Como a Noruega está oferecendo tratamento sem drogas a pessoas com psicose

Na Noruega, uma abordagem radical é agora oferecida através do sistema nacional de saúde para pacientes que querem viver sem drogas psiquiátricas

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Matéria publicada pela BBC NEWS, em 19 de fevereiro, feita pelas jornalistas Lucy Proctor e Linda Pressly. Dada a importância que o máximo possível de pessoas ao conteúdo da matéria, o MIB apresenta a matéria quase que integralmente traduzida. Quem quiser ter acesso à matéria original e na íntegra, basta clicar aqui.

É da maior importância que aqui no Brasil seja fortalecido o debate sobre o direito de as pessoas em tratamento psiquiátrico terem assistência sem o uso involuntário dos medicamentos psiquiátricos. O MIB já publicou uma matéria sobre essa revolucionária iniciativa da sociedade norueguesa. Assim como publicou uma matéria mostrando que mesmo em um hospital psiquiátrico particular é possível tratamento não involuntário e livre de drogas psiquiátricas.

A realidade é que a maioria das pessoas com psicose toma drogas poderosas para manter as ilusões e alucinações à distância. Na Noruega, uma abordagem radical é agora oferecida através do sistema nacional de saúde para pacientes que querem viver sem drogas.

Malin tinha 21 anos quando a sua vida começou a desfazer-se. Ela tinha lutado contra uma depressão severa e baixa autoestima desde a adolescência. Então uma voz dentro da sua cabeça começou a dizer-lhe que ela era gorda e sem valor – e que deveria suicidar-se. “Fiquei muito zangada. Isolei-me, de certa forma, por causa de ter muito poder. Eventualmente também comecei a ver coisas, como que tentáculos saindo das paredes“, diz ela.

Malin deixou a sua pequena cidade natal próxima dos fiordes do norte da Noruega e partiu para a universidade. Mas não demorou muito a ter uma ruptura completa que a deixou incapaz de sair da cama. A sua família veio buscá-la e logo ela foi internada em uma unidade psiquiátrica onde permaneceu durante um ano. Foi a primeira das várias longas estadias em enfermarias de hospitais psiquiátricos, onde a poderosa medicação antipsicótica era o único tratamento disponível.

Eu estava tão cheia de drogas, que a minha mente era apenas um borrão. Simplesmente ficava ali passivamente sentada a ver a minha vida passar, sem qualquer ligação com as minhas emoções ou sentimentos. E foi sempre a mesma coisa. Procurava ajuda e o que eles me podiam dar era medicação. E na realidade nada melhorava.” (…)

(..) Na Noruega, as preocupações sobre o benefício integral destes medicamentos são agravadas por um problema de longa data com o tratamento forçado, que é mais comum aqui do que em muitos outros países, de acordo com o número limitado de comparações internacionais que existem. O Comité Contra a Tortura da ONU destacou o uso da Noruega do isolamento forçado em instalações de saúde mental como algo que tem de mudar.

Tal como Malin, Mette Ellingsdalen recebeu medicamentos antipsicóticos durante um período de 13 anos, quando sofreu depressões graves – como resultado do transtorno bipolar – e era incapaz de cuidar de si própria (…)

Tive uma grande crise que me introduziu no sistema, coisas da minha infância com as quais me debati fortemente. Os medicamentos entorpeceram alguns dos sintomas, mas também entorpeceram o meu próprio poder e a minha própria capacidade de lidar comigo mesma. De alguma forma perdi a minha própria história“, diz ela.

Finalmente, após cinco anos de tentativas, mas não conseguindo viver sem medicação, conseguiu afilar com sucesso os seus medicamentos e em 2005 juntou-se ao movimento para mudar o sistema de saúde mental da Noruega e é agora presidente do grupo de usuários da psiquiatria, o We Shall Overcome [Nós Devemos Superar].

(…) Anos de trabalho de defesa por pessoas como Mette valeram a pena em 2016, quando o ministro da saúde regional Bent Hoie ordenou que as autoridades de saúde regionais passassem a oferecer enfermarias de tratamento sem medicamentos. Embora o tratamento sem medicamentos esteja disponível em alguns outros países, a Noruega tornou-se o primeiro país do mundo a incorporá-lo como uma opção no sistema de saúde mental estatal.

Na época, o Dr. Magnus Hald era o diretor de saúde mental e abuso de substâncias no Hospital Universitário do Norte da Noruega, sediado em Tromso, a porta de entrada da Noruega para o Ártico. Ele tinha trabalhado durante anos em unidades onde muitas drogas eram usadas e estava ansioso por explorar um tratamento alternativo – por isso assumiu a tarefa de dirigir o novo departamento do hospital sem drogas.

Para mim, o mais importante é que as pessoas possam experimentar diferentes tipos de possibilidades“, diz ele. “É preciso dizer a verdade ao paciente sobre como funciona a medicação e o que se sabe sobre ela. E parece que, em cooperação com a indústria farmacêutica, eles dizem às pessoas coisas que não estão completamente corretas sobre como os medicamentos funcionam e quais são os riscos. Por exemplo, existe um mito de que existe algum tipo de desequilíbrio químico no cérebro de pessoas com problemas mentais graves [e] na realidade não há nenhuma investigação que realmente apoie isto“.

Muitos dos pacientes da unidade de Tromso estão afilando os medicamentos, o que leva tempo e cuidados. “Para a maioria dos pacientes que temos, funciona”, diz Hald. “Alguns pacientes nunca mais voltarão a usar qualquer tipo de drogas. E alguns pacientes poderão voltar a usar drogas após algum tempo e alguns pacientes poderão apenas reduzir as suas doses.

