Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 8: Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Quatro)

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Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute como as pílulas para a depressão não funcionam nas crianças e aumentam o risco de suicídio. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

 

As pílulas para depressão não funcionam em crianças e dobram o risco de suicídio delas

Um dos manuais didáticos mencionou uma meta-análise de 34 ensaios randomizados de pílulas para depressão administradas em crianças e adolescentes e afirmou que a fluoxetina foi a única droga que apresentou um efeito significativo e também a maior tolerabilidade [19:215].

Tais alegações pertencem à seção de ficção científica. É praticamente impossível para uma droga ser tanto mais eficaz quanto menos prejudicial do que drogas semelhantes da mesma classe. Embora este manual didático tenha referências, não havia nenhuma para essa alegação implausível, mas acredito que a fonte só possa ser a meta-análise em rede de 2016 de Andrea Cipriani e colegas [297].

Para aumentar o poder das análises, os autores incluíram tanto ensaios controlados por placebo quanto comparações diretas, mas não foram suficientemente cuidadosos. Eles usaram principalmente relatórios de ensaios publicados (apenas 7 dos 34 ensaios incluídos não foram publicados), que são substancialmente tendenciosos [2,7,8].

Como exemplo, o estatístico Hans Melander e colegas, trabalhando para a agência de medicamentos da Suécia, mostraram que os ensaios controlados por placebo de ISRSs eram mais frequentemente publicados quando os resultados eram estatisticamente significativos, e que muitas publicações ignoravam os resultados das análises por intenção de tratar e relatavam as análises por protocolo mais favoráveis, onde apenas os pacientes que não abandonam o estudo são retidos na análise [314]. Isso criou uma concepção errônea sobre quão eficazes são as drogas [6:137]. Além disso, faltavam referências cruzadas para várias publicações do mesmo ensaio e, às vezes, não tinham nomes de autores em comum e, portanto, pareciam ensaios separados.

Como outro exemplo, o psiquiatra Erick Turner, que trabalhou para a FDA, e colegas notaram que 31% dos ensaios realizados como parte de um pedido de licença para ISRSs e drogas relacionadas, vistos pela FDA como negativos ou questionáveis, foram publicados como positivos, e o tamanho do efeito nos artigos publicados foi 32% maior do que nas revisões da FDA de todos os ensaios [315].

Fluoxetina é insegura e ineficaz, e os ensaios são manipulados

A fluoxetina foi aprovada nos Estados Unidos em 2002 para depressão em crianças e adolescentes com base em dois ensaios controlados por placebo, X065 e HCJE, com 96 e 219 participantes, respectivamente, embora o revisor estatístico da FDA tenha observado que não houve um benefício estatisticamente significativo para a droga no desfecho primário em nenhum dos ensaios [316]. Como ambos os ensaios pareciam ter sido relatados incorretamente na literatura, David Healy e eu decidimos restaurá-los de acordo com a iniciativa RIAT (Restoring Invisible and Abandoned Trials, que em tradução livre para o português seria Restaurando Ensaios Invisíveis e Abandonados)[317].

Revisamos as 3557 páginas de relatórios de estudos clínicos que a Eli Lilly havia enviado aos reguladores e encontramos sérias manipulações com os dados, tanto nos relatórios quanto nas publicações [279]. Informações essenciais estavam faltando; havia informações contraditórias, inclusive relacionadas a tentativas de suicídio; havia inconsistências numéricas inexplicadas, que incluíam uma impossibilidade matemática; havia exclusões inexplicadas de pacientes e dados, e análises eram chamadas de intenção de tratar mesmo que alguns pacientes com dados fossem excluídos; novos desfechos surgiram que não estavam previamente especificados no protocolo do ensaio; escalas de avaliação e análises foram alteradas; os protocolos do ensaio foram violados de outras maneiras; e resultados que eram inconsistentes com a conclusão de que a fluoxetina é segura e eficaz foram ignorados ou explicados de maneira perturbadora.

Os desfechos de eficácia estavam fortemente enviesados a favor da fluoxetina por meio de descontinuações diferenciais e dados ausentes no final do ensaio. No ensaio X065, 6 pacientes haviam interrompido o uso de fluoxetina e 12 de placebo após quatro semanas; no ensaio HCJE, nenhum havia abandonado o uso de fluoxetina versus 10 de placebo após duas semanas. A maioria das análises usava o método de última observação carregada para a frente (Last Observation Carried Forward – LOCF), mas a Lilly não alertou seus leitores sobre o grande viés que isso causava: mais pacientes usando o placebo do que a fluoxetina tinham pontuações elevadas de depressão carregadas para a frente.

O revisor médico da FDA observou que consideravelmente mais pacientes usando placebo do que a fluoxetina abandonaram o estudo e que o padrão era “bastante incomum” no ensaio HCJE porque havia mais abandonos no placebo do que na fluoxetina devido a eventos adversos (9 vs 5), decisão do paciente (11 vs 3) e perda de acompanhamento (7 vs 1).280 Em contraste, o ensaio X065 não teve abandonos devido a eventos adversos em placebo versus 5 em fluoxetina, e não houve perda de acompanhamento.

