Em uma série de ‘blogs’, pretendo apresentar um conjunto de reflexões acerca da reforma psiquiátrica brasileira.
Primeiramente, é muito importante lembrar que no próximo dia 18 de maio iremos celebrar o DIA NACIONAL DA LUTA ANTIMANICOMIAL. Somos milhares e milhares de brasileiros que não aceitam nenhuma categoria de assistência de características asilares. Portanto, somos “antimanicomiais”.
Estamos agora em um período para se parabenizar a todas e todos que durante essas últimas décadas têm demonstrado, na prática, os inúmeros e indiscutíveis ganhos para a saúde mental conquistados graças ao deslocamento da assistência hospital-asilar para o território. E sabemos todos quantos são os retrocessos que estão sendo politicamente planejados e executados nos últimos anos.
Ao escrever essa sequência de ‘blogs’, a minha intenção é reforçar a luta antimanicomial e de pensar junto aos leitores como é necessário haver uma “radicalização” do próprio processo de reforma psiquiátrica em nosso país (no sentido etimológico de “radicalizar”). Confesso que não estou seguro se o horizonte seria uma “assistência do bem-estar social” ou “assistência em saúde mental”, senão “psicossocial”. Essa dúvida ficará melhor entendida ao longo dos ‘blogs’. Garantidamente, o que tenho claro é que não é uma “psiquiatria pós-asilar” o que vislumbro.
Neste primeiro ‘blog’ irei fazer apenas uma consideração preliminar. A partir da seguinte pergunta:
Por que no Brasil não existe algum movimento organizado de ex-usuários da Psiquiatria? Senão de “sobreviventes” da Psiquiatria?
Estou falando de “ex-usuários” da Psiquiatria, e não de “ex-usuários” do Sistema Único de Saúde (S.U.S.). Uma distinção que considero ser muito relevante. Segundo o que é definido pelo S.U.S., é um direito constitucional de todos os cidadãos brasileiros o acesso universal aos serviços de saúde. Portanto, com relação ao S.U.S., não faria sentido algum se defender algo como ser “ex-usuário” do S.U.S.; salvo para aqueles que passaram desta vida para outra!
O que é muito distinto quando se diz: “eu sou um ex-usuário da Psiquiatria.”
O que se espera de alguém que sendo usuário da pediatria ao chegar à adolescência? Que passe a ser um ex-usuário da pediatria, não é mesmo? Senão, seria algo como tratar um adulto como se ele ainda fosse uma criança. Assim como quem já foi usuário das clínicas de “gastro”, “cardiologia”, por exemplo, o que se espera é que seja um “ex”. Nestes casos, o esperado é que o “usuário” do S.U.S., graças ao êxito do seu tratamento, ele (a) não mais necessite de ser usuário do tratamento. E com relação à Psiquiatria? Por que temos que continuar a ser um “usuário” da Psiquiatria? O que justifica isso?
É verdade que há diversas condições que levam alguém a continuar sendo um usuário do S.U.S. durante muitos anos, senão a vida inteira. São as chamadas doenças crônicas. Não são poucas as doenças crônicas, infelizmente. E com a Psiquiatria, é isso o que ocorre? Seriam os “transtornos psiquiátricos” doenças crônicas, infelizmente?
Há aqueles que tiveram uma experiência da assistência asilar-hospitalar. E que passaram a ser tratados no “território”. Por conseguinte, não seria mais adequado que eles/elas estivessem fazendo parte de movimentos organizados de “ex-usuários” – do sistema manicomial-hospitalar?
Eu imagino que você leitor esteja agora a pensar: “Fernando, mas não é isso o que o movimento dos usuários no Brasil tem feito, denunciando à sociedade o quanto sofreram, e que por isso mesmo defendem hoje uma assistência pós-asilar?”
Sim, eu sei; mas a minha pergunta é outra: “Por que não “ex-usuários?“? Senão, por que não “sobreviventes da psiquiatria”? Neste último caso, o que estaria explicitamente sendo afirmado para a sociedade é que apesar de haverem sido vítimas da psiquiatria, apesar dos danos pessoais e intersubjetivos, conseguiram “sobreviver” à Psiquiatria. Quantas coisas importantes esses movimentos estariam ensinando a sociedade brasileira, não é mesmo? Senão, o quanto os profissionais de saúde estariam aprendendo com essas experiências de vida? Onde há movimentos organizados de “ex-usuários” e “sobreviventes” da psiquiatria, o ‘discurso do mainstream’ da psiquiatria ganha fissuras onde sementes do “novo” podem ser germinadas.
Voltemos para a realidade brasileira. Alguém que foi diagnosticado com esquizofrenia e entrou em tratamento, estará ele/ela condenado a ser usuário para o restante da sua vida? Ou alguém que foi diagnosticado com um transtorno depressivo, terá ele/ela que ser usuário para o restante da sua vida? Senão, alguém com um diagnóstico de transtorno de ansiedade. E assim por diante.