Malin, agora com 34 anos, é um paciente da unidade. Ela passa várias semanas de uma só vez em Tromso e depois vai para casa durante meses no intervalo, de volta para o seu cão, Jarek. Não é fácil – ela vive sozinha e tem pouco apoio mental nas proximidades, por isso o seu progresso é lento – e a voz que ela ouve não desapareceu completamente. Malin agora usa principalmente medicação para a tranquilizar durante a noite. Ela está a passar por terapia intensiva quando está na unidade, uma opção que diz nunca lhe ter sido oferecida enquanto tomava medicação. A arte tem sido central para a sua recuperação.

(…), mas o tratamento sem medicamentos é controverso na Noruega. Para muitos pacientes, os antipsicóticos são vitais. Claudia (não o seu verdadeiro nome) agora na casa dos 20 anos, tornou-se pela primeira vez suicida e delirante na adolescência. Parte da sua doença era acreditar que os antipsicóticos que lhe eram oferecidos estavam envenenados. Assim, foi internada em um hospital e forçada a tomá-los – e melhorou. “Mas depois de um período de stress, mais uma vez, fiquei realmente doente, e tive de recomeçar. E agora, de certa forma, cheguei à conclusão de que preciso de medicação para pelo menos manter a minha cabeça acima da água.Não gosto muito da palavra ‘normal’, mas sinto-me muito bem quando estou a tomar medicação. Sinto que consigo dar conta dos meus estudos, e sair com amigos e coisas do gênero, enquanto quando estou fora deles, a minha funcionalidade está apenas em declínio e sinto-me mais estressada e caótica e estranha“.

Os críticos dizem que o movimento sem medicamentos é impulsionado mais pela ideologia do que pela evidência. O Dr. Jan Ivar Rossberg, um psiquiatra que vive e trabalha em Oslo, compara-o às experiências fracassadas nas décadas de 1960 e 70, quando era dado rédea solta aos pacientes nas comunidades terapêuticas, encorajados a tomar LSD e a regressarem à infância. Esta metodologia foi denominada ” anti-psquiatria”.

A história tem-nos mostrado que esta abordagem não funciona, por isso deixamos de a utilizar. Não temos abordagens de tratamento comprovadamente eficazes sem medicação“, diz ele. Ele aponta para provas que mostram os melhores resultados para as pessoas com psicose, envolvendo medicamentos durante a fase aguda inicial, quando os delírios e alucinações são mais fortes, e permanecer com os medicamentos durante cerca de dois anos antes de tentar reduzir a dose para uma dose mais baixa.

Magnus Hald não está convencido disso. Ele está prestes a iniciar um projeto de investigação para rastrear os pacientes nos anos após terem estado na unidade sem medicamentos em Tromso. Não tem havido suicídios entre os seus pacientes livres de medicamentos, mas até agora a abordagem carece de uma forte base de evidências.

A ideia de medicina baseada em evidências é difícil dentro da saúde mental como um todo, embora seja obviamente um objetivo que devemos ter“, diz ele. “Ao mesmo tempo, sabemos que os diagnósticos em psiquiatria são apenas um sistema de classificação. Mesmo que se dê a uma pessoa um diagnóstico de esquizofrenia, não se vê qualquer disfunção no cérebro para além do que se experimenta ao iniciar uma conversa com a pessoa. Não se pode ver nada na tomografia ou nas imagens de ressonância magnética“.

Há também controvérsia sobre como o programa sem medicamentos poderia desenvolver-se no futuro.

Até agora, os pacientes na fase aguda da psicose não podem ser encaminhados para unidades sem medicamentos. Os grupos de usuários esperam mudar isso, argumentando que esta fase passa muitas vezes por si só se as pessoas puderem estar num local seguro e de apoio enquanto resistem à tempestade. Mas o Dr. Tor Larsen, especialista em psicose aguda, preocupa-se com esta ideia. Ele assinala que a maioria dos pacientes com psicose não tratada não se apercebe que está doente, pelo que não concordará em ser tratada com ou sem drogas – e as unidades sem drogas funcionam numa base voluntária. “É quase que por definição se ter alucinações ou delírios em que não se pensa estar doente, se se está em contato com Deus ou se se pensa ser o renascido Napoleão”, diz ele. “Assim, nos casos em que as pessoas têm psicose devastadora, pode ser importante dar-lhes tratamento mesmo numa base involuntária“.

(…), Hakon Rian Ueland, 54 anos, um dos militantes que ajudou a trazer tratamento sem medicamentos para a Noruega, acredita que esta conversa sobre o perigo esconde uma agenda para proteger a sociedade do comportamento muitas vezes desafiador das pessoas que passam por psicose. “Estão apresentando uma agenda para sedar as pessoas”, diz ele, acrescentando que os sintomas que alarmam as pessoas neurotípicas podem ser importantes para a pessoa que os experimenta. “Quando se passa por psicose, pode ser muito dramático“.

(…), Psiquiatras e doentes de todo o mundo estão observando o que acontece na Noruega, onde o governo tomou medidas decisivas para tentar melhorar a vida das pessoas psicóticas, dando-lhes mais poder sobre as suas vidas. A nível mundial, há uma reavaliação da forma como as pessoas com doenças mentais são tratadas e uma vontade de reduzir a coerção.

O tratamento sem medicamentos pode ser apenas mais uma moda terapêutica – ou pode ter o poder de mudar de vez a psiquiatria.

Matéria na íntegra →

[trad. e edição por Fernando Freitas]