Como nenhum ajuste estatístico pode substituir dados ausentes de forma confiável, nos concentramos em pacientes com sintomas mínimos e aqueles que se recuperaram após oito semanas no ensaio X065 de acordo com os critérios próprios da Lilly. Não encontramos diferenças em relação ao placebo.

No ensaio HCJE, a análise da Lilly do Índice de Eficácia das Impressões Clínicas Globais, que compara os benefícios e os danos para cada paciente, também foi enganosa. Os psiquiatras usaram um índice com oito categorias para “avaliar o efeito terapêutico global em conjunto com os efeitos colaterais para cada paciente”. Eles avaliaram, para cada paciente, se a melhora na depressão superava quaisquer danos da droga em termos de interferência nas atividades diárias. Esse processo subjetivo não foi definido. A Lilly afirmou que os resultados indicavam que os efeitos terapêuticos superavam quaisquer danos porque 58% versus 40% tiveram uma pontuação favorável. No entanto, quando combinamos os dados das oito categorias subtraindo os resultados ruins dos bons resultados, o que era mais apropriado, descobrimos que 59% versus 55% tiveram um bom resultado (P = 0,58).

Apesar de todos os enviesamentos e manipulações que identificamos, os efeitos relatados pela Lilly não eram clinicamente relevantes. O efeito na Escala de Avaliação da Depressão Infantil – Revisada, que é avaliada pelos psiquiatras ou seus assistentes de pesquisa, em relação aos valores basais foi de apenas 4% em ambos os ensaios para casos observados e de 16% e 9%, respectivamente, se o método LOCF for usado. Em comparação, o efeito menos reconhecível na escala adulta equivalente, a Escala de Avaliação de Depressão de Hamilton,267 corresponde a 28% de uma mediana basal de 25,4 em 35 ensaios controlados por placebo [269].

É mais importante o que os pacientes pensam sobre o efeito do que o que os psiquiatras e a Eli Lilly pensam, e as avaliações dos pacientes não atestaram a fluoxetina como eficaz. O Inventário de Depressão Infantil (Children’s Depression Inventory – CDI) foi usado para aqueles abaixo de 13 anos de idade e o Inventário de Depressão de Beck (Beck Depression Inventory – BDI) foi usado para aqueles com 13 anos ou mais. No ensaio X065, os dados foram agrupados na publicação e P = 0,58. No ensaio HCJE, as crianças até preferiram o placebo: “Os pacientes tratados com placebo apresentaram maiores reduções numéricas na mudança em relação a linha de base para os escores totais de CDI e BDI em comparação com os pacientes tratados com fluoxetina”.

Os eventos suicidas estavam ausentes, tanto nos relatórios do estudo quanto nas publicações. O relatório publicado para o ensaio X065 não mencionou que dois pacientes usando fluoxetina tentaram suicídio, e os eventos adversos em quatro pacientes adicionais que interromperam a fluoxetina foram chamados de “mínimos”, mesmo que três deles tenham desenvolvido sintomas de mania e o quarto tenha tido uma erupção cutânea grave. O relatório interno da Lilly mostrou que 32 pacientes em uso de fluoxetina versus 18 em uso de placebo experimentaram pelo menos um evento adverso (P = 0,008), 19 versus 6 experimentaram agitação (P = 0,005), 9 versus 1 tiveram pesadelos (P = 0,02), e 7 versus 4 se sentiram tensos por dentro. Estes são danos graves. Agitação, incluindo a sensação de tensão interna, e pesadelos aumentam o risco de suicídio e violência[2,7].

Uma publicação subsequente feita pela equipe da Lilly também foi pouco confiável [318]. Ela abordava a segurança no ensaio HCJE e apresentava números diferentes de eventos suicidas do que aqueles no relatório de estudo enviado aos reguladores de medicamentos [279,318].

Para o ensaio HCJE, apenas os resultados de 9 semanas foram totalmente publicados, enquanto os resultados menos positivos de 19 semanas não foram. A Lilly falsamente concluiu que “a fluoxetina de 20 a 60 mg/dia é segura” e também que “a escalada de doses pode beneficiar alguns pacientes”, mesmo que tenham relatado apenas quatro resultados para os quais não houve diferenças significativas.

Uma meta-análise de 2007 da Lilly sobre eventos violentos, que incluiu todos os estudos controlados por placebo de fluoxetina realizados em crianças e adolescentes, também foi pouco confiável [319]. É totalmente implausível que eventos relacionados à agressão ou hostilidade tenham sido experimentados por menos crianças e adolescentes tratados com fluoxetina, 2,1%, do que por aqueles tratados com placebo, 3,1%.