Sabemos que hoje em dia, no Brasil, o número de usuários da psiquiatria é muito maior do que aquele dos tempos onde os asilos psiquiátricos dominavam o cenário. Fora dos asilos psiquiátricos, os “usuários” psiquiátricos convivem conosco, se confundem com cada um de nós, estão ao nosso lado. Os “usuários” estão integrados, em uma forma ou outra. Porque, afinal de contas, o senso-comum criado com a reforma psiquiátrica no Brasil é que “de perto ninguém é normal”. Em nome de um combate ao estigma, não faltaram campanhas para nos sentirmos, todos, de bem em ser um paciente psiquiátrico. Afinal de contas, um “transtorno mental” seria não mais que uma doença como qualquer outra! E como doença, ela deve ser tratada pelo sistema de saúde.
Por que LUTA ANTIMANICOMIAL? Será por que tememos que nossos filhos tratados por TDAH passem a ser tratados em um asilo psiquiátrico? Ou que eu, você, por que somos pacientes por depressão, estamos sob ameaça de ir parar em um manicômio? E assim por diante.
Se a maioria de nós pode ser usuário da psiquiatria, conforme o ‘mainstream’ da psiquiatria, por que não LUTA ANTIPSIQUIATRiA?
Será que em psiquiatria, quem passou a ser usuário da psiquiatria, terá que ser para o restante da sua vida um “usuário”? Não digo do S.U.S., mas da psiquiatria? É isso uma fatalidade?
O que as evidências científicas dizem a respeito? Desmentem esse ”senso-comum”. O que a Ciência mostra é que, em geral, alguém é “usuário”, pelo restante da sua vida, graças à própria psiquiatria. É intrínseco ao modelo biomédico da psiquiatria adoecer as pessoas e mantê-las doentes. Em próximos ‘blogs’ terei oportunidade de mostrar isso com evidências científicas.
Retorno à questão inicial. E a refaço da seguinte forma: “Por que no Dia Nacional de Luta Antimanicomial, não há movimentos de ex-usuários ou sobreviventes da psiquiatria manifestando as suas pautas de demandas?” Certamente, o debate hoje estaria tendo uma qualidade bem distinta. Os retrocessos que estamos ultimamente sendo vítimas seriam melhor entendidos. E as reações seriam outras. Porque foram décadas de reforma psiquiátrica no Brasil, sem haver dado à sociedade alternativas viáveis e confiáveis ao modelo biomédico da Psiquiatria (diagnóstico e tratamento com drogas).
Quem viveu em algum asilo psiquiátrico e dele saiu, é um ex-usuário do sistema asilar. De Barbacena, de Juqueri, da Colonia Juliano Moreira, etc. Por que ex-usuários dos manicômios continuam sendo usuários da Psiquiatria, hoje, e provavelmente amanhã?
Seria por que passaram a ser “dependentes” da Psiquiatria? Dependentes do diagnóstico psiquiátrico. Dependentes das drogas psiquiátricas. De algum benefício social? Não enquanto indenização pelos danos que sofreram do tratamento, mas para poder sobreviver socioeconomicamente? Seria por que se deixarem de ser usuários da psiquiatria não poderão mais gozar de migalhas de uma vida decente? É isso?
Por que?
Um olhar aos movimentos organizados no exterior, em particular nos Estados Unidos, no Canadá, Europa, Austrália ou na Nova Zelândia, para dar alguns exemplos, há movimentos organizados, historicamente, de ex-usuários. Mas também de “sobreviventes da psiquiatria”. Não irei, agora, entrar em detalhes sobre o que caracteriza esse ou aquele outro movimento.
Mesmo correndo o risco de estar sendo repetitivo, o que é importante é nos perguntarmos o que faz com que nós brasileiros nos mantenhamos na narrativa da assistência manicomial? Por que no Brasil, não há um movimento de ex-usuários para defender publicamente, não apenas que deixaram de ser pacientes em asilos psiquiátricos. Mas para afirmar que graças a um ou ao outro tratamento, ficaram recuperados? Por que na literatura científica não há provas, evidências científicas, de que no Brasil, devido à essas ou àquelas outras práticas “psicossociais”, nós conseguimos obter melhores resultados quando comparados aos tratados pelo modelo biomédico da psiquiatria?
Porque o tratamento que está sendo dado não lhes garante uma vida independente da condição de paciente psiquiátrico?
A minha hipótese é que a reforma psiquiátrica brasileira tem dado ênfase ao deslocamento da assistência prestada em asilo psiquiátrico para aquela do território. E que no território o que mudou foi uma ampliação do mercado para o exercício do próprio poder psiquiátrico. Mesmo sabendo que não faltam boas intenções dos profissionais.
Para concluir, duas perguntas:
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Será que, para que as “diversas formas” como o sofrimento psíquico se manifesta, para elas serem reconhecidas pela sociedade, necessitam de se adequar, necessariamente, à hegemonia do “modelo biomédico” da Psiquiatria?
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No Brasil – para uma parcela significativa da nossa sociedade – ser “usuário” da Psiquiatria não é a condição para receber alguma categoria de reconhecimento social? Como ter um lugar na sociedade com um mínimo de dignidade? Seja em termos pecuniários, sabemos. Mas, não menos importante, para poder contar com uma escuta, afeto, esperança; até mesmo um prato de comida?
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É isso? É a reforma da assistência em saúde mental aquela que queremos?
No próximo ‘blog’ irei analisar um conjunto dados da assistência psiquiátrica no Brasil, dos anos 90 aos tempos contemporâneos. Um quadro chocante!
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