptação social às exigências do entorno e a capacidade de autocontrole são confrontadas. Mas como definir cientificamente essa comparação? A suspeita em torno do diagnóstico do TDAH é também marcada pelo dilema metodológico da objetividade científica. Embora as imagens cerebrais tentem dizer o contrário, a linha que separa o indivíduo TDAH do sujeito normal é tão frágil e tênue que, na clínica e na esfera da vida prática, longe do ambiente laboratorial, ela não pode ser visualizada. Apesar dos avanços dos métodos de visualização cerebral, no dia-a-dia da prática diagnóstica eles não revelam muita coisa. Até o momento, nenhum teste ou exame específico e preciso para a “identificação” do TDAH foi definido. Seu diagnóstico continua sendo feito através de um processo misto, que inclui testes psicológicos, história clínica, análise do desempenho escolar e entrevistas com pais e professores (Caliman, 2010; 2008).
Como pensar saídas para esse emaranhado que mistura medicalização, psiquiatrização e técnicas avaliativas? Uma proposta “desmedicalizante” visa apostar em uma clínica e em uma escuta que opere no sentido de implicar o sujeito no sintoma do qual se queixa. Com base na psicanálise, Tenório (2000) destaca a importância de desmedicalizar para subjetivar, ou seja, desmedicalizar a demanda para subjetivar a queixa. A psicanálise possui arcabouço teórico-clínico que valoriza principalmente o conteúdo do sintoma na medida em que diz respeito à experiência do sujeito, ou seja, o sintoma tem um sentido e uma significação. A partir desse pressuposto, o propósito da psicanálise seria, num primeiro momento, desvendar o sentido do sintoma (Freud, 1915/2015).
A clínica psicanalítica, desde a descoberta do inconsciente por Freud, comporta especificidades essenciais para fazer frente ao enfoque medicalizante, sobretudo, no que tange ao sintoma infantil. A psicanálise atribui, a ele, um sentido intimamente articulado à existência particular do sujeito. O sintoma é o porta-voz da verdade do sujeito, portanto, corresponde à articulação estrutural entre o sintoma infantil e o discurso dos pais, assim como a historicização do sintoma.
É essencial não restringir a sintomatologia apresentada
pela criança à perspectiva médica que se apoia exclusivamente na otimização de habilidades hipervalorizadas por nosso código cultural. É necessário que a crescente medicalização da infância encontre como alternativa a escuta psicanalítica, através da qual o sintoma pode liberar o conflito subjetivo através da palavra, recuperando, assim, a diversidade infantil.
Referências
CALIMAN, L. V. O TDAH: entre as funções, disfunções e otimização da atenção. Psicologia em estudo, v. 13, n. 3, p. 559-566, 2008.
CALIMAN, L. V. Notas sobre a história oficial do transtorno do déficit de atenção/hiperatividade TDAH. Psicologia: ciência e profissão, v. 30, n. 1, p. 46-61, 2010.
FRANCES, A. (2013, 31 de março). A disease called ‘childhood’. New York Post. Recuperado em 01 set. 2020: https://nypost.com/2013/03/31/a-disease-called-childhood/
FREUD, S. (2015). As pulsões e seus destinos. (P. T. Tavares, Trad.). Belo Horizonte: Autêntica. (Originalmente publicado em 1915)
LIMA, Rossano Cabral. Somos todos desatentos?: o TDA/H e a construção das bioidentidades. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, 2005.
LIMA, Rossano Cabral. Psiquiatria infantil, medicalização e a Síndrome da Criança
Normal. Conversações em Psicologia e Educação, CRP-RJ, v.1, 2016.
SASSOLAS, M. Transmission ou acculturation? L´information Psychiatrique, v. 88,
n. 7, p. 521-526, 2012.
TENÓRIO, Fernando. Desmedicalizar e subjetivar: A especificidade da clínica da
recepção. Cadernos Ipub, v. 6, n. 17, p. 79-91, 2000.