Os resultados da Lilly contradiziam nossas descobertas e também a avaliação da FDA sobre a aplicação da Lilly. A FDA criou uma tabela de interrupções devido a eventos adversos em X065, HCJE e HCJW (um ensaio de transtorno obsessivo-compulsivo comparando fluoxetina 10-60 mg diários com placebo por 13 semanas em 71 versus 32 pacientes).280 Houve 14 interrupções versus 3 (P = 0,02, nosso cálculo) entre os 228 versus 190 pacientes por motivos relacionados a suicídio e violência (tentativa de suicídio, euforia, reação maníaca, agitação, hipercinesia, nervosismo, transtorno de personalidade, hostilidade e depressão). Nestes ensaios, houve três tentativas de suicídio com fluoxetina e uma com placebo, e outro paciente em fluoxetina foi hospitalizado por causa de tendências suicidas. Seis pacientes (2,6%) em uso de fluoxetina desenvolveram mania ou hipomania versus nenhum em uso de placebo (P = 0,03).280

Em nossa restauração dos ensaios X065 e HCJE, descobrimos que os precursores de tendências suicidas ou violência ocorriam mais frequentemente com a fluoxetina do que com o placebo. Para o ensaio HCJE, o número necessário para dano foi apenas 6 para eventos do sistema nervoso, 7 para danos moderados ou graves e 10 para danos graves. A fluoxetina reduziu altura e peso ao longo de 19 semanas em 1,0 cm e 1,1 kg, respectivamente, e prolongou o intervalo QT.

Lilly afirmou em seu relatório de estudo para o ensaio HCJE que “a depressão é uma doença orgânica que responde prontamente ao tratamento” e que “a introdução de tratamentos antidepressivos eficazes mais cedo na progressão do estado da doença tem o potencial de tratar e controlar efetivamente a doença, bem como melhorar o funcionamento diário e a qualidade de vida geral.”[279] Não há evidências de que qualquer uma dessas afirmações seja verdadeira [7,8] e parece que as pílulas para depressão pioram a qualidade de vida [8].(Veja abaixo)

Se extrapolado dos dados do estudo, o dano que a fluoxetina causa no crescimento em crianças corresponde a uma perda anual de altura de 2,7 cm e uma perda no aumento de peso de 3,0 kg [279]. A FDA solicitou que a Lilly realizasse um estudo de um ano sobre o efeito da fluoxetina no crescimento, mas a empresa se recusou a fazê-lo [280]. Não sabemos se a fluoxetina também tem efeitos deletérios no cérebro em desenvolvimento, mas dado o que sabemos sobre substâncias psicoativas, incluindo o álcool, isso é provável.

Com base em nossa reanálise dos dois ensaios fundamentais, concluímos que a fluoxetina é insegura e ineficaz [279]. É uma droga horrível.

Um manual descreveu as seguintes prioridades de tratamento para crianças com transtornos afetivos: 1) psicoeducação e apoio; 2) terapia cognitivo-comportamental; 3) medicamentos [19:214]. No entanto, também afirmou que a terapia de primeira linha em casos de depressão grave é uma combinação de fluoxetina e terapia cognitivo-comportamental e que, para pensamentos suicidas pronunciados, a internação hospitalar deve ser considerada devido ao risco de piorar os pensamentos e planos suicidas e à diminuição da inibição psicomotora causada pelo aumento da dose da droga.

É ilógico que um aumento na dose seja recomendado em crianças que estão com tendências suicidas quando os autores reconhecem que isso aumenta o risco de suicídio e quando sabemos que as pílulas nem sequer têm um efeito benéfico sobre a depressão.

Isso é uma má prática médica, mas a falta de lógica é ubíqua. Na Nova Zelândia [8], o regulador de medicamentos não aprovou o uso de fluoxetina em pessoas com menos de 18 anos de idade. No entanto, isso não impediu o uso de pílulas para depressão, que aumentou 78% entre 2008 e 2016 [320], e um relatório da UNICEF de 2017 mostrou que a Nova Zelândia tinha a maior taxa de suicídio do mundo entre adolescentes de 15 a 19 anos, duas vezes maior do que na Suécia e quatro vezes maior do que na Dinamarca [321].

Visitei John Crawshaw, Diretor de Saúde Mental, Psiquiatra-Chefe e Principal Consultor do Ministro da Saúde da Nova Zelândia, em fevereiro de 2018, e pedi a ele para tornar ilegal o uso dessas drogas em crianças para prevenir alguns dos muitos suicídios [8]. Ele respondeu que algumas crianças estavam tão gravemente deprimidas que as pílulas para depressão deveriam ser tentadas. Quando perguntei qual era o argumento para empurrar algumas das crianças mais deprimidas para o suicídio com pílulas que não funcionavam para sua depressão, Crawshaw ficou desconfortável, e a reunião terminou logo depois.

“Empurrando crianças para o suicídio com pílulas da felicidade” é o título de um dos capítulos do meu livro de 2013 sobre crime organizado na indústria farmacêutica [6]. Os médicos não podem fazer pior do que isso: dizer às crianças e aos seus pais que as pílulas da felicidade são úteis quando não funcionam e empurrar algumas crianças para o suicídio.

Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.


Tradução de Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).