Trauma e a pandemia de covid-19

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No Brasil, fomos atropelados pela conjunção bombástica do advento da Covid-19 juntamente com a barbárie na condução da pandemia. Neste cenário global de uma crise mundial sem precedentes, que se mostrou uma catástrofe multidimensional e cuja mitigação dos seus efeitos demandariam ações coordenadas de diferentes áreas, no Brasil, crimes contra a saúde pública são cometidos descaradamente e noticiados como se fossem algo corriqueiro, banal.

Presenciamos ataques à pesquisa, aos pesquisadores, aos institutos de pesquisa e às universidades públicas. Além da disseminação de mentiras, chegamos ao cúmulo de um corte brutal nas verbas de pesquisa no momento em que mais precisamos dela. Universidades públicas renomadas e com alto desempenho tem declarado a inviabilidade de funcionamento a partir dos próximos meses. Todavia, cada vez mais tem vindo à tona escândalos de desvio de verba pública, superfaturamento, gastos de 3 bilhões supostamente em tratores (escândalo já conhecido como “tratoraço”), descoberta de orçamentos secretos etc.

Chegamos a um lamentável patamar de mais de 420 mil mortos. Entre os meses de janeiro a abril de 2021 foi ultrapassado o número de mortos do ano de 2020 inteiro. Nos últimos dias, foi noticiada a rejeição por parte do governo federal de 70 milhões de doses de vacina da Pfizer que teriam evitado muitas mil mortes em território nacional. Em um país cujos índices de mortes chocam o mundo, se tornando uma preocupação global e ameaça sanitária, estamos discutindo a implementação do voto impresso (mais uma tentativa de ataque a nossa frágil democracia) enquanto fakenews são amplamente disseminadas e, ainda, campanhas anti-vacina. Acreditem, contra a vacina, nossa arma mais preciosa no combate à pandemia, foi recusada, ignorada, atacada e colocada em xeque com afirmativas presidenciais como “se você virar um jacaré, é problema seu”.

A todo momento as ações não farmacológicas para a contenção da disseminação do vírus são rechaçadas, tratadas sob forma de piada ou chacota pelo próprio presidente da república. As recomendações das autoridades internacionais e nacionais de saúde são postas em dúvida. Os gravíssimos impactos da pandemia são minimizados, negados. A doença é negada. Até mesmo morte é negada. Ora, negar a morte está para além de um desafio possível. Apenas dela não podemos escapar.

E estas mortes, as mortes por Covid-19 que poderiam ter sido evitadas com planos de governo e medidas para contenção da pandemia, são aquelas que deixarão sob os escombros a gestão Bolsonaro. A contagem de mortos escancara a política de destruição que se implementou, sobretudo durante a pandemia: a necropolítica brasileira.

Instaurou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para averiguar crimes durante a pandemia, em especial, ações criminosas advindas do próprio governo federal e do ministério da saúde.  Estes deveriam ter tido o compromisso de proteger a população do nosso país e propiciar condições de enfrentamento da pandemia. A catástrofe que vivemos enlaça o individual e o coletivo com seríssimas repercussões traumáticas.

Vivemos o tempo do traumático.

Como não estar apavorado diante do horror? Como não estar traumatizado? Como não sucumbir diante de tanto descalabro? A incerteza sobre o futuro próximo e longínquo nos atravessa.

Assim como nos casos de sobreviventes de guerra, da covid-19 e seus percalços somos sobreviventes. Conforme Braunstein (2006), na experiência traumática como a que vivemos atualmente, o sujeito atravessa uma situação na qual poderia ter morrido, mas não o fez. Do trauma, ele é um sobrevivente. Portanto, o traumatizado é um ser que, de modo metafórico, tomou o lugar de outro que vivia anteriormente. Há uma espécie de troca de identidade apesar da conservação do nome. Ainda segundo o autor, os outros (família, amigos) demandam do traumatizado que ele continue sendo aquele que era antes, porém, sua resposta é: Já não sou mais quem eu era. A Covid-19 marca um antes e depois na vida de todos nós.

Deparamo-nos na clínica com indivíduos vivendo os efeitos do trauma, que passaram perdas, por situações traumáticas, de medo, de excesso e tentam dar sentido à angústia.

