Este é o terceiro de uma série de ‘blogs’ que escrevo propondo uma reflexão crítica sobre a reforma psiquiátrica brasileira. Primeiramente, eu levantei a questão de o porquê em décadas de processo de reforma da assistência não haver movimentos organizados de ex-usuários e sobreviventes da psiquiatria. Na semana passada, analisei os dados disponíveis sobre a internação involuntária. No Brasil, ainda há um contingente de usuários que se encontram involuntariamente hospitalizados. Na verdade, qualquer brasileiro ou brasileira pode ser involuntariamente internado, porque a decisão é do médico/psiquiatra, visto que a lei dá esse direito.
Neste ‘blog’ me proponho a fazer uma reflexão a respeito do papel do diagnóstico psiquiátrico na assistência psiquiátrica brasileira. É para chamar a nossa atenção que décadas de processo de reforma não foram suficientes para se haver construído alternativas práticas ao DSM e ao CID.
Irei inicialmente fazer uma análise crítica do diagnóstico psiquiátrico (I). Não irei me aprofundar nessa crítica, porque não quero fugir dos limites de um ‘blog’. O que direi espero que seja o suficiente para se ter uma visão global do papel do diagnóstico psiquiátrico para o entendimento do sofrimento psíquico no país e como hegemonicamente a sociedade enfrenta os seus problemas (II).
O senso-comum é que problemas emocionais ou de saúde mental são doenças. Essa ideia é um êxito espetacular de ‘marketing’ construído pela aliança entre a psiquiatria e a indústria farmacêutica, conforme inúmeros estudos (Angel, 2007; Moynihan & Cassels, 2005; Whitaker & Cosgrove, 2015). Desde a primeira versão do DSM, em 1952, vê-se um constante crescimento de várias categorias de diagnóstico, subdividindo as classes da psiquiatria psicodinâmica, tais como psicoses e neuroses, em unidades sintomáticas cada vez menores. Em 1952, com o DSM-I, o manual apresentava 130 categorias de diagnóstico. Com o DSM-II, lançado em 1968, nós passaremos a contar com 180 categorias. No DSM-III, cuja primeira versão é publicada em 1980, com 494 páginas, há 265 categorias de diagnóstico listadas. 7 anos depois, em 1987, 292 diagnósticos estarão distribuídos em 567 páginas. Em 1994, o DSM-IV foi publicado, listando 297 transtornos em 886 páginas. E, finalmente, em 2021, estamos no DSM-5, lançado em maio de 2013, com mais de 300 transtornos mentais classificados. Com novos diagnósticos e com alguns outros renomeados: “transtorno de acumulação”, “transtorno de oscilação disruptiva do humor”, “transtorno de compulsão alimentar periódico”, “transtorno de hipersexualidade”, “transtorno de arrancar pele”, “adicção à internet”, “transtorno de identidade de gênero”, “transtorno alimentar restritivo evitativo”.
Assim, torna-se cada vez mais comum ver todo o tipo de pessoas a reconhecerem-se num grupo de sinais clínicos com algum valor diagnóstico. Essa forma de abordar as diversas formas como o sofrimento psíquico se manifesta é contemporânea do neoliberalismo, que enfatiza a liberdade individual, a autonomia a escolha, a autossuficiência e responsabilidade e promove a ideia de que tudo pode ser convertido em mercadoria em um mercado livre de regras e regulações o máximo quanto for possível.
Este modelo de sistema econômico lucra criando sofrimento e oferecendo meios para entendê-lo e resolvê-lo. As políticas neoliberais criam insegurança em muitas áreas de nossas vidas como trabalho, salário, moradia, laços comunitários, relações, status e bem-estar físico. Encorajadas a se verem competitivas e autossuficientes ao invés de interdependentes e interligadas, as pessoas sentem-se presas a um constante estado de insatisfação a respeito de suas vidas, bens, realizações, corpos e relações, e assim persuadidas a comprar soluções. Estamos sempre nos comparando uns aos outros. E assim, ao não se sentir conforme os ‘standards’ promovidos, a tendência é que passemos a nos culpar, a sentirmo-nos fracassados. A narrativa já se encontra à disposição, ao estilo Macdonald, que é o que a psiquiatria e a psicologia sistematicamente propagam em nossa sociedade: as causas do sofrimento residem nas características da personalidade, em disfunções psicológicas e em “doenças” ou “transtornos mentais”. As soluções estão aí no mercado: drogas psiquiátricas e a maioria das psicoterapias (Barber, 2007; Boyle & Johnstone, 2021; Freitas & Amarante, 2017; Moncrieff, 2008; Verhaeghe, 2014; Wilkinson & Pickett, 2018).).
II.
Para se ter uma visão ampla do impacto das categorias de diagnóstico na sociedade brasileira, irei me limitar aqui neste ‘blog’ a apresentar apenas um trabalho publicado, com um amplo reconhecimento na literatura científica internacional e fortíssima repercussão na nossa grande mídia
Trata-se de uma pesquisa realizada com a população da área metropolitana de São Paulo. Foi um estudo que estimou a prevalência, a gravidade e o tratamento dos transtornos psiquiátricos listados no DSM-IV.
Seus resultados mereceram destaque na grande imprensa, publicado em na revista PLoS One no dia 14 de fevereiro, com o título São Paulo Megacity Mental Health Survey (Andrade et al., 2012). Quase 30% dos habitantes da Região Metropolitana de São Paulo apresentam transtornos mentais, de acordo com um estudo que reuniu dados epidemiológicos de 24 países. O estudo é internacional. A prevalência de transtornos mentais na metrópole paulista foi a mais alta registrada em todas as áreas pesquisadas. O que o estudo está dizendo é que de cada 10 paulistas da grande São Paulo, cerca de 3 apresentaram algum “transtorno psiquiátrico” nos últimos 12 meses anteriores à entrevista para o estudo.
