A ‘loucuralização’ do Fascismo é a Absolvição da Política Genocida

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Nos últimos meses alguns assuntos ligados à saúde mental têm mobilizado as pautas jornalísticas e as conversas do dia-a-dia. Porém, desde a publicação do chamado “revogaço” em dezembro de 2020, nenhum tema tem me causado mais incômodo do que a insistente ideia de um processo de interdição do presidente da república.

Alguns partidos da chamada “esquerda” têm tentado essa estratégia e não é de agora, no entanto, mais recentemente deu-se entrada em um processo cujo mérito é justamente a interdição do presidente. Cresce o número de movimentos sociais e entidades coletivas apoiando os argumentos e o discurso ganha força na mídia, ainda mais após a entrevista de um reconhecido psiquiatra forense afirmando um possível diagnóstico de personalidade de Bolsonaro.

Minha análise sobre esta situação é que, para esses setores, parece que não houve nenhum crime (de improbidade, corrupção, ligação com milícias, genocídio etc.) que este homem tenha cometido que seja mais passível de julgamento ou mais grave do que ser supostamente um “louco”. Portanto, só por este motivo conseguiríamos retirar o presidente de seu cargo e ficaríamos livres da tragédia que vive o país.

Esse debate facilmente caiu na conversa do povo e não é incomum as pessoas se referirem ao presidente como um “louco genocida”, “insano” ou qualquer outro adjetivo que possa caracterizá-lo como alguém que está em sofrimento psíquico. Porque pensando bem, que tipo de ser humano seria capaz de deixar mais de 300 mil pessoas morrerem, sem se horrorizar ou se sensibilizar com essas mortes? Só alguém que é “louco”, responderão.

Esta resposta – seja de especialistas em saúde mental ou não – ocorre porque somos socializadas e ensinadas a pensar que a maldade e a falta de sensibilidade são coisas de pessoas que devem ter algum tipo de patologia. E, assim, apoiadas nos ombros dos preconceitos historicamente construídos sobre as pessoas em sofrimento psíquico, esse discurso ganha força. Inclusive, ganha materialidade nas vozes de especialistas da área.

Não é incomum encontrar na internet postagens de pessoas explicando passo a passo as razões de um diagnóstico psicopatológico para o presidente. Diagnósticos estes, que, por sua vez, apoiam-se em um modelo retrógrado, eugênico e que listam uma série de comportamentos considerados inadequados e os denominam “sintomas”, que postos lado a lado formam uma “doença”. São considerados inadequados comportamentos que quebram com a ideologia hegemônica, que escancaram as violências cometidas pelo Estado a serviço da burguesia branca para manutenção dos status quo. A burguesia é violenta e mata trabalhadoras e trabalhadores que atrapalham a manutenção de seu poder e lucro.

As raízes sociais que fazem o Sr. Jair Bolsonaro agir como um genocida, portanto, são as mesmas que acabaram com as políticas assistenciais, são as mesmas que tentam destruir a nossa política de Saúde Mental. Essa é a mesma lógica das pessoas que chamam o genocida da presidência de “louco”, mas denominam de doutores os profissionais da área da saúde adeptos de formas de atuação pautadas em políticas historicamente genocidas e que apoiam as práticas de tortura e modelos manicomiais. O que no Brasil foi expresso na política desumanizadora e violenta dos hospitais psiquiátricos, denunciada no “Holocausto Brasileiro” (Arbex, 2019).

Como escreveu Pinheiro (2020) a patologização do fascismo é um terraplanismo dos setores de esquerda, pois é preciso afirmar que “os delírios de Bolsonaro não são fantasias de um surto, mas reprodução de uma ideologia violenta, sua incompetência e apelo ao senso-comum não tem nada de doentio, pois é tão somente a premiação da ignorância e da lógica formal-abstrata promovida pela decadência ideológica da hegemonia que se apega a qualquer forma tosca para a manutenção do poder e do lucro.”

Usar de instrumento de interdição psiquiátrica, para combater um projeto político em curso, é escoar pelo ralo as pautas da Luta Antimanicomial. É se negar ao efetivo e necessário combate político à ideologia burguesa, é patologizar e, portanto, desresponsabilizar o fascista por seus atos articulados para aumentar a superexploração da classe trabalhadora brasileira. É absolvê-lo das mortes – pela COVID-19 ou pela bala da PM – de grande parte de seu “exército industrial de reserva” e a “massa marginal” que, segundo Lélia Gonzalez (1979/2020), são as subdivisões da classe trabalhadora, composta, majoritariamente, por mulheres negras.

Por fim, patologizar o fascismo é novamente abandonar as lutas fundamentais para a manutenção de nossa existência! É optar por não enfrentar política e ideologicamente (repito), os problemas estruturais de nossa sociedade, é abrir mão da possibilidade da construção de uma nova sociedade com distribuição de renda, de terra, moradia, educação… que não nos enlouqueça!

Referências Bibliográficas

ARBEX, Daniela (2019). Holocausto Brasileiro: Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil. Intrínseca.

GONZÁLEZ, Lélia. (1979/2020). Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos lingüísticos e políticos da exploração da mulher[1]. In: Por um Feminismo Afro Latino Americano. Org. Rios, F. & Lima, M. Zahar.

PINHEIRO, Wescley (2020). A Loucura de Jair Bolsonaro. In: Mad In Brasil. Disponível em: https://madinbrasil.org/2020/08/a-loucura-de-jair-bolsonaro/

[1] Trabalho originalmente apresentado como comunicação no 8º Encontro Nacional da Latin American Sutidies Association, em Pittsburgh em 1979.

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