Por estar mais vivo do que nunca, não podemos abrir mão de uma leitura freudiana para pensarmos os impasses atuais.  Por ocasião da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918) o debate sobre a origem traumática da neurose ganhou destaque com a troca de correspondência entre Freud e Einstein, publicada em 1933, na qual o primeiro indaga diante das atrocidades e da falta de sentido promovida pela guerra: “Por que a guerra?”. Na ocasião, os psiquiatras de toda parte tiveram seus serviços solicitados pelas hierarquias militares que procuravam desmascarar “simuladores”, alvos da suspeita, como outrora acontecera com os histéricos, acusados de serem falsos doentes e, portanto, sendo aqueles mentirosos, desertores e maus patriotas. Foi nesse contexto que se deu em Viena, em 1920, o primeiro debate sobre o estatuto da neurose de guerra. Nessa ocasião, Freud criticou o uso do método elétrico para o tratamento das neuroses de guerra, lembrando que o dever do médico é se colocar a serviço do doente, e não do poder estatal ou bélico; ademais, questionou a ideia de simulação, inadequada a qualquer definição de neurose.

A ideia de um acontecimento traumático na origem da neurose voltou a ganhar destaque na teoria freudiana, permanecendo nas suas elaborações diante dos sintomas apresentados por sobreviventes de guerra severamente traumatizados, com a ressalva de que, para Freud (1918), tais neuroses são, em última instância, neuroses traumáticas e, portanto, também ocorrem nos dias de paz. Freud observou que os pesadelos descritos pelos traumatizados repetiam as vivências dolorosas. No caso das denominadas neuroses de guerra, os sonhos pareciam ser mais uma tentativa de elaboração do conteúdo traumático do que meras tentativas de realização de desejos.

As investigações sobre neurose traumática certamente não se resumem as situações de guerra, contudo elas ilustram de modo contundente os efeitos da neurose traumática. De fato, podemos afirmar que o momento traumático marca uma cisão, um antes e depois estabelecido na vida do sujeito. Então, como pensar a respeito dessas subjetividades que estão sendo construídas a partir da experiência traumática? Novo normal ou um novo mundo que requer novas lentes de leitura?

Na neurose traumática, o sujeito é assombrado por um encontro que não pode esquecer, que o assalta de noite mesmo tendo dele escapado durante o dia. Isso absorve a totalidade da sua libido e dos interesses do sujeito, em proveito de um pavor e de uma angústia que não cessam de se inscrever. Quando nos referimos ao passado, ou seja, ao acontecimento que deu origem ao trauma, consideramos uma força atuante cuja testemunha é a lembrança. O traumatizado não se lembra apenas, na realidade, ele é invadido por imagens, barulhos e sensações. Também, não podemos esquecer, que o trauma deixa herdeiros.

Joel Birman (2020) em sua análise sobre os impactos da pandemia de Covid-19, explica que a noção de catástrofe remete às linhas de força e de fuga que delineiam a constituição real do mundo. Por outro lado, o trauma reenvia para as coordenadas constitutivas do sujeito que se inscreve neste espaço real do mundo que foi colocado literalmente pelo avesso, pela dor e sofrimento, que como dobras ruidosas, modulam efetivamente os interstícios da experiência traumática.

Vivemos os dois. Simultaneamente.

Se para a medicina o trauma designa lesões no organismo causadas por fatores externos, no plano da psicopatologia os traumas são compreendidos como acontecimentos que rompem radicalmente com um estado de coisas no psiquismo, provocando um desarranjo em nossas formas habituais de funcionar e compreender as coisas e impondo o árduo trabalho psíquico da construção de uma nova ordenação do mundo. Dito de outro modo, o trauma é uma vivência que, no espaço de pouco tempo, aumenta demasiadamente a excitação da vida psíquica de tal modo que a sua liquidação ou a sua elaboração pelos meios habituais fracassa, acarretando em perturbações duradouras no funcionamento psíquico.

Entre os acontecimentos e esses efeitos, insere-se a tela da memória e da fantasia que transforma os fatalismos. Se, no âmbito da clínica, nesse momento pandêmico, pandemônico, cabe pensar que o trabalho de análise também incluiria a tentativa de tessitura da fantasia que foi desvelada posto que o real tem se reproduzido sem véu. No campo coletivo, nos resta acreditar que a justiça realize este trabalho reparador para que vidas possam ser salvas.

Impeachment urgente.

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