O estudo epidemiológico avaliou uma amostra representativa de residentes da região metropolitana de São Paulo, com 5.037 pessoas avaliadas em seus domicílios, a partir de entrevistas feitas com base no mesmo instrumento diagnóstico. Os questionários incluíram dados sociais.
Os transtornos de ansiedade foram os mais comuns, afetando 19,9% dos entrevistados. Em seguida, aparecem transtornos de comportamento (11%), transtornos de controle de impulso (4,3%) e abuso de substâncias (3,6%).
Segundo os resultados, dois grupos se mostraram especialmente vulneráveis: as mulheres que vivem em regiões consideradas de alta privação, que apresentaram grande vulnerabilidade para transtornos de humor, enquanto os homens migrantes que moram nessas regiões precárias mostraram alta vulnerabilidade ao transtorno de ansiedade.
A prevalência dos transtornos mentais em São Paulo, de quase 30%, é a mais alta entre os países pesquisados. Os Estados Unidos aparecem em segundo lugar, com pouco menos de 25%. A razão da alta prevalência, de acordo com uma das pesquisadoras em entrevista ao portal da FAPESP, pode ser explicada pelo cruzamento de duas variáveis incluídas no estudo: a alta urbanização e a privação social. “Levamos em conta também a variável da privação social, estrutura etária da população, setor censitário, escolaridade do chefe de família, migração e exposição a eventos traumáticos violentos”, disse a pesquisadora que esteve à frente do estudo, a Dra. Laura Helena Andrade, professora do Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina (FM) da Universidade de São Paulo (USP).
O problema é do indivíduo não é da sociedade, segundo a visão dominante. As soluções propostas é mais e mais psiquiatria. Senão, vejamos o que diz a própria Dra. Laura Andrade:
“Não é possível ter um serviço especializado em todas as unidades, por isso é preciso equipar a rede com pacotes de diagnóstico e de conduta a serem utilizados pelos profissionais de cuidados primários. É preciso capacitar não só os médicos, mas também os agentes comunitários, que devem ser orientados para identificar casos não tão comuns como os quadros psicóticos, levando em conta os fatores de risco associados aos transtornos mentais.”
CONCLUSÃO:
O que se pode observar é que o diagnóstico psiquiátrico não é simplesmente um modo de rotular ou descrever emoções e comportamentos perturbadores. A reforma psiquiátrica não conseguiu apresentar à sociedade brasileira uma forma distinta de pensar emoções e comportamentos perturbadores. A reforma tem persistido no “modelo biomédico” da psiquiatria, isso a despeito da falta de suporte das evidências científicas.
No próximo ‘blog’ irei mostrar ser possível haver uma abordagem distinta ao DSM/CID, como é exemplar a proposta elaborada pela Divisão Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia.
REFERÊNCIAS:
Andrade, L. H., Wang, Y.-P., Andreoni, S., & Silveira, C. M. (2012). Mental Disorders in Megacities: Findings from the São Paulo Megacity Mental Health Survey, Brazil. Plos One, feb. 14.
Angel, M. (2007). A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Record.
Barber, B. R. (2007). How Markets Corrupt Children, Infantalise Adults and Swallow Citizens Whole. Norton.
Boyle, M., & Johnstone, L. (2021). The Power Threat Meaning Framework. PCCS BOOKS.
Freitas, F. & Amarante, P. (2017). Medicalização em Psiquiatria. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz.
Moncrieff, J. (2008). Neoliberalism and biopsychiatry: a marriage of convenience. In C. I. Cohen & S. Timimi (Eds.), Liberatory psychiatry, philosophy, politics and mental health (pp. 235–256). Cambridge University Press.
Moynihan, R., & Cassels, A. (2005). Selling Sickness. Nation Books.
Verhaeghe, P. (2014). ’What about Me?’The struggle for identity in a market-based society. Scribe Publications.
Whitaker, R., & Cosgrove, L. (2015). Psychiatry under the Inluence. Institutional corruption, social injury, and prescriptions for reform. Palgrave Macmillan.
Wilkinson, R., & Pickett, K. (2018). The spirit leve: why equality is better for everyone. Allen Lane.
Um assunto da maior importância para o que queremos como assistência em saúde mental em nosso país.
Excelente série! A Reforma não pode abrir mão dessa discussão! Estamos vivendo um momento onde nem mais os diagnósticos estão sendo necessários. O que se medica são os sintomas!!!!
Meu caro Marcelo Dias. O seu comentário é para mim da maior importância. Sobretudo, porque você é médico/psiquiatra. O grande desafio que temos pela frente é como enfrentar o sofrimento psíquico e suas manifestações – as mais variadas -, sem necessariamente usar as categorias de diagnóstico do DSM e ou CID. O questionamento das categorias de diagnóstico dos manuais oficiais é amplo e diversificado na literatura científica. Há que se construir outras formas de abordagem. A proposta da Divisão Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia, com o que eles chamam de Abordagem Poder, Ameaças, Significado (PTMF, em inglês), é uma sugestão que devemos examinar com muita atenção. É o que me proponho apresentar, disponibilizar, para o nosso público brasileiro. O importante é que sejamos fiéis ao que as evidências científicas nos mostram. Sabendo que a Ciência nos ensina a buscar sempre a ‘verdade”. E com isso, melhorar as nossas condições para enfrentar o mundo tal como ele se nos apresenta. Valeu meu querido Marcelo.
Desejo que todos tenham acesso a esse site que eu tanto admito . E que essa problematica assim como a outras seja dada muita atenção . É urgente, é necessário .